Opinião

Resolução nº 465/2022 do CNJ: respeito ao formalismo processual?

Autor

  • Maíra de Carvalho Pereira Mesquita

    é mestre em Direito pela UFPE especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil professora na graduação e pós-graduação da Faculdade Damas da Instrução Cristã e cursos jurídicos defensora pública federal e coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Cível da Defensoria Pública da União.

8 de agosto de 2022, 18h19

O cenário pandêmico expandiu a realização das atividades em ambiente virtual, e não foi diferente na área jurídica. Além do processo em autos eletrônicos, reuniões de trabalho, audiências e sessões de julgamento telepresenciais tornaram-se rotina. Diariamente, links e mais links passaram a abarrotar nossas agendas.

Quanto à regulamentação dos atos processuais praticados em ambiente virtual, podem-se citar alguns regramentos relevantes, em ordem cronológica: (1) a Lei nº 11.419/2006 dispõe sobre a informatização do processo judicial; (2) a Resolução 185/2013 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu e regulamentou o Processo Judicial Eletrônico (PJe); (3) os artigos 193 a 199 do CPC/2015 tratam da prática eletrônica de atos processuais; (4) a Resolução 341/2020 do CNJ, expedida na pandemia da Covid-19, determinou aos tribunais a disponibilização de salas para depoimentos em audiências por videoconferência, viabilizando a participação dos excluídos digitais de tais atos processuais; e, posteriormente, (5) o CNJ regulamentou o "Juízo 100% digital" por meio da Resolução nº 345/2020.

O famigerado home office trouxe consigo a facilidade de trabalharmos no conforto de casa, sem precisar se preocupar com o tempo de deslocamento, trânsito e até choques de horário — passou a ser possível participar de eventos, no mesmo dia, "do Oiapoque ao Chuí".

Por outro lado, as carreiras jurídicas, de uma maneira geral, são conhecidas por uma maior formalidade nas vestimentas, inclusive por exigência para ingresso em fóruns e tribunais [1]. Entretanto, a imposição de utilização de terno, gravata e tailleur já recebeu ácidas críticas, seja pelo clima tropical, seja por criar uma "casta" de profissionais distantes da realidade social e da população em busca do acesso à justiça [2].

De uma forma ou de outra, diante do "dress code" jurídico, surgiu a preocupação de como vestir-se nas audiências virtuais. Apesar de as câmeras em geral não captarem a vestimenta da cintura para baixo, na tela, em geral as pessoas costumam aparecer vestidas dentro da "liturgia". Por outro lado, há notícias de situações inesperadas e constrangedoras no meio de audiências e sessões de julgamento telepresenciais, que logo viraram "memes" nas redes sociais [3].

Nesse contexto, em junho de 2022, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 465/2022, para instituir diretrizes para a realização de videoconferências no âmbito do Poder Judiciário. Dentre outras questões, dispôs sobre a identificação adequada na plataforma e sessão; a obrigatoriedade de o participante estar de câmera ligada, em condições satisfatórias e em local adequado; a utilização de fundo adequado de imagem.

Entretanto, um assunto um tanto quanto polêmico trazido pela referida Resolução é a recomendação do uso de vestimentas formais quando da realização de videoconferências. Especificamente, recomendou-se a "utilização de vestimenta adequada, como terno ou toga" para magistrados, advogados, membros da Defensoria Pública ou Ministério Público (artigos 2º, II; e 3º, II).

Em seguida, a Resolução 465/2022 CNJ previu que a recusa de observância das diretrizes nela previstas pode justificar a suspensão ou adiamento da audiência, bem como a expedição, pelo magistrado, de ofício ao órgão correicional da parte que descumprir a determinação judicial (artigo 3º §1º). Ainda, em situações excepcionais, em razão de peculiaridades locais, a referida Resolução permitiu aos tribunais criar regras específicas para dispensar o uso de terno ou beca, hipótese em que deve ser realizada, no prazo de 30 dias, comunicação ao CNJ (artigo 3º §1º).

A pergunta que fica é: a Resolução 465/2022 CNJ, sob o pretexto de regulamentar a realização de atos processuais telepresenciais, concretizou o formalismo processual?

Por ser o instrumento de realização e reconstrução da convivência social, o processo é fenômeno eminentemente cultural: a escolha da estrutura do procedimento, dos poderes conferidos ao juiz e às partes, as garantias processuais e definição de sua extensão, o método de cumprimento das decisões, enfim, todos os aspectos integrantes do processo são influenciados pela cultura. Ao considerar o processo produto da cultura e a técnica mecanismo de concretização dos valores culturais, Hermes Zaneti Junior esclarece:

"Processo é cultura, ligado ao exercício do poder e ao estágio de avanço político de uma determinada civilização. Portanto, a técnica somente serve à ideologia, compreendida em seu sentido de valores que informam as leis processuais. Atualmente, os valores que devem informar o processo são os dos direitos fundamentais, dos quais ele mesmo serve como exemplo, ressaltando ainda a dignidade da pessoa humana" [4].

A fim de concretizar direitos, o processo precisa passar por uma sucessão de atos a serem seguidos, cujas ordem e forma estão previamente determinadas. O Direito como forma aponta para a necessidade de garantias jurídico-formais para evitar comportamentos arbitrários [5]. Por esta razão, o processo judicial, ao instituir a formalidade necessária à (re)construção do Direito, representa uma garantia a todas as pessoas.

Assim sendo, inerentes ao processo estão os conceitos de forma e formalismo. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira[6] distingue a forma em sentido estrito e em sentido amplo: em sentido estrito, a forma consiste no invólucro do ato processual, a exteriorização do ato através de signos e requisitos a serem observados, enquanto a forma em sentido amplo, também chamada de formalismo, significa "a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e organização do processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalidades primordiais" [7].

Não se desconhece que a expressão "formalismo", muitas vezes, é utilizada em tom pejorativo, com menção ao formalismo exagerado ou negativo. Entretanto, trata-se de desvirtuamento do instituto. O formalismo processual, considerado o conjunto de normas para ordenação e coordenação do processo, constitui uma garantia contra o arbítrio estatal, bem como está intrinsecamente relacionado à cultura. Por outro lado, o culto exacerbado à forma, o formalismo negativo, pernicioso deve ser combatido, pois, ao fim e ao cabo, termina por dificultar a concretização do direto material e afastar as partes do efetivo acesso à justiça.

Identifica-se o formalismo exacerbado em diversas situações processuais, por exemplo: indeferimento de plano da petição inicial ou não conhecimento do recurso, sem que seja dada a oportunidade de as partes sanarem os vícios, em nítida afronta à norma fundamental da primazia do julgamento do mérito (artigos 4º e 932, parágrafo único, CPC); decretação de nulidades processuais sem que tenha havido prejuízo, ao arrepio do princípio da instrumentalidade das formas (artigos 276 e 277 do CPC); utilização de pronomes de tratamento e palavras extremamente rebuscadas; uso desnecessário de palavras em língua estrangeira; peças processuais e decisões extensas e prolixas.

O reconhecimento da adoção do sistema multiportas de resolução de conflitos pelo artigo 3º do CPC pressupõe uma ressignificação da garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional. Não basta facilitar ou viabilizar o acesso ao Judiciário; é preciso proporcionar a solução adequada para cada tipo de disputa — ao lado da decisão adjudicada, reconhece-se a importância dos meios consensuais. Da mesma forma, a utilização crescente do design jurídico e do direito visual (visual law) consistem em mecanismos para potencializar a comunicação processual e facilitar a compreensão da população em geral.

Sob essas premissas consideram-se adequadas ao formalismo processual as recomendações constantes na Resolução nº 465/2022 quanto a identificação adequada do participante na plataforma e sessão; a obrigatoriedade de estar de câmera ligada, em condições satisfatórias e em local adequado e/ou a utilização de fundo adequado de imagem. São medidas necessárias para a realização da audiência ou sessão de julgamento com lisura, tranquilidade e publicidade processual.

Por outro lado, a exigência de utilização de ternos e becas para realização de audiências por videoconferência, inclusive com a possibilidade de ofício aos órgãos correcionais, anda na contramão da busca por um processo democrático e acessível. Assim, ao que parece, a Resolução 465/2022 extrapolou a mera regulamentação da realização de atos processuais eletrônicos. Trata-se, infelizmente, de mais um exemplo de formalismo negativo na cultura jurídica brasileira.


[2] Sobre o tema, conferir: FONSECA, José Henrique Bezerra ; CAVALCANTI, Ricardo Russell Brandão . Manifesto do jurista informalista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, nº 6669, 4 out. 2021 . Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92777. Acesso em: 26 jul. 2022.

[4] ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo Constitucional: O modelo constitucional do processo civil brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 2.

[5] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 12. reimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 244.

[6] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil: proposta de um formalismo-valorativo. 4ª ed, rev., atual. e aument. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 25-31.

[7] Idem, p. 28.

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  • é mestre em Direito pela UFPE, especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil, professora na graduação e pós-graduação da Faculdade Damas da Instrução Cristã e cursos jurídicos, defensora pública federal e coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Cível da Defensoria Pública da União.

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