Opinião

Pejotização e o STF na RCL 47.843: novos desenhos contratuais trabalhistas

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8 de agosto de 2022, 13h18

A contratação de trabalhadores por meio de uma pessoa jurídica por eles constituída para prestação de serviços profissionais  que recebeu na doutrina e jurisprudência sua nomenclatura no neologismo pejotização  teve até agora sua validade reiteradamente rechaçada pela Justiça do Trabalho, tanto nos tribunais regionais quanto no Tribunal Superior do Trabalho.

O entendimento até então consolidado é que esse formato de contratação caracterizaria fraude à legislação do trabalho, mesmo havendo interesse do trabalhador, sob o argumento de que seria uma tentativa de mascarar a existência da relação de emprego, privando o indivíduo do recebimento dos benefícios legalmente garantidos aos empregados, tais como o recebimento de férias acrescidas do terço constitucional, décimo terceiro salário e direitos oriundos da norma coletiva da categoria.

Os precedentes sobre o tema são inflexíveis, desconsiderando a característica personalíssima do profissional contratado como pessoa jurídica, ou seja, se o caso concreto envolvia um indivíduo hipossuficiente, altamente subordinado e dependente do tomador de serviços, ou um profissional altamente especializado e que recebia valores altos como retribuição por seus serviços. O fundamento dessas decisões se respalda na natureza imperativa, cogente e de ordem pública das normas trabalhistas, impedindo que a simples vontade das partes as derrogue.

Apesar dos recorrentes precedentes desfavoráveis sobre o tema na Justiça do Trabalho, essa modalidade de contratação permanece sendo utilizada por empresas e profissionais de forma contínua. Ou seja, se trata de um fato que não pode ser ignorado pelo Poder Judiciário, mediante aplicação indiscriminada e em abstrato da legislação protetiva à indivíduos que não necessitam dela e que, por meio de uma escolha racional e fundamentada, identificaram que tal arranjo lhes era mais vantajoso. Há verdadeira negação da autonomia da vontade das partes, mesmo quando a relação envolve profissional altamente capacitado e graduado.

Felizmente, uma bem-vinda guinada jurisprudencial sobre o tema teve origem no Supremo Tribunal Federal que, em fevereiro deste ano, ao julgar a RCL 47.843, fixou uma tese que vai de encontro à então consolidada jurisprudência trabalhista, estabelecendo que é "lícita a terceirização por 'pejotização', não havendo falar em irregularidade na contratação de pessoa jurídica formada por profissionais liberais para prestar serviços terceirizados na atividade-fim da contratante".

A tese se harmoniza com uma decisão anterior da Suprema Corte (ADC 66), no qual se julgou como constitucional o artigo 129 da Lei 11.196/2005, que permite a prestação de serviços intelectuais, em caráter personalíssimo ou não, por meio da constituição de uma pessoa jurídica. Da mesma forma, e diante do entendimento dos ministros de que a pejotização seria uma forma de terceirização de serviços, a decisão se alinha com o precedente estabelecido no julgamento da ADPF 324, no qual se entendeu como lícita a terceirização irrestrita das atividades empresariais.

Deve se notar que o STF não vinculou a validade jurídica da pejotização aos trabalhadores hiperssuficientes, como assim conceituados pela CLT. Essa conclusão pode ser obtida ao analisar-se o voto do ministro Luís Roberto Barroso, que pontuou corretamente que "não são só médicos, hoje em dia  que não são hipossuficientes , que fazem uma escolha esclarecida por esse modelo de contratação. Professores, artistas, locutores são frequentemente contratados assim, e não são hipossuficientes. São opções permitidas pela legislação".

Apesar da ausência de delimitação específica dos trabalhadores que se encontrariam abrangidos pela tese fixada em tal julgado, pode se identificar a vinculação aqueles tidos como profissionais liberais, que percebem remuneração em níveis elevados e têm pleno discernimento para optar pela modalidade de contratação que melhor atende seus interesses  não necessariamente portadores de diploma de nível superior, como exige a CLT para caracterização do hiperssuficiente. Há o reconhecimento de que o espectro de atuação das normas protetivas trabalhistas depende do grau de subordinação do trabalhador, tal como defendido na teoria rubinetto delle tutele, oriunda do direito italiano.

Esses profissionais têm em comum a prestação de serviços para diversos tomadores, especialmente os médicos, que usualmente atendem de forma simultânea diversas clínicas e hospitais, garantindo maior remuneração por seu trabalho. Caso fossem contratados no regime celetista, tal arranjo restaria impossibilitado, diante das rígidas imposições para cumprimento de uma jornada de trabalho e subordinação ao poder diretivo do empregador, inerentes ao vínculo empregatício. Dessa forma, é inegável que a prestação de serviços como pessoa jurídica dá maior liberdade ao profissional, que não se encontrará sujeito às inflexíveis disposições da CLT.

Além disso, na comparação com o regime celetista, a opção pela contratação por meio de pessoa jurídica representa uma inegável vantagem financeira ao indivíduo em relação ao aspecto tributário, visto que muito mais interessante do que aquela imposta aos indivíduos contratados sob o  somente o imposto de renda poderia acarretar retenção na fonte de até 27,5% do salário do empregado. Da mesma forma, esses profissionais não possuem interesse em ter descontadas de sua remuneração contribuições para a previdência social (INSS), na medida em que, via de regra, optam por escolher regimes de previdência privada, mais adequados para sua faixa salarial e que proporcionam maiores rendimentos futuros.

Desta forma, após o proferimento da decisão em tela pelo STF (transitada em julgado em 27.05.2022), a pejotização passa a ser um novo e viável modelo de contratação de profissionais por empresas, se reconhecendo  finalmente  que a forma de contratação pode ser objeto de livre disposição de trabalhadores e tomadores de serviços. É claro que a contratação deve sempre envolver o notório e manifesto interesse do indivíduo por esse arranjo contratual, não podendo se tratar de uma imposição da empresa contratante  afinal, a decisão em tela não abrange eventuais cenários em que a fraude se encontre de fato caracterizada, hipóteses em que o vínculo de emprego ainda poderá ser reconhecido.

E, diante da possibilidade de se efetuar contratações não governadas pela legislação do trabalho, abre-se um infindável leque de possibilidades para se pactuar contratualmente previsões não admitidas na relação de emprego (por exemplo, as cláusulas de clawback), permitindo que as peculiaridades de cada ramo econômico sejam observadas, o que pode significar o surgimento de um novo e vibrante direito do trabalho.

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  • é sócia trabalhista do escritório Trench Rossi Watanabe.

  • é associado do Trench Rossi Watanabe e atua na área trabalhista, representando clientes de diferentes setores econômicos em ações judiciais estratégicas, individuais ou coletivas, bem como em demandas que envolvem o Ministério Público do Trabalho, além de atuação no setor consultivo.

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