Opinião

É vedado o rejulgamento da causa em juízo de retratação

Autor

  • Fabiano Cotta de Mello

    é advogado professor universitário e mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Foi assessor técnico jurídico do TJ-RS e do TJ-MT.

10 de agosto de 2022, 16h02

O sistema de precedentes brasileiro exige intensa integração entre as instâncias do Poder Judiciário, sendo dever dos tribunais locais aplicar os precedentes qualificados formados pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos temas repetitivos e pelo Supremo Tribunal Federal na sistemática da repercussão geral.

Todavia, tendo em vista a jovialidade do stare decisis no direito nacional, não raro passa despercebida a seriedade e importância da decisão proferida pelo tribunal local no juízo de retratação previsto no artigo 1.030, II, do CPC, mormente porque o erro ou a aplicação indevida de precedente repetitivo não autoriza reclamação perante o STJ, na esteira do decidido recentemente pela Corte Especial no julgamento da Reclamação 36.476/SP.

Modo igual, após a reforma do CPC/2015 pela Lei 13.256/2016, também não mais é possível a interposição de agravo em recurso especial (AREsp) ou em recurso extraordinário (ARE) contra a decisão do tribunal de origem que nega seguimento ao recurso excepcional devido à conformidade entre o acórdão recorrido e o entendimento firmado pelo STJ em recurso especial repetitivo e pelo STF em recurso extraordinário com repercussão geral.

Por isso, a importância de o colegiado local, quando do juízo de retratação, restringir-se à análise da conformidade do acórdão anteriormente proferido com a tese fixada pelo STJ ou pelo STF, demonstrando que há identidade entre as questões e, por isso, merecem um tratamento isonômico e previsível.

Recorde-se que, na lição de Humberto Theodoro Júnior, a finalidade das sistemáticas da repercussão geral e dos recursos repetitivos é "evitar os inconvenientes da enorme sucessão de decisões de questões iguais, em processos distintos, com grande perda de energia e gastos, em tribunais notoriamente assoberbados por uma sempre crescente pletora de recursos" [1].

Como bem pontuado pela ministra Nancy Andrighi no julgamento da já referida Reclamação 36.476/SP, a razão de ser do sistema de precedentes é racionalizar a prestação jurisdicional do STJ, como forma de viabilizar o cumprimento da função constitucional de manter a uniformidade da aplicação da lei federal — a qual deve, obrigatoriamente, ser observada pelos demais juízes e tribunais para o tratamento isonômico e previsível de questões idênticas [2].

Portanto, é requisito legal do juízo de retratação, a demonstração cabal pelo juiz ou pelo Tribunal, através de elementos concretos, de que há identidade entre a questão de direito decidida pelo STF ou STJ no precedente qualificado e a questão objeto do recurso excepcional, sob pena de violação à Constituição Federal e ao Código de Processo Civil.

Relevante frisar que esse juízo de retratação não oportuniza ao tribunal local realizar um novo julgamento do recurso, com ponderações sobre a justiça ou injustiça do acórdão anteriormente proferido pelo colegiado, mas, apenas e tão somente, verificar se a questão julgada guarda identidade ou não com a tese jurídica vinculante.

A falta de técnica processual no julgamento do juízo de retratação, por exemplo, quando reabre a discussão constante do recurso já julgado, também configura violação à lei federal.  

Já se encontra na jurisprudência pátria manifestações de autocontenção de respeitados tribunais, acerca do juízo de retratação, enfatizando que a atuação do colegiado local fica restrita à análise da conformidade do acórdão anteriormente proferido com a tese fixada no precedente qualificado do STF ou do STJ, sob pena de violação ao artigo 1.030, II, do CPC, sendo descabido, neste momento processual, a reabertura da discussão anteriormente formada nos autos, com novo exame de todos os argumentos trazidos à corte por meio do recurso [3].

Em breve pesquisa jurisprudencial, constata-se que o próprio STJ — quando realiza juízo de retratação —, toma o devido cuidado na demonstração da racionalidade da fundamentação, identificando explicitamente os fundamentos determinantes do precedente vinculante e demonstrando, casuisticamente, se o caso sob julgamento se ajusta ou não àqueles fundamentos [4].

Acaso o tribunal não demonstre, através de elementos concretos, que há identidade entre a questão de direito decidida no precedente qualificado e a questão objeto do recurso excepcional interposto pela parte, terá desobedecido os comandos normativos dos artigos 1.030, II, 11 e 489, II, do CPC e violado a igualdade de tratamento para casos afins, as garantias constitucionais do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa e o dever constitucional de motivar adequadamente as decisões judiciais (artigos 5º, caput, LIV e LV, 93, IX, da CF/88).

Além disso, o acórdão deve ser considerado como não fundamentado e nulo de pleno direito, nos termos do artigo 489, §1º, V, do CPC, pois não terá analisado a ratio decidendi do precedente vinculante e tampouco confrontado o conteúdo do acórdão em juízo de retratação com os fundamentos determinantes do precedente qualificado, incorrendo em flagrante omissão. 

Ainda, haverá violação ao artigo 927, §1º, do CPC, uma vez que, quando o legislador federal determinou aos tribunais a observância dos acórdãos proferidos no julgamento de recursos extraordinários e especiais repetitivos, estabeleceu, expressamente, a necessária observância pelo tribunal do disposto no artigo 489, §1º, do CPC.

Nessa nova sistemática, ao operador do Direito incumbe ficar atento aos julgamentos de juízo de retratação.

Aos tribunais incumbe adotar, por princípio, a autocontenção;  e, com base na lei e na boa técnica processual, aplicar os precedentes qualificados apenas para a solução de questões idênticas — e que, por isso, ensejam tratamento isonômico e previsível —, identificando os fundamentos determinantes  do precedente e demonstrando, concretamente, que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.

Cumpre à advocacia, por sua vez, não aceitar julgamentos massificados e não fundamentados, com aplicação de precedentes vinculantes sem a observância dos requisitos legais;  devendo rebelar-se quando ocorrer rejulgamento da causa em sede de juízo de retratação, de modo a, oferecendo resistência e exigindo o cumprimento da lei processual, colaborar com o amadurecimento da aplicação da técnica de precedentes judiciais obrigatórios no sistema brasileiro. 

 


[1] Curso de Direito Processual Civil, Vol. III, 47ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1.133.

[2] Trecho do voto proferido no julgamento da RCL 36.476/SP, Corte Especial do STJ, relatora ministra Nancy Andrighi, DJe: 06.03.2020: (…) o mecanismo de julgamento de recursos especiais repetitivos surgiu, juntamente com outros institutos, como resposta do sistema processual ao fenômeno social da massificação dos litígios. Mediante um julgamento por amostragem, com eficácia obrigatória no sistema verticalizado judicial, o STJ fixa a tese jurídica a ser aplicada, nas instâncias ordinárias, nos demais processos com a mesma controvérsia.

Sua razão de ser concentra-se, assim, na racionalização da prestação jurisdicional do Tribunal, como forma de viabilizar o cumprimento de sua função constitucional de manter a uniformidade da aplicação da lei federal. Nesse panorama, o STJ se desincumbe de seu múnus definindo, por uma vez, a interpretação da lei que deve obrigatoriamente ser observada pelos demais juízes e tribunais, viabilizando-se que questões idênticas recebam tratamento isonômico e previsível.

[3] AGRAVO DE INSTRUMENTO. AGRAVO INTERNO. JUÍZO DE RETRATAÇÃO. LIMITES. REABERTURA DA DISCUSSÃO IMPOSSIBILIDADE.

1. Tendo os autos retornado por força do disposto nos artigos 1.030, II, e 1.040, II, do Código de Processo Civil, para exame da conformidade do acórdão já prolatado por este Tribunal com o entendimento adotado pelo STF no Tema 810 daquela Corte, com a finalidade de eventual juízo de retratação, cabe a este Juízo, neste momento processual, unicamente confrontar o conteúdo do acórdão prolatado pela Turma com o entendimento adotado pelo STF no referido Tema 810 daquela Corte, verificando a necessidade de realização de eventual juízo de retratação.

2. Em sede de juízo de retratação, a atuação da Turma fica restrita à análise da conformidade do acórdão anteriormente proferido com a tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no tema de repercussão geral em questão, sendo descabida, portanto, a reabertura da discussão, com novo exame de todos os argumentos trazidos a esta Corte por meio do agravo de instrumento.

(TRF 4ª Região, AgInt em AI 5000568-88.2014.4.04.000/RS, relatora desembargadora Federal VÂNIA HACK DE ALMEIDA, julgado em 26.08.2020).

[4]  Recurso em Mandado de Segurança 61.069/MT, T1 do STJ, relator ministro BENEDITO GONÇALVES, DJe: 23.04.2021.

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