Opinião

Silenciosa erosão do Tema 745 do STF (seletividade do ICMS) pelo STJ

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11 de agosto de 2022, 6h11

No portal do próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ), consta a seguinte tese para o Tema 430:

"No pertinente à impetração de ação mandamental contra lei em tese, a jurisprudência desta Corte Superior embora reconheça a possibilidade de mandado de segurança invocar a inconstitucionalidade da norma como fundamento para o pedido, não admite que a declaração de inconstitucionalidade, constitua, ela própria, pedido autônomo".

Mas o cotejo com o respectivo leading case (Recurso Especial Repetitivo 1.119.872/RJ) denuncia o descolamento entre a tese e a questão então equacionada, bem mais delimitada, conforme descrito pelo relator, ministro Benedito Gonçalves:

"A discussão dos autos diz respeito ao cabimento de mandado de segurança contra lei em tese, bem como sobre a possibilidade de o Tribunal a quo afastar a alíquota de 25% do ICMS incidente nas operações relativas à aquisição de energia elétrica e serviços de telecomunicações."

As premissas desse entendimento, no entanto, foram ofuscadas pela sua replicação indiscriminada, desferindo um duro golpe ao aprofundamento da (in) compatibilidade da tributação de energia elétrica e serviços de telefonia, a alíquotas até maiores do que as previstas para artigos supérfluos, com seletividade do ICMS, considerando a histórica preferência pelo mandado de segurança como instrumento para suscitar o controle difuso de constitucionalidade em lides de natureza fiscal [1].

Ainda assim, a discussão chegou ao STF, onde foi selecionada como Tema 745 da Repercussão Geral, cujo mérito foi julgado em 2021, com a fixação da seguinte tese:

"Adotada pelo legislador estadual a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços."

O peso ímpar desse precedente para o sistema, no entanto, não animou o STJ a reavaliar sua diretriz, sendo a tese vinculante do STF descartada como irrelevante sob o argumento de que o (des)cabimento do writ não ultrapassa o patamar infraconstitucional, mantendo-se, portanto, dentro da esfera de competência do próprio STJ, como se deu, exemplificativamente, na seguinte assentada:

"(…) MANDADO DE SEGURANÇA. ICMS. ENERGIA ELÉTRICA. ALÍQUOTA. IMPUGNAÇÃO CONTRA LEI EM TESE. NÃO CABIMENTO. 1. A Primeira Seção desta Corte de Justiça pacificou o entendimento de que suposta violação dos princípios da seletividade e da essencialidade na fixação da alíquota do ICMS incidente sobre energia elétrica e serviços de telecomunicação em 25% não pode ser suscitada em mandado de segurança, por se tratar de impugnação de lei em tese. 2. Segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, ‘a questão do preenchimento dos pressupostos de admissibilidade do mandado de segurança tem natureza infraconstitucional e a ela são atribuídos os efeitos da ausência de repercussão geral, nos termos do precedente fixado no RE n. 584.608, relatora ministra Ellen Gracie, DJe 13/3/2009’ (Tema 318/STF). (…)". (REsp 1.719.731/RJ, 2ª. Turma, relator ministro Og Fernandes, DJe de 20/6/2022).

No fim do dia, o grande "mérito" desse encaminhamento é tolerar a continuidade da cobrança da exação, mesmo sendo notória e incontroversa a sua inconstitucionalidade. O curto-circuito é evidente.

Mais ainda: no limite, o Tema 745 do STF corre sério risco de ser reduzido a uma inócua letra morta, por ser problemática a sua aplicação às novas demandas que os contribuintes derrotados se verão na contingência de ajuizar, tendo em vista a restrição dos efeitos da tese às ações propostas até 5/2/2021. Isso sem falar que, no rigor dos princípios, o óbice levantado pelo STJ  pelo menos a prevalecer o alcance que acabou por lhe ser atribuído  é oponível a qualquer outro tipo de ação [2].

E o problema não está apenas nas consequências, mas também nas próprias premissas do STJ para, virtualmente, esvaziar a tese do STF, sendo notável a artificialidade do corte feito para separar as duas dimensões da controvérsia.   

Com efeito, bem antes da consagração da primazia do mérito pelo atual CPC, o próprio STJ já vaticinava que "considerando a finalidade precípua do mandado de segurança, (…) as questões de forma não devem, em princípio, inviabilizar a questão de fundo gravitante sobre ato abusivo de autoridade" (Ag 1.076.626/MA, relator ministro Luiz Fux). Como, então, justificar, que fatores meramente processuais impeçam o afastamento de uma exação já declarada inconstitucional pelo STF? Ou, pior ainda, por que reverter julgados que chegaram a enfrentar o meritum causae, superando aquele óbice para conceder a segurança em linha com o Tema 745 do STF?

E a consistência jurídica do corte analisado é definitivamente infirmada quando se tem em conta que o próprio leading case julgado pelo STF (RE 714.139/SC) era, na origem, mandado de segurança, tanto mais porque o acórdão recorrido chegou a enfatizar a inadequação da via eleita [3], o que torna, quando pouco, plausível enxergar na sua reforma um silêncio eloquente do STF a respeito do suposto óbice processual.

De fato, se havia alguma dúvida sobre a viabilidade do controle difuso de constitucionalidade nesse específico contexto, é forçoso convir que ela foi espancada tão-logo o STF tratou de exercê-lo, sem que as possíveis limitações da ação mandamental o tenham impedido de fazê-lo proficuamente.

Assim, parece que o único antídoto eficaz para o anunciado déficit de autoridade e efetividade do Tema 745 do STF é a pronta revisitação do Tema 430 do STJ. Quanto menos, isso servirá para devolver as coisas aos seus devidos termos, remediando a aplicação descontextualizada da tese que acabou por se consolidar em prejuízo da respectiva ratio decidendi, a qual foi muito influenciada por fatores casuísticos da espécie concreta do REsp 1.119.872/RJ que, muito frequentemente, não se fazem presentes em outros casos tidos como análogos, como o próprio STJ tratou de (re)contextualizar em precedente incompreensivelmente pouco repercutido, a saber:

"(…) MANDADO DE SEGURANÇA  ICMS  ENERGIA ELÉTRICA  PRINCÍPIO DA ESSENCIALIDADE — ALÍQUOTA  SELETIVIDADE (…) 3. Inaplicável na hipótese o entendimento firmado no recurso representativo de controvérsia – REsp 1119872/RJ, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 13/10/2010, DJe 20/10/2010. Aqui a alegação de inconstitucionalidade da legislação estadual não é pedido autônomo, mas causa de pedir da ação mandamental. (…)". (RMS nº 34.560/RN, relatora ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 21/5/2013, DJe de 29/5/2013).

Na verdade, a possível "generalização" desse distinguishing apenas recolocará tais impetrações dentro das mesmas balizas das demais ações mandamentais tributárias, flexibilizando o rigor atípico (e injustificado) dispensado aos casos que evocam o Tema 745 do STF pela descontextualização do Tema 430 do STJ.

Mais do que promover a coerência e a integridade jurisprudencial prescritas pelo artigo 926 do CPC, espera-se que essa solução evite uma inédita "autofagia" do sistema de precedentes… 


[1] Esse aspecto foi melhor aprofundado em: FREITAS, Leonardo e Silva de Almendra. "Ainda o Controle Judicial da Seletividade da Tributação pelo ICMS (via mandado de segurança) e o STJ: a generalização do singular e a sofisticação do elementar". In: Revista Tributária de Finanças Públicas, n. 106, set-out/2012, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, pp. 200-225.

[2] P. ex.: "(…) ISS. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE LEI MUNICIPAL. ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI EM VIA PROCESSUAL INADEQUADA. DEMANDA CONTRA LEI EM TESE. (…) 2. No caso em análise, verifica-se que a pretensão deduzida pela autora consiste na 'inexigibilidade da Lei nº 133/2003 do Município de Araçatuba, precisamente dos itens 4.21 e 4.22, em razão de sua inconstitucionalidade' (fl. 35), não tendo pedido concreto para que fosse desonerada do recolhimento da exação nos moldes exigidos pelo fisco municipal. (…)". (Ag 1.285.413/SP, 1ª. Turma, relator ministro Benedito Gonçalves, DJe de 22/3/2011)

[3] Trecho da ementa: "Para que o pleito formulado pelo impetrante pudesse ser apreciado pelo Judiciário, seria necessário que, por algum meio de prova, o interessado demonstrasse peremptoriamente a incompatibilidade da norma estadual com a determinação constitucional. Mais: essa prova, no caso do Mandado de Segurança, deveria ser pré-constituída".

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