Opinião

Fatos geradores não lançados e transação tributária do contencioso

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11 de agosto de 2022, 18h09

A transação não pode ser vista tão somente como uma política de arrecadação tributária. Sua vocação é mais nobre e se direciona primordialmente à redução de litigiosidade. As razões estampadas na exposição de motivos da Medida Provisória nº 899/19 dão conta de sua inclinação à composição de litígios tributários, com mais rapidez e menos custo. Esse foi o espírito que repousou sobre o artigo 171 do Código Tributário Nacional e bem iluminou o artigo 1º, da Lei nº 13.988/2020, segundo o qual a transação deverá implicar "determinação" ou resolução de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública.

Introduziu-se, nesse contexto, a transação no contencioso tributário (administrativo ou judicial) de relevante e disseminada controvérsia jurídica (artigo 16 e seguintes da Lei nº 13.988/2020) que, de acordo com Diniz (2021, p. 291), corresponde a um meio adequado de autocomposição com potencial para mitigar a "crise de certeza" na esfera tributária, permitindo o acertamento da relação entre Fisco e contribuinte sem a necessidade da solução impositiva do Poder Judiciário.

Nos termos do artigo 18, da Lei nº 13.988/2020, a transação somente será celebrada se constatada a existência, na data de publicação do edital, de inscrição em dívida ativa, de ação judicial, de embargos à execução fiscal ou de reclamação ou recurso administrativo pendente de julgamento definitivo, relativamente à tese objeto da transação.

Há um sentido lógico na exigência de uma lide de pretensão contestada, com quantificação delimitada da exação, mesmo que provisória, para que ocorra a transação do contencioso. Isso porque o meio alternativo busca dirimir um estado de incerteza fático-jurídica através de concessões recíprocas. Do lado do contribuinte, exige-se a desistência e renúncia sobre atos e direitos, além do dever de autorrregulação e conformidade fiscal pós transação (artigo 3º, da Lei nº 13.988/2020); do lado da fazenda pública, concedem-se descontos sobre o montante principal de até 50% do valor total do crédito, com prazos de pagamentos de até 84 meses (artigo 17, da Lei nº 13.988/2020).

Naturalmente, só se pode conceder desconto de algo quantificado, mesmo que precário em razão da suspensão da exigibilidade prevista no artigo 151 do Código Tributário Nacional. Evidentemente que, em situações excepcionais, será possível o encerramento de litígio em ação de conhecimento ou mandado de segurança preventivo, impetrado sob receio de que a administração tributária lance tributo cujos critérios sejam discutíveis. Contudo, nessas hipóteses, a quantificação dada pelo contribuinte, desde que ratificada pelo órgão de representação judicial em juízo, passará a ser o paradigma quantitativo para fins de adesão à transação do contencioso.

Dúvida comum no meio jurídico reside no tratamento adequado ao fato gerador não lançado, ou seja, aquele não abrangido, em tese, pela transação tributária, por não existir litígio administrativo ou judicial.

Tome-se como exemplo a tese da amortização do ágio, a qual foi abrangida pelo edital de transação por adesão PGFN/RFB nº 9/2022. Segundo consta do edital, poderão ser incluídos débitos que se encontram no contencioso administrativo ou judicial até a data de publicação do edital, que envolvam a controvérsia jurídica alusiva ao aproveitamento fiscal de despesas de amortização de ágio decorrente de aquisição de participações societárias, limitada às operações de incorporação, fusão e cisão ocorridas até 31 de dezembro de 2017, cuja participação societária tenha sido adquirida até 31 de dezembro de 2014, período de aplicação dos artigos 7º e 8º da Lei nº 9.532, de 1997, conforme o disposto no artigo 65 da Lei nº 12.973, de 2014.

A fim de melhor compreender a questão, imagine que a empresa Curió S/A, tributada pelo lucro real, incorporou participação societária da empresa Moca S/A, no ano de 2017, e registrou em sua contabilidade ágio por expectativa de rentabilidade futura. Nos termos da legislação de regência, passou a amortizar o valor do ágio nos balanços correspondentes à apuração do lucro real, à razão de um 1/60 (um sessenta avos), para cada mês do período de apuração.

Houve amortização na apuração do lucro real de 2018, 2019, 2020 e 2021, permanecendo valores para serem amortizados na apuração do lucro real no ano de 2022. Imagine-se, ainda, que a Receita Federal, no ano de 2020, glosou a amortização do ágio relacionada aos anos 2018, 2019 e 2020, o que resultou na impugnação do lançamento, suspendendo a exigibilidade do crédito enquanto não decidido definitivamente no âmbito administrativo.

As despesas de amortização realizadas no ano de 2021 não foram objeto de lançamento e as de 2022 ainda não se realizaram. Qual o tratamento deve ser dado aos fatos geradores de 2021 e 2022?

A resposta perpassa, sem escalas, pela compreensão dos artigos 17, §1º, III [1], e 19, §1º, II [2], ambos da Lei nº 13.988/2020, além dos objetivos da transação do contencioso delineados no artigo 3º, da Portaria do Ministério da Economia nº 247/2020[3]. Tem-se, como se nota, uma opção clara de atuação em duas frentes: a que busca extinguir litígios administrativos ou judiciais através de concessões recíprocas e a que busca estimular a autorregularização e a conformidade fiscal.

No nosso exemplo, a amortização do ágio relacionada aos anos 2018, 2019 e 2020, a qual foi objeto de lançamento e impugnação pelo contribuinte, serão ofertadas à transação do contencioso sem maiores discussões. Também não há questionamento quanto ao dever de conformidade fiscal relacionado à apuração do lucro real de 2022, uma vez que ainda não se realizou, de modo que resta objetado ao contribuinte a utilização da despesa de amortização do ágio.

Quanto à amortização do ágio relacionada ao exercício de 2021, pelo menos dois caminhos possíveis podem ser extraídos do Código Tributário Nacional, do Código de Processo Civil, da Lei nº 13.988/2020 e dos demais atos normativos regulamentadores.

O primeiro aponta para a possibilidade de discussão judicial com todas as garantias do sistema legal e constitucional, em especial a previsão do artigo 5º, XXXV, da Constituição de 1988. Esse entendimento, contudo, ocasiona a inusitada situação de uma parte da controvérsia seja resolvida pelo poder judiciário, outra parte seja objeto de autocomposição e outra seja conformada para o futuro de acordo com entendimento da fazenda pública.

Essa opção, em uma análise teleológica, parece colocar em xeque a integridade transação tributária no contencioso, uma vez que seu propósito é a repressão de novos conflitos sobre o mesmo objeto conforme aduz Conrado (2021, p. 295). A criação de vários regimes jurídicos para cada parcela da controvérsia jurídica ocasiona uma disfuncionalidade do instituto, aproximando-o muito mais de uma feição arrecadatória.

Um segundo caminho seria permitir a adesão dos fatos geradores não autuados por meio de algo similar à denúncia espontânea prevista no art. 138 do CTN, em que o contribuinte ajustaria sua contabilidade e declararia o valor devido à autoridade fazendária. Nesta situação, não se teria uma lide de pretensão contestada, mas sim uma lide de pretensão insatisfeita, tal qual ocorre com a inscrição em dívida ativa, o que permitiria, em uma leitura teleológica, a adesão na transação do contencioso tributário, com aplicação da contraprestação devida pela fazenda pública, ou seja, descontos sobre o montante principal de até 50% do valor total do crédito, com prazos de pagamentos de até 84 meses.

Não se defende que todos e quaisquer tributos não devidamente constituídos possam ser alvo de transação. Porém, no caso em comento, no qual há autuação de tributo cujo fato gerador se protrai no tempo, não faz sentido que fatos geradores pendentes — não os constituídos, nem os futuros, posto que já regulados pela lei — fiquem de fora do acordo, sob pena de produzir a continuidade da situação litigiosa, e não a sua extinção.

Essa solução prestigia a funcionalidade e o propósito dos meios adequados de resolução de controvérsias, dando harmonia e coerência ao que se definiu e ao que há de se conformar para o futuro, evitando-se a criação de diferentes tratamentos para a mesma controvérsia jurídica. Como se sabe, o instituto é novo no âmbito prático, de forma que casos atípicos e excepcionais darão ensejo a boas reflexões, boas conversas e boas soluções, ortodoxas ou não.

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Referências Bibliográficas
CONRADO, Paulo. Transação Tributária na Prática da Lei nº 13.988/2020. Ed. 2021. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
DINIZ, Geila Lídia Barreto Barbosa. Comentários sobre transação tributária: à luz da Lei 13.988/20 e outras alternativas de extinção do passivo tributário. Coordenadores Claudio Xavier Seefelder Filho… [et al.]. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.


[1] Art. 17 (…) § 1º. O edital a que se refere o caput deste artigo: (…) III – estabelecerá a necessidade de conformação do contribuinte ou do responsável ao entendimento da Administração Tributária acerca de fatos geradores futuros ou não consumados.

[2] Art. 19. (…) § 1º O sujeito passivo que aderir à transação deverá: II – sujeitar-se, em relação aos fatos geradores futuros ou não consumados, ao entendimento dado pela Administração Tributária à questão em litígio, ressalvada a cessação de eficácia prospectiva da transação decorrente do advento de precedente persuasivo nos termos dos incisos I, II, III e IV do caput do art. 927 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), ou nas demais hipóteses previstas no art. 19 da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002.

[3] Art. 3º São objetivos da transação de que trata o art. 1º:
I – promover a solução consensual de litígios administrativos ou judiciais mediante concessões recíprocas;

II – extinguir litígios administrativos ou judiciais já instaurados sobre determinada controvérsia jurídica, relevante e disseminada;
III – reduzir o número de litígios administrativos ou judiciais e os custos que lhes são inerentes;
IV – estabelecer novo paradigma de relação entre administração tributária e contribuintes, primando pelo diálogo e adoção de meios adequados de solução de litígio; e
V – estimular a autorregularização e a conformidade fiscal.

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