Freios e contrapesos

Populismo, autoritarismo e resistência: cortes constitucionais no jogo do poder (1)

Autor

  • Luís Roberto Barroso

    é professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) mestre pela Yale Law School. Doutor e livre-docente pela Uerj. Senior Fellow na Harvard Kennedy School. Ministro do Supremo Tribunal Federal.

3 de agosto de 2022, 19h01

Spacca

O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século 20, tendo derrotado as alternativas que se apresentaram ao longo das décadas: o comunismo, o fascismo, o nazismo, os regimes militares e os fundamentalismos religiosos. Nessas primeiras décadas do século 21, no entanto, alguma coisa parece não estar indo bem, num quadro que vem sendo descrito como de recessão democrática. Este artigo identifica três fenômenos que estão por trás desse processo histórico: o populismo, o extremismo e o autoritarismo, assim como suas causas políticas, econômico-sociais e culturais-identitárias. Após uma análise do contexto mundial, o texto coloca o foco na experiência brasileira dos últimos anos, narrando as ameaças à legalidade constitucional e a reação das instituições. Na parte final discutem-se os limites e possibilidades das cortes constitucionais no seu papel de defesa do constitucionalismo e da democracia.

1. Introdução
O texto que se segue procura fazer uma reflexão objetiva acerca do estado da arte da democracia no mundo e no Brasil. De início, assenta-se a ideia de democracia constitucional, com a demonstração de que foi ela a ideologia vitoriosa do século 20. Em seguida passa-se à análise do desgaste da democracia no mundo contemporâneo, num contexto que vem sendo referido como recessão democrática, democracias iliberais e constitucionalismo abusivo, em meio a outras qualificações depreciativas. O diagnóstico dos problemas do momento atual passa pela identificação de três fenômenos conceitualmente distintos, mas frequentemente associados, que são o populismo, o extremismo e o autoritarismo, bem como suas causas políticas, econômico-sociais e culturais-identitárias. Na sequência, abre-se um capítulo específico sobre o estado da democracia no Brasil, notadamente após as eleições de 2018 e, já agora, às vésperas das eleições de 2022. O capítulo final discute como as democracias sobrevivem, com ênfase no papel das cortes supremas ou cortes constitucionais, narrando histórias de sucesso e de fracasso. Em desfecho, procura-se identificar os fatores por trás dos casos em que as cortes constitucionais foram capazes de proteger a democracia em face do populismo autoritário.

2. A democracia no mundo: a ascensão do populismo autoritário
2.
1. A democracia e suas três dimensões
O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século 20. Nesse arranjo institucional fundiram-se duas ideias que não se confundem, quer nas suas origens, quer no seu conteúdo: constitucionalismo e democracia. Constitucionalismo remonta às revoluções liberais dos séculos 17 e 18 e significa, essencialmente, Estado de direito, poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. Sua consolidação nos países da Europa e nos Estados Unidos se deu ao longo do século 19. No Brasil, a Constituição de 1824 possuía alguns traços liberais, mas, na sua essência, trazia a marca da origem absolutista imprimida por dom Pedro 1º, ainda que atenuada, substancialmente, ao longo do segundo reinado. Democracia, por sua vez, desde suas origens gregas, significa participação popular no exercício do poder, soberania do povo, governo da maioria. O ideal democrático apenas se consolida, verdadeiramente, quando já avançado o século 20, com a consagração do sufrágio universal. Somente então viram-se inteiramente superadas as restrições à participação de todos no processo eleitoral, como as de renda, religião, raça e gênero.

Nada obstante, a maior parte das democracias do mundo reserva uma parcela de poder político para um órgão que não é eleito, mas que extrai sua legitimidade da competência técnica e da imparcialidade. Trata-se do Poder Judiciário, em cujo topo, no caso brasileiro, está o Supremo Tribunal Federal. Desde o final da 2ª Guerra Mundial, praticamente todos os Estados democráticos adotaram um modelo de supremacia da Constituição, tal com interpretada por uma suprema corte ou por um tribunal constitucional, encarregados do controle de constitucionalidade das leis e atos do Poder Executivo. Foi a prevalência do modelo americano de constitucionalismo, com a superação da fórmula que predominara na Europa, até então, que era a supremacia do Parlamento. Tais cortes e tribunais podem declarar a inconstitucionalidade de atos do Legislativo e do Executivo, tendo como um de seus principais papeis arbitrar as tensões que muitas vezes existem entre constitucionalismo e democracia — i.e., entre direitos fundamentais e soberania popular. Cabe a essas cortes e tribunais protegerem as regras do jogo democrático e os direitos de todos contra eventuais abusos de poder por parte da maioria, bem como resolver impasses entre os Poderes. Em muitas partes do planeta, elas têm sido um importante antídoto contra o autoritarismo [1].

Em suma: o Estado democrático de Direito, como referido no artigo 1º da Constituição brasileira, é um regime político fundado na soberania popular, com eleições livres e governo da maioria, bem como em poder limitado, Estado de direito e respeito aos direitos fundamentais de todos, aí incluído o mínimo existencial. Sem terem as suas necessidades vitais satisfeitas, as pessoas não têm condições de ser verdadeiramente livres e iguais. Há também um elemento emocional, humanístico, na democracia, que é o sentimento de pertencimento, de participação efetiva em um projeto coletivo de autogoverno, em que todos e cada um merecem igual consideração e respeito [2]. Quem se sente excluído não tem razão para apoiá-la e é presa fácil de tentações populistas e autoritárias.

A democracia contemporânea é feita de votos, direitos e razões. Isso dá a ela três dimensões diversas: a) a democracia representativa, que tem como elemento central o voto e como protagonistas o Congresso Nacional e o Presidente da República, que são agentes públicos eleitos pela vontade popular; b) a democracia constitucional, que tem como elemento central os direitos fundamentais e como protagonista o Poder Judiciário, em cuja cúpula está o Supremo Tribunal Federal [3]; e c) a democracia deliberativa, que tem como elemento central o debate público, o oferecimento de razões, de justificações para as decisões políticas, e como protagonista a sociedade civil [4]. De fato, a democracia não se limita ao momento do voto. Ela se manifesta, também, no respeito aos direitos fundamentais de todos, inclusive das minorias. Os derrotados no processo político majoritário não perdem a condição de sujeitos de direito e de participantes do processo político-social. Além disso, a democracia é feita de um debate público contínuo, que deve acompanhar as decisões políticas. Um debate aberto a todas as instâncias da sociedade, o que inclui movimentos sociais, imprensa, universidades, sindicatos, associações, cidadãos comuns, autoridades etc.

2.2. Democracia como ideologia vitoriosa do século 20 e a recessão democrática atual
Como assinalado logo ao início, o constitucionalismo democrático prevaleceu historicamente, em boa parte do mundo, sobre os projetos alternativos que com ele concorreram ao longo do século 20. Foram eles o comunismo, após a Revolução Russa de 1917; o fascismo, irradiado a partir da Itália de Mussolini, com início nos anos 20; o nazismo, sob a liderança de Hitler na Alemanha, a partir dos anos 30; os regimes militares, que dominaram a América Latina, a Ásia, a África e mesmo alguns países europeus no segundo pós-guerra; e o fundamentalismo religioso, que teve como marco a revolução dos aiatolás no Irã, em 1979. O modelo vencedor consagrou a centralidade e a supremacia da Constituição — e não do partido, das Forças Armadas ou das escrituras religiosas. Alguns autores chegaram mesmo a falar no fim da história, celebrando a democracia liberal como o ponto culminante da evolução institucional da humanidade
[5].

De fato, foram diversas as ondas de democratização [6]. Uma delas se deu ao final da 2ª Guerra Mundial, num ciclo que incluiu a Alemanha, a Itália, o Japão e mesmo o Brasil, que, no entanto, voltou a cair no autoritarismo nos anos 1960. A segunda onda veio nos anos 70, atingindo países como Portugal, Espanha e Grécia. Uma terceira onda se formou nos anos 80, em países da América Latina, como Brasil, Chile, Argentina, Uruguai. E, logo à frente, com a queda do muro de Berlim, os anos 1990 assistiram à democratização e reconstitucionalização dos países da Europa Central e Oriental, incluindo Hungria, Polônia e Tchecoslováquia. Também nos anos 90, com o fim do Apartheid, veio a democratização da África do Sul e de outros países no continente. Na virada para o século 21, mais de uma centena de países adotara esse modelo, de acordo com a Freedom House [7].

Apesar do sucesso narrado na breve retrospectiva feita acima, nos últimos tempos alguma coisa parece não estar indo bem. Há uma onda populista, extremista e autoritária atingindo inúmeras partes do mundo, levando muitos autores a se referirem a uma recessão democrática [8] ou a um retrocesso democrático [9], como já mencionado anteriormente. Os exemplos foram se acumulando ao longo dos anos: Hungria, Polônia, Turquia, Rússia, Geórgia, Ucrânia, Bielorrússia, Filipinas, Venezuela, Nicarágua e El Salvador, entre outros. Em todos esses casos, a erosão da democracia não ocorreu por golpe de Estado, sob as armas de algum general e seus comandados. Nos exemplos acima, o processo de subversão democrática se deu pelas mãos de presidentes e primeiros-ministros inicialmente eleitos pelo voto popular [10].

Em seguida, paulatinamente, vêm as medidas que pavimentam o caminho para o autoritarismo: concentração de poderes no Executivo, perseguição a líderes de oposição, mudanças nas regras eleitorais, cerceamento da liberdade de expressão, enfraquecimento das cortes supremas com nomeação de juízes submissos e expurgo dos independentes, novas constituições ou emendas constitucionais com abuso de poder pelas maiorias, inclusive para ampliação do período de permanência no poder, com reeleições sucessivas [11]. O grande problema com a construção dessas democracias iliberais [12] é que cada tijolo, individualmente, é colocado sem violação direta à ordem constitucional vigente. O conjunto final, porém, resulta em supressão de liberdades, de eleições verdadeiramente livres e competitivas, bem como a fragilização das instituições independentes e dos árbitros imparciais. Este processo tem sido caracterizado como constitucionalismo abusivo [13] ou legalismo autocrático [14].

2.3. Três fenômenos diversos: populismo, extremismo e autoritarismo
Há três fenômenos distintos em curso em diferentes partes do mundo: a) o populismo; b) o extremismo; e c) o autoritarismo. Eles não se confundem entre si, apesar de muitas superposições, mas quando se manifestam simultaneamente — o que tem sido frequente — trazem graves problemas para a democracia constitucional. Populismo é um conceito que vem sendo intensamente revisitado nos últimos tempos, com a conotação frequentemente negativa de manipulação de medos, necessidades e anseios da população. Como regra, oferece soluções simplórias — e erradas — para problemas complexos, atendendo demandas imediatas que cobram preço alto no futuro
[15]. O extremismo caracteriza-se pela intolerância, pela inaceitação do diferente e pela rejeição ao pluralismo político, valendo-se comumente de ameaças de violência. E o autoritarismo envolve a repressão truculenta aos opositores, a intimidação ou cooptação das instituições de controle e diferentes formas de censura, permitindo o mando autoritário e sem accountability. A seguir, uma breve nota sobre cada uma dessas disfunções.

O populismo tem um núcleo ideológico bastante tênue, que é a divisão artificial da sociedade em "nós, o povo" e "eles, a elite". Na maioria dos casos, tem a marca de lideranças personalistas e carismáticas, que chegam ao poder com um discurso anti-establishment — mesmo quando claramente fazem parte dele — e se apresentando como "diferentes de tudo isso que está aí". O populismo possui, ademais, uma natureza antipluralista, na medida em que seus líderes se apresentam como os únicos representantes legítimos do povo, com exclusão de todas as outras forças políticas. Em rigor, não se trata de uma ideologia, verdadeiramente, porque é imperativo que venha acompanhado de alguma doutrina política que lhe é externa, seja conservadora, liberal ou socialista. De fato, populismos podem ser de esquerda (Perón, Evo Morales, Rafael Correa) ou de direita (Orbán, Erdogan, Duterte). Dentro dessa visão, o populismo é um arremedo de ideologia, que precisa ser combinada com outra, constituindo antes uma estratégia de discurso e de ação. Com frequência, vem associado a uma postura nacionalista e à exploração do sentimento religioso. Outra característica é a necessidade de apontar um inimigo, para embasar o discurso antagônico e beligerante, seja contra o comunismo, a globalização, os judeus, a imigração, os muçulmanos, um partido, um líder político ou qualquer outro que a ocasião ofereça [16].

O extremismo político [17] se manifestou, ao longo da história, em ambos os campos ideológicos [18]. Na quadra atual, o mundo assiste a uma onda radical de direita. Três dos países mais populosos do mundo — Índia, Estados Unidos e Brasil — estão ou estiveram, recentemente, sob lideranças com essa identidade doutrinária. Não figura sob esse rótulo, naturalmente, o conservadorismo político, cuja filosofia não entra em tensão com as instituições democráticas tradicionais [19]. O extremismo ameaçador é o que prega medidas como, por exemplo, fechamento do Legislativo, substituição integral dos juízes das supremas cortes, demonização da imprensa "elitista", das ONGs "esquerdistas" e que veem comunistas em toda parte. Intolerância, agressividade e violência frequentemente acompanham o ideário marcado por nativismo (nacionalismo mais xenofobia), machismo, misoginia, homofobia, racismo, negacionismo científico e ambiental, rejeição a organismos internacionais de direitos humanos, exploração abusiva da religião e discursos de ódio de naturezas diversas [20]. Com exceção de regimes ditatoriais, como o de Franco, na Espanha, e Pinochet, no Chile, a extrema direita, desde a 2ª Guerra Mundial, havia ficado confinada a minorias situadas na margem da história. Nos últimos anos, porém, ela vem ingressando no mainstream da política, chegando ao poder pelo voto popular e minando a democracia "por dentro" [21].

O autoritarismo, por sua vez, é recorrente na vida dos povos, desde o início do processo civilizatório. Com exceção dos breves e limitados períodos da era de ouro de Atenas e da República, em Roma, o despotismo, o mando feudal e o absolutismo acompanharam toda a trajetória humana. Esse quadro só começa a se alterar com as revoluções liberais do final dos séculos 17 e 18, sendo que a democracia só veio a se estabelecer, verdadeiramente, ao longo do século 20, como já assinalado. Ainda assim, houve recaídas dramáticas. Após a 2ª Guerra Mundial, a democracia se generaliza pelo mundo ocidental, em processos históricos ocorridos em diferentes partes do planeta, sucessivamente, incluindo Europa continental, América Latina, Europa Central e Oriental e África, como já detalhado. Não obstante essas ondas de democratização na segunda metade do século passado, o autoritarismo subsiste como uma tentação permanente em todos os continentes. Regimes autoritários implicam concentração de poder, com baixo ou nenhum grau de controle, enfraquecimento do Estado de direito e da separação de Poderes, perseguição a adversários políticos, censura à imprensa e ausência de eleições livres e competitivas. No mundo do populismo extremista, um fenômeno que tem se espalhado é a apropriação abusiva — porque formal, e não substantiva — do desenho institucional, conceitos e doutrinas da democracia constitucional para encobrir projetos autoritários [22].

Como se procurou demonstrar acima, populismo, extremismo e autoritarismo são fenômenos distintos, apesar de eventuais superposições. Ultimamente, porém, têm andado juntos, ameaçando a subsistência de inúmeras democracias. Em casos mais agudos, podem degenerar em fascismo [23]. Episódios como o Brexit, a eleição de Donald Trump e a reação à sua derrota mostram que nem mesmo democracias consolidadas escapam dos vendavais contemporâneos. Em países como Turquia, Hungria e Polônia, há mesmo dificuldade em se afirmar que a democracia tenha sobrevivido em todos os seus elementos essenciais. O populismo extremista e autoritário se utiliza de estratégias semelhantes nos diferentes países em que procura se instalar, e que incluem: a) comunicação direta com seus apoiadores, mais recentemente utilizando as mídias sociais; b) by-pass ou cooptação das instituições intermediárias, que fazem a interface do povo com o governo, como o Legislativo, a imprensa e organismos da sociedade civil; e c) ataques às supremas cortes e tribunais constitucionais, com a tentativa de capturá-las e ocupá-las com juízes submissos. Tais cortes têm, precisamente, o papel constitucional de limitar o poder. Na verdade, as constituições institucionalizam e limitam o poder político, atribuindo a tais tribunais o papel de fazê-la valer.

Impossível não registrar, nesse contexto, o impacto da revolução tecnológica ou digital sobre a vida contemporânea, com destaque para o papel desempenhado pelas mídias sociais. A internet revolucionou o mundo da comunicação interpessoal e social, ampliou exponencialmente o acesso à informação e ao conhecimento e, ademais, criou um espaço público onde qualquer pessoa pode manifestar suas ideias, opiniões e divulgar fatos. Nesse sentido, é impossível exagerar sua importância para a democratização da sociedade em escala global, universalizando bens e utilidades que anteriormente constituíam privilégios de alguns. No plano político, ela foi igualmente fundamental para processos históricos importantes – ainda que não inteiramente bem-sucedidos — como foi, por exemplo, a Primavera Árabe.

Anteriormente à internet, a difusão de notícias e de opiniões dependia, em grande medida, da imprensa profissional. Cabia a ela apurar fatos, divulgar notícias e filtrar opiniões pelos critérios da ética jornalista. Havia, assim, um controle editorial mínimo de qualidade e de veracidade do que se publicava. Não que não houvesse problemas: o número de veículos de comunicação é limitado e nem sempre plural, as empresas jornalísticas têm seus próprios interesses e, além disso, nem todos distinguiam, com o cuidado que se impõe, fato de opinião. Ainda assim, havia um grau mais apurado de controle sobre aquilo que se tornava público. A internet, com o surgimento de sites, blogs pessoais e, sobretudo, das mídias sociais, possibilitou a ampla divulgação e circulação de ideias, opiniões e informações sem qualquer filtro. A consequência negativa, porém, foi que também permitiu a difusão da ignorância, da mentira e de atentados à democracia.

Em todo o mundo, plataformas tecnológicas como Facebook, Instagram, YouTube, WhatsApp, Twitter e TikTok passaram a ter um peso importante no processo político-eleitoral [24]. Embora haja variação de país para país, as mídias sociais tiveram papel decisivo em eleições nos Estados Unidos, Índia, Hungria e Brasil, entre outras, bem como no processo de votação do Brexit. Um dos grandes problemas da atualidade tem sido o uso da internet e seus instrumentos para a disseminação de ódio, notícias falsas, desinformação e teorias conspiratórias por movimentos populistas, extremistas e autoritários, como estratégia para chegada ao poder e sua manutenção. Por isso mesmo, em diversas partes do mundo, legisladores e reguladores discutem a melhor forma de exercer o controle da internet, sem comprometer a liberdade de expressão [25]. Os alvos são os comportamentos coordenados inautênticos — uso de robôs, perfis falsos e outros esquemas para forjar engajamento e afogar manifestações de terceiros – e as campanhas de desinformação, além da prática de crimes (terrorismo, pedofilia etc). Cria-se um ambiente no qual as pessoas já não divergem apenas quanto às suas opiniões, mas também quanto aos próprios fatos. Pós-verdade e fatos alternativos são palavras que ingressaram no vocabulário contemporâneo. Uma das manifestações do autoritarismo é a tentativa de desacreditar o processo eleitoral para, em caso de derrota, poder alegar fraude e deslegitimar o vencedor.

2.4. Algumas causas da erosão democrática
Há um conjunto de fatores que conduziram ao avanço do populismo de direita em países diversos, incluindo os Estados Unidos, a Grã-Bretanha (Brexit) e o Brasil. É possível sistematizar esses diferentes fatores em três categorias: políticas, econômico-sociais e culturais-identitárias
[26]. As causas políticas estão na crise de representatividade das democracias contemporâneas, em que o processo eleitoral não consegue dar suficiente voz e relevância à cidadania. "Não nos representam", é o bordão da hora [27]. Em parte, porque a classe política se tornou um mundo estanque, descolado da sociedade civil, e em parte pelo sentimento de que o poder econômico-financeiro globalizado é que verdadeiramente dá as cartas. Daí a ascensão dos que fazem o discurso anti-elite, antiglobalização e contra a "velha política".

As causas econômico-sociais estão no grande contingente de trabalhadores e profissionais que perderam seus empregos [28] ou viram reduzidas as suas perspectivas de ascensão social [29], quer pela pobreza endêmica quer porque se tornaram pouco relevantes [30] no mundo da globalização, da nova economia do conhecimento e da automação, que enfraquecem as indústrias e atividades mais tradicionais [31]. Sem mencionar as políticas de austeridade pregadas por organizações internacionais e países com liderança econômica mundial [32], que reduzem as redes de proteção social. Por fim, as causas culturais identitárias: há um contingente de pessoas que não professam o credo cosmopolita, igualitário e multicultural que impulsiona a agenda progressista de direitos humanos, igualdade racial, políticas feministas, casamento gay, defesa de populações nativas, proteção ambiental e descriminalização de drogas, utilização da ciência como critério informador de políticas publicas, entre outras modernidades. Estas pessoas, que se sentem desfavorecidas ou excluídas no mundo do "politicamente correto", apegam-se a valores tradicionais que lhes dão segurança e o sonho da recuperação de uma hegemonia perdida [33].

Em interessante insight, Yascha Mounk observa que a democracia liberal padece de duas disfunções: (i) as democracias iliberais ou democracias sem direitos; e (ii) o liberalismo sem democracia ou direitos sem democracias. Ao analisar as democracias iliberais, em que líderes populistas eleitos vão paulatinamente suprimindo direitos, identifica três fatores que lhes dão causa: a estagnação social, a perda da hegemonia racial e a perda do filtro da mídia na comunicação social, pelo advento das redes sociais. Por outro lado, identifica ele, também, o que denominou de liberalismo sem democracia. Trata-se de fenômeno associado à maior complexidade da vida moderna, com perda do protagonismo do Legislativo como órgão de representação popular. De fato, nas últimas décadas, assistiu-se à ascensão de órgãos não eletivos na tomada de decisões que influenciam drasticamente a vida das pessoas, como, por exemplo, as agências reguladoras, os bancos centrais, as cortes constitucionais e órgãos e agências internacionais, que concretizam tratados e convenções internacionais [34].

*Texto originalmente publicado na revista Direito e Práxis

Continua parte 2.


[1] Samuel Issacharoff, Fragile democracies: contested power in the era of Constitutional Courts. Cambridge: Cambridge University Press, 2015, p. i.

[2] Ronald Dworkin, Is democracy possible here. Princeton: Princeton University Press, 2008, p. iii; e Ronald Dworkin, Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1997, p. 131.

[3] Para deixar claro, a corte suprema dá a última palavra, mas não é a "dona" da Constituição: sua interpretação deve levar em conta os demais atores institucionais e o sentimento social. V. Luís Roberto Barroso, Contramajoritário, representativo e iluminista: os papeis das cortes constitucionais nas democracias, Revista Direito e Práxis 9:2171, 2018, p. 2219: "A jurisdição constitucional deve funcionar como uma etapa da interlocução mais ampla com o legislador e com a esfera pública, sem suprimir ou oprimir a voz das ruas, o movimento social e os canais de expressão da sociedade. Nunca é demais lembrar que o poder emana do povo, não dos juízes".

[4] Luís Roberto Barroso, Contramajoritário, representativo e iluminista: os papeis dos tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas. Revista Direito e Práxis 9:2171, 2018, p. 2200.

[5] Francis Fukuyama, The end of history. The National Interest, Verão de 1989; e Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man, N. York: Free Press, 1992. V. tb. Yascha Mounk, The end of history revisited. Journal of Democracy 31:22, 2020.

[6] V. Samuel P. Huntington, The third wave: democratization in the late twentieth century. Journal of Democracy 2:12, 1991. Huntington foi o primeiro a utilizar a ideia de "ondas de democratização": a primeira onda teria ocorrido na primeira metade do século XIX, quando os países crescentemente foram adotando a ideia de sufrágio universal; a segunda se deu após o fim da Segunda Guerra Mundial; e a terceira a partir dos anos 70. O texto é anterior ao florescimento de democracias após o fim do modelo comunista.

[7] Em 1900, nenhum país do mundo tinha seus governantes eleitos por sufrágio universal. Em dezembro de 1999, 119 países poderiam ser identificados como democráticos. V. Freedom House, End of century survey finds dramatic gains for democracy. 7 dec. 1999. https://freedomhouse.org/article/end-century-survey-finds-dramatic-gains-democracy. V. tb., Luís Roberto Barroso, Constitucionalismo democrático: a ideologia vitoriosa do século XX. Ribeirão Preto: Migalhas, 2019.

[8] Larry Diamond, Facing up to the democratic recession. Journal of Democracy 26:141, 2015

[9] Aziz Huq e Tom Ginsburg, How to lose a constitutional democracy. UCLA Law Review 65:78, 2018, p. 91 e s.

[10] Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, How democracies die. N. York: Crown, 2018, p. 3.

[11] Sobre o tema, v. o amplo levantamento feito por Mila Versteeg et al., The law and politics of presidential term limit evasion, Columbia Law Review 120:173, 2020, onde registrou: "Globally, no fewer than one-third of the incumbents who reached the end of their prescribed term pursued some strategy to remain in office".

[12] Aparentemente, o termo foi utilizado pela primeira vez por Fareed Zakaria, The rise of illiberal democracies. Foreign Affairs 76:22, 1997. Na prática política contemporânea, foi encampado pelo líder autoritário húngaro Viktor Orbán.

[13] David Landau, Abusive Constitutionalism. University of California, Davis Law Review 47:189, 2013.

[14] Kim Lane Scheppele, Autocratic legalism. The University of Chicago Law Review 85:545, 2018.

[15] A esse propósito, escreveu Samuel Issackaroff, The corruption of popular sovereignty, International Journal of Constitutional Law 18:1109, 2020, p. 1135: "Populism tends to pitch itself to base impulses, to desires for immediate reward, to disregard for the future, whether it be the destruction of the rainforest, the prorogation of Parliament, or the momentary inflation of the currency".

[16] Sobre a definição e caracterização do populismo, v. Benjamin Moffitt, Populism, Cambridge: Polity, 2020, p. 10 e s.; Cas Mudde, The populist zeitgeist. Government and Opposition 39:541, p. 543; e Jan-Werner Muller, What is populism? Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2016. ProQuest Ebook Central, http://ebookcentral.proquest.com/lib/harvard-ebooks/detail.action?docID=4674419. Created from harvard-ebooks on 2022-01-07 14:01:50.

[17] O extremismo pode se manifestar em diferentes domínios da vida, inclusive no plano religioso, como documentam inúmeros eventos históricos, da Inquisição ao Jihadismo.

 

[18] À esquerda, por exemplo, com Stalin e Pol Pot, e à direita, com Mussolini e Hitler.

[19] Conservadorismo, no sentido de preservação dos valores tradicionais, prudência nos processos de transformação social e ênfase no individual sobre o coletivo é uma das opções legítimas do mainstream político, estando ou tendo estado no poder em democracias consolidadas, como Alemanha, Reino Unido, França e Estados Unidos.

[20] Sobre o apelo emocional das teorias conspiratórias e sobre a degeneração do conservadorismo em extremismo, v. Anne Applebaum, Twilight of democracy: the seductive lure of authoritarianism. N. York, Doubleday, 2020, p. 45 e s.

[21] Sobre o tema e as ideias deste parágrafo, v. Cas Mudde, The far right today. Cambridge: Polity, 2019, especialmente p. 2, 3, 18, 20, 168 e 172.

[22] Rosalind Dixon e David Landau, Abusive constitutional borrowing: legal globalization and the subversion of liberal democracy. Oxford: Oxford University Press, 2021, p. 3 e 176: "[A]busive constitutional borrowing is a significant phenomenon, serving as a dark side of liberal democratic discourse and of comparative constitutional law".

[23] O fascismo se caracteriza por líderes que dividem em vez de unir, pela supressão de direitos dos não-alinhados, pela exaltação exacerbada da grandeza da nação e pela disposição de utilizar da violência e quaisquer outros meios para atingir seus objetivos. Sobre o tema, v. Madeleine Albright, Fascism: a warning. N. York: HarpersCollins, 2018, p. 11, 118 e 245.

[24] No Brasil, de acordo com pesquisa realizada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal em 2019, 79% da população tem como principal fonte de informação o Whatsapp. Em segundo lugar vem a televisão (50%), seguido do Youtube (49%), Facebook (44%) e portais de notícias (38%). Jornais impressos, apenas 8%. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-12/whatsapp-e-principal-fonte-de-informacao-do-brasileiro-diz-pesquisa.

[25] Sobre mídias sociais e seu impacto sobre a vida e as democracias contemporâneas, v. Luna van Brussel Barroso, Liberdade de expressão e democracia na era digital. Belo Horizonte: Fórum, 2022 (no prelo). V. tb. Francis Fukuyama, Making the internet safe for democracy, Journal of Democracy 32:37, 2021.

[26] Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, Revolução tecnológica, crise da democracia e mudança climática: limites do Direito num mundo em transformação. Revista Estudos Institucionais 5:1262, 2019.

[27] V. Manuel Castells, Ruptura: a crise da democracia liberal, 2018, digital, loc. 103.

[28] Em final de 2018, quando se realizaram as eleições presidenciais no Brasil, por exemplo, a taxa de desemprego estava em torno de 12%, alcançando mais de 13 milhões de pessoas. Rodrigo Polito e Ana Conceição, Desemprego no Brasil atinge mais de 12 milhões no fim de 2018. Valor Econômico, 31 jan. 2019.

[29] Samuel Issacharoff, Populism versus democratic governance. In Mark A. Graber, Sanford Levinson e Mark Tushnet, Constitutional democracy in crisis? Oxford: Oxford University Press, 2018, p. 447: "A combinação da desaceleração econômica depois de 2008 e o impacto do comércio globalizado nos salários nos países industrializados avançados manchou a legitimidade dos regimes democráticos como um jogo interno, um meio de institucionalizar as prerrogativas da elite"; e tb. Fernando Canzian, Em 40 anos, metade dos EUA ganhou só US$ 200 a mais. Fonte: Global Inequality. Folha de S.Paulo, 29 jul. 2019.

[30] V. Yuval Noah Harari, 21 lessons for the 21st century. N. York: Spiegel & Grau, 2018, p. 34 e s.

[31] Ronald F. Inglehart e Pippa Norris, Trump, Brexit, and the rise of populism: economic have-nots and cultural backlash. Working Paper Series 16-026, Harvard University, John F. Kennedy School of Government, 2016, p. 2. V. tb. Pipa Norris e Ronald Inglehart, Cultural backlash: Trump, Brexit and authoritarian populism. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.

[32] Andrew Trotman, Angela Merkel: 'Austerity makes it sound evil, I call it balancing the budget'. The Telegraph 23 Abr. 2013; Laurens Cerulus, Sigmar Gabriel: 'Merkel's austerity is driving EU to brink of collapse'. Politico 8 jan. 2017.

[33] V. Manuel Castells, Ruptura: a crise da democracia liberal, 2018, digital, loc. 178.

[34] Yascha Mounk, The people vs. democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2018, Edição Kindle, Partes I e II.

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