Opinião

Decreto 10.828/21: regulamentação do mercado de ativos sustentáveis

Autor

  • Carlos Alberto Doering Zamprogna

    é advogado lotado na Consultoria Jurídica Adjunta de Negócios de Atacado Private Banking Mercado de Capitais e Marcas da Diretoria Jurídica do Banco do Brasil mestrando em Direito Tecnologia e Desenvolvimento pelo Instituto de Direito Público (IDP-SP) especialista em Direito Internacional Público e Privado pela Univerisade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em Direito Processual Civil pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc) e Finanças Investimentos e Banking pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-RS).

6 de agosto de 2022, 7h00

A preocupação com os limites do crescimento global remonta a 1972, quando publicado o relatório "Os Limites do Crescimento pelo Clube de Roma", que questionava a viabilidade de crescimento contínuo e seus impactos nos recursos naturais. Naquele momento, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou o Programa das Nações Unidas para o Meio-Ambiente (Pnuma), e os chefes de estado comprometeram-se com as questões socioambientais na Declaração de Estocolmo.

Em 1992, aconteceu no Rio de Janeiro a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Eco-92), que resultou na elaboração da Agenda 21. Já em 1997, o Protocolo de Quioto estabelece compromissos internacionais para mitigação do efeito estufa, e, em 2000, a Cúpula do Milênio, realizada pela ONU, lança o Pacto Global que dá origem aos oito objetivos de desenvolvimento do milênio (ODM). Em 2016, o Acordo de Paris pretendeu estabelecer uma resposta global à ameaça da mudança do clima, com o objetivo de reforçar a capacidade dos países para lidar com os impactos das alterações climáticas.

Em razão do crescente panorama de riscos ambientais e climáticos, a agenda ambiental foi gradualmente implementada também no Brasil, e, nesse contexto, podemos destacar a edição das Leis 12.187/09 (que institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima — PNMC); 13.576/17 (que dispõe sobre a Política Nacional de Biocombustíveis); 13.986/20 (que modifica a Lei 8.929/94 e é conhecida como "Lei do Agro") e os Decretos 10.828/21 (que institui a CPR Verde) e 11.075/22 (que estabelece os procedimentos para a elaboração dos Planos Setoriais de Mitigação das Mudanças Climáticas, institui o Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa).

Embora a Lei 12.187/09 estabeleça princípios, objetivos, diretrizes e instrumentos para a política nacional sobre mudança do clima, seu caráter programático é nítido, dependendo de regulamentação para operacionalização dos instrumentos e efetivação dos direitos e objetivos nela elencados. Exemplo dessa necessária definição é a previsão do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE)  mecanismo recomendado pelo Protocolo de Quioto e instituído pelo artigo 9º da Lei  cujas atividades deverão ser autorizadas e regulamentadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) [1].

Logo, depreende-se que o contexto histórico e o arcabouço normativo mencionados pretendem amparar o desenvolvimento de produtos sustentáveis, introduzindo políticas de respeito às práticas socioambientais, conhecidas como ESG (environmental, social and governance, na sigla em inglês) ou ASG (ambiental, social e governança, na sigla em português), que visam, dentre outros objetivos, reduzir os impactos das mudanças climáticas e incentivar atividades que não impactem ou ajudem a preservar o meio-ambiente.

Dentre essas medidas, o Decreto 10.828/21 regulamenta a emissão de Cédula de Produto Rural para as atividades relacionadas à conservação e recuperação de florestas nativas e de seus biomas, de que trata o inciso II do §2º do artigo 1º da Lei 8.929/94 [2], que resultem em redução de emissões de gases de efeito estufa; manutenção ou aumento do estoque de carbono florestal; redução do desmatamento e da degradação de vegetação nativa; conservação da biodiversidade; conservação dos recursos hídricos; conservação do solo; ou outros benefícios ecossistêmicos — que ficou conhecido como "CPR Verde".

Cabe destacar que o artigo 3º do referido Decreto determina que "para fins do disposto no artigo 3º da Lei nº 8.929, de 1994, a CPR de que trata o Decreto será acompanhada de certificação por terceira parte para indicação e especificação dos produtos rurais que a lastreiam".

Já o Decreto 11.075/22 estabelece os procedimentos para a elaboração dos Planos Setoriais de Mitigação das Mudanças Climáticas a que se refere o parágrafo único do artigo 11 da Lei nº 12.187 [3], de 29 de dezembro de 2009, e institui o Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Sinare).

Porém, mesmo que o Decreto n. 11.075/22 tenha regulamentado a Lei 12.187/09 no que diz respeito às diretrizes para uma política de baixo carbono, estabelecido os procedimentos para a elaboração dos Planos Setoriais de Mitigação das Mudanças Climáticas e instituído o Sinare, tanto o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE) ainda depende de regulamentação da CVM para ser efetivamente implementado no Brasil, quanto o próprio Sinare terá seu funcionamento definido em Ato conjunto dos Ministérios do Meio Ambiente (MMA) e da Economia (ME), conforme previsão do artigo 8º do Decreto [4].

Nesse contexto, verifica-se que ainda não foram definidas as regras específicas para organizar o mercado brasileiro de redução de emissões. Exemplo disso é a falta de definição de como serão mensurados, contabilizados e negociados os créditos de carbono, de metano e as unidades de estoque de carbono, previstos no artigo 2º do Decreto 11.075/22 [5], ou outros ativos financeiros sustentáveis que venham a ser definidos em regulação. Outro exemplo são os créditos de descarbonização (CBIO), previstos nos artigos 13 a 17 da Lei 13.576/17, cuja negociação no mercado também necessita de regulamentação [6].

Dessa forma, assim como não está definido o padrão das certificações de que trata o artigo 3º do Decreto 10.828/21 (que depende da regulamentação do Sinare), não são claros os critérios para aferição de quais produtos (ativos) poderiam ser utilizados como lastro para emissão da CPR Verde. Neste particular, importa saber se a CPR Verde estará restrita a produtos relacionados à conservação e à recuperação de atividades florestais, conforme estabelecido no artigo 2º do Decreto que a instituiu, ou se o escopo das atividades relacionadas será ampliado a outros produtos sustentáveis, por meio de normatização ou interpretação legal. Por ora, na carência de regulamentação mais específica, não vislumbramos segurança jurídica plena acerca dos critérios de certificação previstos no Decreto 10.828/2021 e/ou dos produtos sustentáveis que estarão aptos a lastrear a emissão de CPR Verde.

Diante desse contexto, embora as diretrizes para uma política sobre mudança do clima e de baixo carbono estejam instituídas no país, os procedimentos e a operacionalização do mercado ainda não estão devidamente estabelecidos, dificultando a definição de conceitos, estratégias e a implementação de negócios enquanto o mercado não estiver apropriadamente organizado.


[1] Artigo 9o O Mercado Brasileiro de Redução de Emissões — MBRE será operacionalizado em bolsas de mercadorias e futuros, bolsas de valores e entidades de balcão organizado, autorizadas pela Comissão de Valores Mobiliários — CVM, onde se dará a negociação de títulos mobiliários representativos de emissões de gases de efeito estufa evitadas certificadas.

[2] Artigo 1º Fica instituída a Cédula de Produto Rural (CPR), representativa de promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantias cedularmente constituídas. (…) § 2º Para os efeitos desta Lei, produtos rurais são aqueles obtidos nas atividades: (…) II – relacionadas à conservação de florestas nativas e dos respectivos biomas e ao manejo de florestas nativas no âmbito do programa de concessão de florestas públicas, ou obtidos em outras atividades florestais que vierem a ser definidas pelo Poder Executivo como ambientalmente sustentáveis.

[3] Artigo 11. Os princípios, objetivos, diretrizes e instrumentos das políticas públicas e programas governamentais deverão compatibilizar-se com os princípios, objetivos, diretrizes e instrumentos desta Política Nacional sobre Mudança do Clima. Parágrafo único. Decreto do Poder Executivo estabelecerá, em consonância com a Política Nacional sobre Mudança do Clima, os Planos setoriais de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas visando à consolidação de uma economia de baixo consumo de carbono, na geração e distribuição de energia elétrica, no transporte público urbano e nos sistemas modais de transporte interestadual de cargas e passageiros, na indústria de transformação e na de bens de consumo duráveis, nas indústrias químicas fina e de base, na indústria de papel e celulose, na mineração, na indústria da construção civil, nos serviços de saúde e na agropecuária, com vistas em atender metas gradativas de redução de emissões antrópicas quantificáveis e verificáveis, considerando as especificidades de cada setor, inclusive por meio do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – MDL e das Ações de Mitigação Nacionalmente Apropriadas  Namas.

[4] Artigo 8º Fica instituído o Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa — Sinare, cuja finalidade é servir de central única de registro de emissões, remoções, reduções e compensações de gases de efeito estufa e de atos de comércio, de transferências, de transações e de aposentadoria de créditos certificados de redução de emissões. §1º Ato conjunto dos Ministros de Estado do Meio Ambiente e da Economia estabelecerá as regras sobre: I – o registro; II – o padrão de certificação do Sinare; III – o credenciamento de certificadoras e centrais de custódia; IV – a implementação, a operacionalização e a gestão do Sinare; V – o registro público e acessível, em ambiente digital, dos projetos, iniciativas e programas de geração de crédito certificado de redução de emissões e compensação de emissões de gases de efeito estufa; e VI – os critérios para compatibilização, quando viável técnica e economicamente, de outros ativos representativos de redução ou remoção de gases de efeito estufa com os créditos de carbono reconhecidos pelo Sinare, por proposição do órgão ou da entidade competente pelos referidos ativos. §2º Os créditos certificados de redução de emissões poderão ser utilizados para o cumprimento de limites de emissões de gases de efeito estufa ou ser comercializados com o devido registro no Sinare, de acordo com as regras estabelecidas na forma prevista no §1º. §3º A operacionalização do Sinare será de competência do Ministério do Meio Ambiente. §4º O Sinare será disponibilizado em ferramenta digital. §5º Ato conjunto dos Ministros de Estado do Meio Ambiente, da Economia e da Ciência, Tecnologia e Inovações poderá estabelecer mecanismos de compatibilização com o Sistema de Registro Nacional de Emissões, instituído por meio do Decreto nº 9.172, de 17 de outubro de 2017.

[5] Artigo 2º Para fins do disposto neste Decreto, consideram-se: I – crédito de carbono – ativo financeiro, ambiental, transferível e representativo de redução ou remoção de uma tonelada de dióxido de carbono equivalente, que tenha sido reconhecido e emitido como crédito no mercado voluntário ou regulado; II – crédito de metano – ativo financeiro, ambiental, transferível e representativo de redução ou remoção de uma tonelada de metano, que tenha sido reconhecido e emitido como crédito no mercado voluntário ou regulado; III – crédito certificado de redução de emissões – crédito de carbono que tenha sido registrado no Sinare; IV – compensação de emissões de gases de efeito estufa – mecanismo pelo qual a pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, compensa emissões de gases de efeito estufa geradas em decorrência de suas atividades, por meio de suas próprias remoções contabilizadas em seu inventário de gases de efeito estufa ou mediante aquisição e efetiva aposentadoria de crédito certificado de redução de emissões; V – Contribuições Nacionalmente Determinadas – NDC – compromisso assumido internacionalmente por signatário do Acordo de Paris para colaborar com o objetivo de limitar o aumento da temperatura global, a ser atingido pelo setor público, nas diversas esferas, e pelo setor privado; VI – agentes setoriais  integrantes dos setores a que se refere o parágrafo único do artigo 11 da Lei nº 12.187, de 2009; VII – mensuração, relato e verificação  diretrizes e procedimentos para o monitoramento, a quantificação, a contabilização e a divulgação, de forma padronizada, acurada e verificada, das emissões de gases de efeito estufa de uma atividade ou da redução e remoção das emissões de gases de efeito estufa de uma atividade ou projeto passível de certificação; VIII – meta de emissão de gases de efeito estufa  meta de emissão de gases de efeito estufa estabelecida nos Planos Setoriais de Mitigação das Mudanças Climáticas; IX – mitigação  mudanças e substituições tecnológicas ou medidas que reduzam o uso de recursos e as emissões de gases de efeito estufa por unidade de produção e que promovam o aumento dos sumidouros; X – padrão de certificação do Sinare  conjunto de regras com critérios mínimos para monitorar, reportar e verificar as emissões ou reduções de gases de efeito estufa aceitas para registro no Sinare; XI – unidade de estoque de carbono  ativo financeiro, ambiental, transferível e representativo da manutenção ou estocagem de uma tonelada de dióxido de carbono equivalente, assim compreendidos todos os meios de depósito de carbono, exceto em gases de efeito estufa, presentes na atmosfera; e XII – Planos Setoriais de Mitigação das Mudanças Climáticas  instrumentos setoriais de planejamento governamental para o cumprimento de metas climáticas.

[6] Artigo 17. Regulamento disporá sobre a emissão, o vencimento, a distribuição, a intermediação, a custódia, a negociação e os demais aspectos relacionados aos Créditos de Descarbonização.

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  • é advogado lotado na Consultoria Jurídica Adjunta de Negócios de Atacado, Private Banking, Mercado de Capitais e Marcas, da Diretoria Jurídica do Banco do Brasil, em São Paulo, mestrando em Direito, Tecnologia e Desenvolvimento pelo IDP-SP (Instituto de Direito Público – SP), especialista em Direito Internacional Público e Privado pela UFRGS (RS), Direito Processual Civil pela Unoesc (SC) e Finanças, Investimentos e Banking pela PUC-RS.

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