Ambiente jurídico

Por uma política socioclimática que nos represente!

Autores

  • Gabriel Wedy

    é juiz federal professor nos programas de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-doutor doutor e mestre em Direito Ambiental membro do Grupo de Trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas" do Conselho Nacional de Justiça visiting scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e pela Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) autor de diversos artigos na área do Direito Ambiental no Brasil e no exterior e dos livros O desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental e Litígios Climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro Norte-Americano e Alemão e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

  • Rafael Moreira

    é juiz federal doutor e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) visiting researcher na Universität Heidelberg professor de Direito Ambiental e Administrativo na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafers) presidente da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs) e autor de livros e artigos na área do Direito Ambiental das mudanças climáticas e Administrativo.

20 de agosto de 2022, 13h05

Falta pouco para as eleições presidenciais no Brasil. Eclodem polarizações, ataques pessoais, virulências, desacatos e, como ocorre a cada quatro anos, uma exposição desnecessária e irracional dos aspectos mais obscuros da política. Políticas de Estado de longo prazo são deixadas de lado nos debates que assumem a função desviada de uma arena selvagem de destruição de reputações e de veiculação de maldades de toda ordem. Esta prática não serve para o desenvolvimento do Brasil que clama pela construção, democrática e dialogada, de um plano de desenvolvimento socioclimático.

Spacca
Na América, por certo, não é muito diferente. Serve de alento, entretanto, a festejada e mundialmente comentada Lei de Redução da Inflação de 2022 (Inflation Reduction Act of 2022). Referida peça legislativa visa basicamente: a- conter a inflação; b- reduzir o déficit público; c- diminuir os preços dos medicamentos; d- investimentos na produção doméstica de energia e, especialmente, de energia renovável.

Embora o Poder Legislativo norte-americano tenha como objetivo central a política econômica, adota ao mesmo tempo, na referida lei, mudanças importantes para o combate à poluição, para a redução do aquecimento global e para a descarbonização profunda da economia. A intenção do legislador foi, portanto, também enfrentar outra inflação que vem sendo negligenciada, a inflação climática na maior economia do mundo.

A aprovação da lei, que por um momento afastou o fenômeno da batida e cansativa polarização (democratas v. republicanos) é um refinado exemplo da realpolitik. Mesmo com um Congresso tão dividido, os 369 bilhões de dólares que serão convertidos em créditos fiscais, investimentos públicos e privados, e outros incentivos ao estilo keyenesiano vão estimular uma economia calcada na energia limpa que é um passo crucial para o cumprimento dos objetivos do Acordo de Paris programados até o ano de 2100. Em relação ao aspecto socioclimático da lei, foi nítida a intenção do legislador em substituir gradativamente os combustíveis fósseis em setores bem específicos: a- do transporte; b- da eletricidade; c- da indústria; d- e, da construção. Outro aspecto positivo é que esta lei também facilita a regulação dos gases de efeito estufa com base na Lei do Ar Limpo (Clean Air Act), aliás, aprovada no famigerado governo Nixon.

Não foram limitadas pela lei, é bem verdade, as emissões de gases de efeito estufa pelas indústrias, e nem criado um imposto para onerar o dióxido de carbono por tonelada. Essas políticas tornariam mais caro poluir e forçariam os produtores e consumidores de energia a optarem defintivamente pela energia limpa o que viabilizaria a absorção das externalidades negativas das emissões. Por ricochete, no entanto, as demais medidas são hábeis para redução das emissões indiretamente.

A Lei pode ser um exemplo para o Brasil. Ou seja, os EUA para estimular o mercado das energias renováveis prorrogou os créditos fiscais eólicos e solares existentes por mais 10 anos. Para impulsionar a adoção pelo consumidor de tecnologias renováveis , o Congresso ofereceu incentivos aos americanos para instalar bombas de calor em suas casas e para a compra de carros elétricos, que ainda são muito caros para o grande público. Os consumidores de baixa renda vão receber individualmente crédito fiscal de U$ 7.500 para comprar um veículo elétrico novo e cerca de U$ 4.000 para adquirir um veículo elétrico usado.

Em boa hora foram criados incentivos que adiam o desligamento das usinas nucleares que, desde que observados atentamente os princípios da prevenção e da precaução, são fontes de eletricidade com emissões zero de carbono. A energia nuclear, também, é responsável pela diminuição do custo da tecnologia de captura de carbono. Sim, pois embora as usinas elétricas e as instalações industriais possam instalar estes dispositivos para limitar a quantidade de gases de efeito estufa que atingem a atmosfera, o custo financeiro desta medida ainda é muito elevado. Outro ponto na lei que precisa ser mencionado é que as empresas de petróleo e gás que emitem metano acima de um certo nível em suas operações, deverão pagar um tributo progressivo sobre esta diferença, a menos que reduzam as emissões abaixo de certos limites e cumpram os novos regulamentos que a Agência de Proteção Ambiental (Environmental Protection AgencyEPA), sob gestão democrata, finalizará em breve. Esta, aliás, é a única disposição que tributa diretamente a poluição no pacote.

As reduções das emissões que resultarão da lei são difíceis de estimar porque dependerão da rapidez da diminuição dos custos das energias renováveis e da adoção das novas tecnologias pelas empresas e consumidores. No melhor dos cenários, a projeção atual é que o projeto de lei vai reduzir as emissões de gases de efeito estufa dos EUA em 40% abaixo dos níveis de 2005 já no ano de 2030, em comparação com uma estimativa de 30% se a até então frágil política socioclimática norte-americana continuasse como estava. Essa melhoria de 10% pode parecer pequena, mas não é. Em havendo sucesso na adoção desta medida, essa redução tornará possível aos Estados Unidos alcançar seu compromisso no Acordo de Paris de cortar as emissões de 50% a 52% abaixo dos níveis de 2005 até 2030. Por exemplo, no ano de 2020, essas emissões diminuíram apenas 21% em relação aos níveis de 2005.

Créditos fiscais de longo prazo serão um verdadeiro nudge para a energia limpa e criarão um ambiente positivo de investimentos que ficará mas previsível e estável, o que é essencial para os mercados, aumentando a probabilidade de que as empresas de energia renovável construam parques eólicos, solares e novas linhas de transmissão em parceria com o Estado. Bilhões de dólares para descarbonizar a produção de materiais industriais como o aço e o concreto devem igualmente produzir reduções significativas nas emissões.

Em particular, as medidas para eletrificar o transporte, que corresponde a maior quota de crescimento das emissões nos EUA, podem ser transformadoras. As empresas automotivas já estão investindo bilhões de dólares para produção de carros, motocicletas, tratores e caminhões elétricos. No curto prazo, a economia também se beneficiará de créditos fiscais que tornarão os veículos elétricos mais acessíveis, inclusive para os trabalhadores, e não apenas para os ricos, que são quase que os seus únicos proprietários atualmente. Os créditos previstos, também, estão vinculados a princípios éticos que exigem que as empresas automotivas reduzam sua dependência de minerais provenientes da China que são usados em grande escala, em especial o cobalto e o lítio. Deverá haver, o que é possível em virtude do avanço da ciência, o incentivo à reciclagem desses minerais que terá como resultado a diminuição das externalidades negativas da sua exploração desenfreada. Bilhões de dólares serão direcionados para aumentar a produção interna de baterias e outros componentes dos veículos elétricos, o que vai gerar, igualmente, novos empregos para os americanos.

Como já referido, a Lei do Ar Limpo, vai legitimar a EPA para o estabelecimento de padrões de emissões gases de efeito estufa para usinas de energia. O texto legal exige que a agência considere a disponibilidade da tecnologia e o seu custo no processo de tomada de decisão. Ao reduzir o custo da tecnologia de captura de carbono, que sequestra as emissões na saída (smokestack), o Congresso, para que esses gases possam ser armazenados ou reaproveitados, possibilitou que as empresas os utilizem, permitindo que a EPA possa até mesmo exigir tal medida.

Da mesma forma como a legislação ajuda a tornar a tecnologia mais barata, reduzindo os custos de produção de carros e caminhões movidos por energias renováveis, ela cria uma forte base para estabelecer padrões de emissões mais rigorosos. Qualquer administração futura que procure reverter esses requisitos, como a administração Trump tentou fazer, terá dificuldade em explicar por que a indústria não pode atendê-los se a economia evidenciar o contrário. Ou seja, no médio prazo quem produzir com base nos combustíveis fósseis vai se inviabilizar e quebrar.

Vão haver benefícios políticos também decorrentes da lei. Empresários e trabalhadores apoiam investimentos em energia limpa, não há conflito de interesses e não há que se falar na célebre luta de classes marxista. Não são apenas ambientalistas clamando por uma política climática, o que torna mais promissora a legislação climática futura que agrega setores expressivos e nem sempre aliados na política dentro da sociedade. O projeto de lei, outrossim, também fortalecerá a credibilidade dos EUA nas negociações climáticas internacionais, seriamente abalada pelas políticas do Governo Trump, permitindo o país trabalhar, de forma construtiva e serena, com seus pares para avançar nos programas internos de redução de emissões.1

A Lei de Redução da Inflação, para dizer o mínimo, vai promover uma imensa externalidade positiva, a primeira grande lei climática dos Estados Unidos. É possível antever benefícios como a redução de mortes prematuras e outros danos à saúde decorrentes da poluição do ar. Igualmente, haverá maior justiça ambiental, já que comunidades vulneráveis, que muitas vezes estão próximas a grandes fontes de poluição, como estradas movimentadas, instalações industriais e usinas elétricas, sofrerão menos impactos e riscos de catástrofes. Cabe ressaltar que a legislação vai fornecer US$ 281 milhões às agências estatais para melhorar o monitoramento da qualidade do ar, o investimento de bilhões de dólares em projetos socioclimáticos conduzidos pelas comunidades, ônibus com emissões zero e programas para melhorar a qualidade do ar nas escolas em localidades de baixa renda. O pacote também promove uma dinâmica global (global momentum), pois aumentar a ambição americana no enfrentamento do aquecimento global também impulsiona investimentos em energias renováveis em outros países, considerando sobretudo a posição estratégica do país na arena internacional.2

A experiência norte-americana demonstra a importância (ou essencialidade) da atuação estatal para promoção da qualidade ambiental e climática. As crises ambientais surgem no vazio autorregulatório da iniciativa privada e nascem das chamadas falhas de mercado, sobretudo do problema das externalidades negativas, da insuficiência de ações em favor de valores coletivos e da assimetria da informação. Os ambientalistas do livre mercado (free-market environmentalists) não trazem solução para problemas globais, como a poluição e as mudanças climáticas.

Os mercados devem ser forjados e regulados pelo Estado e pela sociedade para proporcionar uma redução voluntária de emissões e para garantir que seus objetivos não sejam desvirtuados. O futuro nos colocará em posição de dizer se este pacote foi bem-sucedido. Contudo, já se pode afirmar que a saúde e a vida de milhões, o equilíbrio ecossistêmico e mesmo a economia mundial serão beneficiados com este pacote.

E o Brasil?

Nenhum(a) candidato (a) à presidência do país apresentou até o momento um pacote socioclimático, minimamente consistente, em tempos de retorno da inflação, de desigualdade, de poluição, de diminuição da biodiversidade, de desmatamento, de queimadas e, é claro, de emergência climática. Parece evidente que os discursos, na maioria das vezes demagógicos, pouco se sofisticaram desde a primeira eleição presidencial, pós-ditadura militar, em 1989. Com o perdão da expressão, até parece que retrocederam muito em termos de ambição para a criação de um país melhor e mais justo.

O povo brasileiro aguarda propostas consistentes de desenvolvimento sustentável dos (as) presidenciáveis para poder votar com o mínimo de segurança na opção feita e que esta seja capaz de nos nutrir ao menos com a simples e humilde esperança de um direito ao futuro.

Com a palavra, os (as) senhores (as) candidatos (as)!


1 FREEMAN, Jody. The Climate Bill Isn’t Perfect, but It’s Still a Major Victory. The New York Times, 11/08/2022. Disponível em: https://www.nytimes.com/2022/08/11/opinion/climate-inflation-reduction-act.html. Acesso em: 19/08/2022.

2 ANDREONI, Manuela. A huge side benefit of the new climate bill. The New York Times, 12 ago. 2022. Disponível em: https://www.nytimes.com/2022/08/12/climate/climate-air-pollution-health.html. Acesso em: 19/08/2022.

Autores

  • é juiz federal, membro do Grupo de Trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas do Poder Judiciário do CNJ; professor no programa de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe); membro da IUCN World Commission on Environmental Law (WCEL); pós-doutor, doutor e mestre em Direito; visiting scholar na Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e na Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht); diretor de assuntos internacionais do Instituto O Direito por um Planeta Verde (IDPV).

  • é juiz federal, doutor e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), visiting researcher na Universität Heidelberg, professor de Direito Ambiental e Administrativo na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafers), presidente da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs) e autor de livros e artigos na área do Direito Ambiental, das mudanças climáticas e Administrativo.

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