Opinião

Natureza jurídica do RMA elaborado pelo administrador judicial

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7 de agosto de 2022, 7h04

O relatório mensal de atividades está positivado pela redação da alínea "c", inciso II, do artigo 22 da Lei nº 11.101/05, com a atual alteração do texto promovida pela Lei nº 14.112/20 (publicada em 30/3/2021).

Trata-se de uma das atribuições dirigidas ao administrador judicial e constitui, em suma síntese, na fiscalização das atividades da empresa/empresário em recuperação judicial.

Nas lições da ilustre doutrina de JOÃO PEDRO SCALZILLI, "como o devedor segue, por regra, no comando da empresa (debtor-in-possession), é importante garantir ao juízo, assim como aos credores, um fluxo constante de informações acerca das atividades do devedor e da execução do plano de recuperação. Esse canal de informações deverá ser abastecido mensalmente por relatório elaborado pelo administrador judicial acerca das atividades do devedor, assim como pelo relatório final sobre a execução do plano, previsto para depois do encerramento da recuperação judicial (LREF, artigo 63, III). Tudo isso de acordo com o artigo 22, II, 'ç' e 'd', da LREF" [1].  

O propósito da norma é o de verificar as atividades e o regular funcionamento da empresa, não equivalendo, a toda evidência, a elaboração de auditoria periódica ou imposição de obrigação de natureza contábil, com habitualidade mensal.

Delimitar essa função é fundamental à medida que pode haver embaraço nos esforços de soerguimento, capitaneada por credor descontente com o processamento da recuperação judicial, mediante distorção da obrigação prevista em lei, com recorrente instalação de controvérsia sobre indicadores técnicos-contábeis.

Sobre esses indicadores, imperativo esclarecer que o administrador judicial deve adotar, como técnica de fiscalização, a elaboração de dois expedientes de controle: relatório de atividades e relatório contábil.

O relatório de atividades, de recorrência mensal, tem como escopo a análise de informações referentes ao funcionamento da empresa e indicativos da manutenção da atividade econômica, como os contratos existentes ou novos firmados com clientes/parceiros, a geração de empregos diretos ou indiretos, recolhimento de impostos, áreas de exploração, entre outras informações necessárias.

Por outro lado, o relatório contábil é aquele que faz análise das informações apresentadas pelos recuperandos, traduzindo em informações sobre a performance financeira da empresa fiscalizada.

Justamente a elaboração desse último expediente costuma gerado controvérsia, justamente por não haver suporte legal para a exigência mensalmente, embora recorrente a imposição da obrigação pelos juízos ou mesmo pelos credores, quando em verdade essa não é uma obrigação legal da empresa, por menos útil ao processo recuperacional, considerando o mote principiológico que sustenta o processo de recuperação judicial (Lei nº 11.101/05, artigo 47 c/c artigos 4º, 5º e 6º do CPC).

A obrigação legal imposta ao empresário rural é a de apresentação anual dos ajustes fiscais. Essa periodicidade, anual, é coerente com a dinâmica de administração de um pequeno negócio, já que não seria proporcional exigir um rigor contábil como aquele verificado em grandes corporações, que precisa apresentar mensalmente informações aos investidores, contando com grande equipe de contadores e administradores à disposição.

A coerência lógica da exigência legal (ajuste anual) se relaciona com o fato de que não poderia o poder público exigir demasiado rigor do pequeno empresário sob pena de inviabilizar o próprio desenvolvimento da atividade, já que imporia obrigação que tornaria mais dispendiosa a gestão contábil do que a própria gestão empresarial.    

Veja que não se questiona o direito de qualquer credor de obter informações ou esclarecimentos sobre as operações da empresa, mas o reconhecimento de que a sistemática da exigência contábil é limitada, no que concerne à recorrência, ao exigido pela legislação aplicável ao respectivo segmento.

De fato, ao produtor rural, a exigência de documentação contábil observa o disposto nos artigos 970 e 1.179, §2º, ambos do Código Civil, os quais estabelecem, expressamente, que o produtor rural e o pequeno empresário estão desobrigados a elaborar a escrituração contábil e demonstrações contábeis, conforme segue:

"Artigo 1.179. O empresário e a sociedade empresária são obrigados a seguir um sistema de contabilidade, mecanizado ou não, com base na escrituração uniforme de seus livros, em correspondência com a documentação respectiva, e a levantar anualmente o balanço patrimonial e o de resultado econômico.
§2º É dispensado das exigências deste artigo o pequeno empresário a que se refere o artigo 970.
Artigo 970. A lei assegurará tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário, quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes".  

Por sua vez, a própria Lei de Recuperação Judicial, no §3º do artigo 48, enfatiza que o produtor rural pessoa física, para comprovar os dois anos de atividade deve apresentas o livro caixa como documento hábil a demonstrar a atividade rural regular. Veja:

"Artigo 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de dois anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente:
§3º Para a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo, o cálculo do período de exercício de atividade rural por pessoa física é feito com base no Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir o LCDPR, e pela Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF) e balanço patrimonial, todos entregues tempestivamente".

Essa exigência, aliás, foi introduzida pela Lei nº 14.112/20, e tem o enfoque de tornar objetiva a exigência documental a que se submete o respectivo requerente.

Outrossim, temos que o Livro Caixa é formado pela Declaração de Imposto de Renda, e este é regulado pelo Decreto 9.580/18, o qual disciplina em seu artigo 50, Seção VII, a tributação dos rendimentos da atividade rural, bem como a forma de apuração (artigo 53). Transcrevo:

"Artigo 50. São tributáveis os resultados positivos provenientes da atividade rural exercida pelas pessoas físicas, apurados conforme o disposto nesta Seção ( Lei nº 9.250, de 1995, artigo 9º ).
Artigo 53. O resultado da exploração da atividade rural será apurado mediante escrituração do livro-caixa, que deverá abranger as receitas, as despesas de custeio, os investimentos e os demais valores que integrem a atividade ( Lei nº 9.250, de 1995, artigo 18, caput)."

Ou seja, o contexto legal de exigência documental contábil que deve ser observado pelo produtor rural não contempla a periodicidade mensal, mas com a periodicidade estabelecida em lei, sendo que qualquer indicador que componha a referida documentação acaba sendo afetado pela sistemática de gestão, não por resistência dos recuperandos, mas por natural dispêndio da administração contábil, razão porque deve ser compatibilizada a exigência aos preceitos normativos citados. 

O relatório de atividades mensal não significa a imposição de obrigação de auditoria, por menos de administração contábil mensal, mas objetiva a análise de informações referentes ao funcionamento da empresa.

A bem da verdade, essa preocupação  quanto a rigidez excessiva do controle das operações contábeis da empresa em recuperação — foi objeto de discussão quando da votação do projeto de lei nº 4.458/20 (projeto base da Lei nº 14.112/20), especificamente objeto da emenda plenário nº 30, a qual reconheceu que a obrigação legal não poderia impor ônus de auditoria, sob pena de desestimular a recuperação judicial. Confira a redação sobre a justificativa da alteração do texto:

"(…) O Projeto de Lei no 4.458, de 2020, necessita de ajustes de proteção aos atores envolvidos, sob pena de encararmos um desestímulo à recuperação judicial e consequente avalanche de falências no Brasil.
Em que pese ser absolutamente necessário que o administrador judicial seja diligente e busque a verdade real quanto às informações que presta aos agentes envolvidos nos processos de recuperação judicial e falência, a função deste é de longa manus e fiscal do juízo, não sendo razoável se lhe exigir que realize auditoria nas informações do devedor bem como ateste a veracidade e conformidade delas. Deve, todavia, apontar ao juízo situações nas quais porventura encontre informações equivocadas e/ou que não sejam verossímeis.
Portanto, a presente emenda tem o objetivo de substituir o verbo 'atestar' pelo verbo 'opinar', visto que o poder de atestar a veracidade e conformidade de informações é típico de auditor, não se podendo exigir do administrador judicial a tarefa de auditar contas. (…)".

O legislador ordinário discutiu, em ambiente que permite extrair a mais pura interpretação autêntica, que o objetivo da norma não é o de auditar contas mensalmente, mas opinar sobre as informações apresentadas.

Essa discussão denota que o objetivo da lei não é o de embaraçar a administração do pequeno empresário, que aliás, concentra esforço máximo de soerguimento durante o processamento da recuperação.

Assim sendo, é possível concluir que a exigência de apresentação de relatório contábil com recorrência mensal está em dissonância com a legislação de regência, motivo porque a boa prática recomenda moderação dos magistrados quanto ao rigor excessivo porventura verificado na imposição dessa obrigação, assim como moderação na prática dos próprios administradores judiciais, todos submetidos aos mesmos cercados legais.

Referências
CARVALHO. Hallison Fernando Nunes. Advogado (OAB/MT 29.469). Livre docente pela Unic Primavera do Leste.

SCALZILLI, João Pedro. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática de empresas e falência, João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli, Rodriguo Tellechea.  2. Ed. Ver. Atual. E amp. São Paulo: Almedina, 2017. Pág.201.


[1] SCALZILLI, João Pedro. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática de empresas e falência, João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli, Rodriguo Tellechea. — 2. Ed. Ver. Atual. E amp. São Paulo: Almedina, 2017. Pág.201.

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