Segunda Leitura

Sistema penal e penas no crime de maus-tratos a animais domésticos

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

7 de agosto de 2022, 8h05

O tema recomenda que se resgate o aspecto histórico da proteção penal aos animais. O Decreto 24.645/1934, no seu artigo 3º, descrevia em que consistiam maus-tratos e, no artigo 2º, previa punição em multa e prisão celular de dois a 15 dias. Este decreto com força de lei, editado no regime ditatorial de Getúlio Vargas, foi muito importante, pois deu o primeiro passo na proteção dos não humanos contra a maldade dos humanos.

Spacca
Em 1967, durante o período do regime militar, a Lei 5.197, que tem boa parte de seus dispositivos ainda em vigor, tratou da proteção da fauna silvestre, ou seja, daqueles que vivem na natureza. No artigo 27 a chamada lei de proteção da fauna apontava condutas que configuravam uma contravenção penal, punindo-as com três meses a um ano de prisão simples ou multa. Algumas leis posteriores, como a 7.653/1988, agravaram a pena em determinadas condutas.

Nesta lenta evolução, os animais domésticos continuavam sendo resguardados pelo decreto de 1934, o que simplesmente significava proteção zero. Em 1997 formou-se uma Comissão para a elaboração de um anteprojeto de lei para crimes ambientais, na linha do previsto no artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII, da Constituição.

Na comissão que fez o anteprojeto, eu e o saudoso professor Eládio Lecey éramos favoráveis à inclusão dos animais domésticos na proteção penal. Um renomado professor era contra e argumentava que a futura lei se destinava à fauna silvestre e não aos domesticados. Muito embora forte o argumento, nós dois conseguimos convencer os demais participantes de que era preciso proteger todos os animais, indistintamente.

Nestas condições, veio a lume a Lei 9.605/1998, cujo artigo 32 deu proteção a cães, gatos, cavalos e outros espécimes cuja vida está atrelada à dos humanos. Mas a pena aos infratores era pequena, detenção de três meses a um ano, e multa. Raríssimos foram os estudos sobre os resultados da nova previsão legal, entre outras coisas porque as ações penais se processam nos juizados especiais criminais, onde as estatísticas são mais deficientes.

Por exceção, no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, fez-se levantamento de um período de cinco anos, ou seja, entre 2016 e 2020. Constatou-se que foram lavrados 9.237 boletins de ocorrência na polícia, procedidos 507 indiciamentos e oferecidas 225 denúncias. Revela a pesquisa que no quinquênio sobrevieram 61 condenações. Registre-se, contudo, que nos juizados a maioria das infrações resolve-se em transação e nestas o acusado pode optar por cumprir pena restritiva de direitos ou multa (artigo 76 da Lei 9.605/98).[1]

Mas, o certo é que os casos de maus-tratos aumentaram e passaram a ter mais publicidade, além do que a sociedade civil passou a preocupar-se mais com o tema, disto resultando a criação de grande quantidade de associações protetoras de animais. E assim, fruto de pressão de grupos de ativistas, foi aprovada a Lei 14.064/2020, que em dois parágrafos agravou fortemente a sanção penal:

1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.

2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.

Em 29 de setembro de 2020, em meio ao torpor da pandemia, com a TV exibindo ininterruptamente a quantidade de mortos aqui ou ali e o uso da vacina gerando debates acirrados, a nova e rigorosa pena para maus-tratos a cães e gatos entrou em vigor. A pena corporal de dois a cinco anos surpreendeu pelo rigor.

O crime ambiental tem peculiaridades próprias, tanto assim que possui um microssistema. Mas, por óbvio, ele faz parte do Direito Penal. E aí nunca será demais lembrar a lição de Anibal Bruno, para quem “o Direito Penal se apresenta como o conjunto das normas jurídicas pelas quais se exerce a função do Estado de prevenir e reprimir os crimes, por meio de sanções cominadas aos seus autores”.[2]

O conjunto de normas e princípios do Penal constitui um sistema. Giorgio Del Vecchio, com maestria, ensina que:

… em cada época histórica depara-se-nos um sistema normativo complexo, em cuja composição entram normas de várias espécies. No entanto, cada sistema tem uma certa unidade fundamental, enquanto as normas que regulam o operar de um determinado grupo de homens, num certo momento, devem ser, não obstante todas as diversidades, coerentes e não contraditórias entre si.[3]

Será a sanção aos crimes praticados contra cães e gatos coerente com o sistema penal brasileiro? Vejamos.

Causar ferimentos em um cão é conduta punida com dois a cinco anos de reclusão, portanto, mais grave do que praticar lesões corporais de natureza grave em alguém (artigo 129, parágrafo 1º, um a cinco anos), apropriar-se de um bem do qual tenha a posse (artigo 168, um a quatro anos) ou atirar uma pedra em um ônibus de transporte público em movimento (artigo 264, um a seis meses de detenção).

Qualquer pessoa de bom senso, inclusive os que não estudaram Direito, perceberá que algo está fora do razoável. Isto ficará mais flagrante para os estudiosos de Direito Penal, principalmente os que seguem as lições de Luigi Ferrajoli, que, inclusive, acena com “uma estratégia do direito penal que aponte, a longo prazo, a supressão integral das penas privativas de liberdade”.[4]

Então, é possível chegar-se a uma conclusão que une garantistas e punitivistas: “A redação do artigo 32 da Lei 9.605, de 1998, no seu artigo 32, parágrafos 1º-A e 2º, não é coerente com o sistema de penas do Direito Penal”.

Chegar a tal conclusão é fácil. Mas, o difícil e necessário, é apontar uma solução. De duas uma: a) revoga-se a Lei 14.064/2020, que elevou a pena; b) elevam-se outras penas, a fim de que fiquem coerentes com o sistema.

Na minha opinião, a segunda hipótese seria a correta. Com efeito, as sanções da Lei 9.605/1998, foram previstas para uma época em que os problemas ambientais eram outros, muito menores que os atuais. Por exemplo, submeter um caçador que mata uma onça ao juizado especial criminal, por infração ao artigo 29 da Lei dos Crimes Ambientais, cuja pena de seis meses a um ano de detenção e multa é simbólica, fere o bom senso.

Uma singela leitura dos demais artigos revela o quanto há a se alterar. Em 1998 pouco ou nada se falava sobre mudanças climáticas, a Amazônia não estava tomada por organizações criminosas, desastres ambientais não faziam parte da agenda, além de outras tantas condutas cujas consequências se tornaram mais graves e ameaçam a humanidade.

Portanto, o que se tem a fazer é uma revisão completa da Lei 9.605/1998, aumentando parte das penas nela existentes (por exemplo, o artigo 29 citado) e criando outros tipos penais (por exemplo, desastres ambientais).

Com a palavra aqueles que tem iniciativa, o Ministério do Meio Ambiente e os parlamentares do Congresso Nacional.

[1] GZH Geral. Bruna Viesseri. Mais de 66% dos processos por maus-tratos a animais no RS não resultaram em condenações. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2020/10/mais-de-66-dos-processos-por-maus-tratos-a-animais-no-rs-nao-resultaram-em-condenacoes-ckfzx4lod001h012to6ht1xcs.html. Acesso em 5 ago. 2022.

[2] BRUNO, Anibal. Direito Penal. Rio de Janeiro, Forense, 1967, tomo 1º, p. 14.

[3] DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. 5ª. edição. Coimbra: Armênio Amado Ed., 1979, p. 355.

[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 2ª. edição. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 2006, p. 379.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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