Opinião

Kelsen e a gata ou do enigma da justiça

Autor

  • Felipe Rodolfo de Carvalho

    é doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela FD/USP professor efetivo da FD/UFMT líder do Terceira Margem — Grupo de Pesquisa em Filosofia Literatura e Direitos Humanos da UFMT.

2 de agosto de 2022, 17h05

Chegou como que num pulo ali naquele lugar donde não se pode cair, no ponto em que o mais alto toca o mais profundo e se descobre enfim que as distinções são invenções humanas que erguem barreiras de contato. Ela, que nascera no umbigo do universo e por força dos deuses nele cumprira toda a sua sina, havia dado o seu último suspiro. Perdera suas patas espertas e brincalhonas, os olhos azuis-claros de esperança, a pelagem em marrom-paleta, rastro da terra de que tudo emana e à qual tudo retorna em seu cessar. O focinho delicado desaparecera, as antenadas orelhinhas haviam sumido e nem mais o charmoso bigodinho podia ser achado. Era agora uma alma.

Lá não existiam homens ou mulheres, animais ou plantas. Todos se reconheciam pelo nome, e nada mais do que isso era necessário. Recostada numa nuvem de algodão-doce, ainda assustada com o seu passamento, refletia sobre a sua curta trajetória de existir, lembrando-se de como gostava de infiltrar-se pelas manhãs e pelas noites numa sala repleta de tipos diversos, misturados numa mesma dança de cadeiras. O ar era um fresco refúgio para o mormaço do lado de fora. Por um instante, era como se os problemas do mundo não mais atormentassem. Um senhor de pé pronunciava algumas palavras e de repente um silêncio se fazia. Ela podia dormir enquanto aquela gente acordava, ali onde quaisquer eram estudantes. Como uma colega foi adotada e um designativo lhe concederam. E a impressão que sentia era a de que só então adquirira existência, ela que outrora apenas subsistia e por muito pouco não entrou para a lista de chamada.

– Mônica!?

– Sim! – respondeu, olhando derredor e procurando debalde identificar a direção daquele apelo.

– Sou eu, Kelsen. Descobri por acaso que deram o meu sobrenome a uma felina. Meio inusitado achei. Mesmo sendo tão conhecido, não tanto pelo que leram das minhas obras, muito mais sobre o que dela retrataram, não esperava ter o meu patronímico ligado ao reino animal. A senhorita há de perdoar a minha curiosidade. Com a sua chegada, quis logo conhecê-la. Criatura não há que não se deleite com a sua fortuna.

– Não faz mal. Muito prazer. Devo admitir que muito ouvi dizer a respeito de sua doutrina e nutria semelhante interesse por conhecer tão ilustre gênio. Se bem que gostasse mesmo era de tirar uma boa soneca com todo aquele discurso filosófico de fundo, minha atenção se despertava com a imagem de um triângulo no quadro, em cima do qual pairava soberana a figura abstrata de uma norma fundamental. Meu pescoço se dobrava e eu procurava entender o seu significado.

– Se de razão dispusesse, talvez entendesse sem empecilho o que com ela eu quis pontuar. Para atingir o seu pleno conhecimento, é requerido discernimento lógico — respondeu o erudito, esbanjando um orgulho malicioso.

– Sinto-me particularmente ofendida com o seu comentário. Por que não pensou numa teoria que qualquer um pudesse compreendê-la, gozando ou não das mais exaltadas faculdades mentais? Suspeito que sua elaboração dependa de um sujeito puramente racional, que não se pode farejar na realidade empírica. Somos todos muito frágeis.

– Talvez a senhorita tenha razão. Eu mesmo, depois que aqui cheguei, procurei por cada canto, mas não localizei em recinto nenhum a hipótese ideal que com tanta fervura defendi por anos a fio. Empurrado pela força ascendente que da morte jorra, subi degrau por degrau da minha escalonada estrutura normativa e nada lobriguei acima do topo. Estava suspenso no vazio e não sabia.

– Não era menos de se esperar: ou o senhor se equivocou ou de certo que se demorou em tornar-se filósofo. De toda sorte, não o julgo. Felizmente, não achava que o juiz é a boca que devotamente articula os termos da lei. O senhor me desculpe, mas, se assim fosse, a magistratura sofreria de uma grave disfunção na mandíbula. Que eu saiba os magistrados falam e, de quando em vez, falam até demais, com frequência em auxílio de uma justiça absoluta ou até mesmo de um alegado direito natural.

– Justiça! Com que trivialidade a suscitam, com que docilidade a manipulam. Se a história divisou um injustiçado, foi comigo que se deparou. Fui rotulado e maldito por minhas construções intelectuais, sem que com seriedade meus detratores procurassem assimilá-las.

– Com todo esse sentimento de autocomiseração, o senhor parece querer me fazer acreditar ser o único acautelado contra o uso temerário e escorregadiço da expressão. Cumpre então que me esclareça: com que direito invoca a nobilíssima insígnia da justiça? como pode se considerar injustiçado se crê apenas numa justiça relativa? não foi o senhor que tombou um mar de tinta para refutar a opinião de um justo objetivo e universal? afinal, justiça porventura encontrou nestas bandas do além do ser? – retrucou, numa espécie de avalanche interrogativa.

– Uau! Pois não estou diante de uma gata filósofa?

– Poupe-me da sua ironia. Fazer filosofia exige olhar o real com os olhos não acostumados. O que sabe tudo, não importando se se intitula animal racional, tem de privar-se um bocado de suas certezas sabichãs para redescobrir a graça e o mistério das coisas. Eu pelo menos confesso o meu estado de ignorância.

– Estimo, porém, que meu palpite não estava por inteiro incorreto. Demasiada o bastante é a justiça para caber numa mente tão estreita. Não há ciência que esteja em condições de penetrar sua grandeza. Por isso me contentei com a noção de um justo axiologicamente controvertido, por natureza impotente para aquilatar a validade do direito positivo.

– Receio que sua senhoria ainda não tenha transcendido suficientemente os sentidos que lhe concernem. Não quero postular que se possa dizer o que de fato a justiça é. Carrego comigo que ela seja mesmo indefinível, ainda que não fuja completamente do campo do manifestável. Por mais que as nossas sensações nos enganem, eu a reconheço no ato de dar a mão a uma criança aflita, no gesto de acolher um refugiado, na prática de resgatar um bichinho abandonado.

– Porque a senhorita me mostra, eu a vejo. Nem tudo é obra da inteligência própria. É preciso que alguém me dê a ver — asseverou, desalentado.

– Olhe comigo portanto. Para chegar definitivamente no plano superior, há que descer do salto, rastejar a base da pirâmide das normas e das espécies. Eu o acompanho — redarguiu, solidária.

Tudo então se iluminou, e a essência da justiça invadiu o pensamento do jurista, que, num susto, tomou consciência: a rigor, certas pessoas não morrem; elas adentram o mundo das ideias.

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