Opinião

O curioso caso dos IRDRs em segredo de justiça

Autores

  • Igor Moraes Rocha

    é mestrando em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDSP-USP) graduado em Direito pela UFMG e advogado.

  • Larissa Holanda Andrade Rodrigues

    é mestranda em Processo Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) pós-graduanda em Direito Empresarial (L.L.MIBMEC) pesquisadora do grupo de pesquisa e extensão "Observatório do Judiciário" membro do grupo de pesquisa PROC: Processualismo Constitucional Democrático e Reformas Processuais e do Observatório de Pesquisa Processualistas projeto vinculado ao Grupo de Pesquisa em Processo Civil Contemporâneo (UFC) e advogada.

  • Otávio Vilela

    é mestrando em Processo Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) pós-graduando em Agronegócios pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (USP/Esalq) pesquisador do grupo de pesquisa e extensão "Observatório do Judiciário" e advogado.

30 de abril de 2022, 6h11

A criação do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) foi, sem sombra de dúvidas, uma das mais comentadas novidades do atual CPC [1]. Tanto que seis anos depois de sua implementação, já existem mais de 600 [2] incidentes suscitados ao redor do país.

Entre tantas normas que se relacionam ao instituto, uma se destaca: a instauração e o julgamento do incidente serão sucedidos da mais ampla e específica divulgação e publicidade, por meio de registro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça. Trata-se de regra clara, retirada, letra por letra, do artigo 979 do CPC.

Se não bastasse a legislação processual civil, as resoluções 235/2016, 286/2019 e 339/2020 do CNJ determinam a necessidade de ampla e efetiva divulgação dos incidentes e de seus autos, também em ambiente virtual.

Sobre o tema, a doutrina enfatiza a importância que a publicidade tem para a manutenção e amplitude da eficácia vinculante da tese fixada no Incidente [3], inclusive por se tratarem de “produtos jurisdicionais potencializados” que exigem um novo modo de realizar a condução e gerenciamento dos processos, enfatizando a visibilidade, a transparência e a publicidade das atividades judiciais [4].

Ocorre que, apesar dos esforços dos tribunais, essa não é uma realidade em todos os casos. Para surpresa geral, pesquisa realizada pelo Observatório do Judiciário [5], grupo de pesquisa e extensão da UFMG, demonstrou a existência de diversos Incidentes que tramitam em aparente segredo de justiça no TJ-MG e no TJ-SP. 

Conforme a metodologia desenhada na pesquisa, foram encontrados 12 Incidentes nessa condição no tribunal paulista e oito no tribunal mineiro  os números representam aproximadamente 2,61% do total de Incidentes suscitados nesses tribunais.

Quase que desnecessário apontar a anomalia e prejudicialidade de tais achados, não apenas para a legitimidade dos referidos incidentes, bem como para a efetividade da aplicação das teses sendo por eles fixadas.

Nesse sentido, o total dos incidentes que tramitam em aparente segredo de justiça pode não ser expressivo, mas seus efeitos são perversos ao sistema e aos jurisdicionados. Entre eles destaca-se a impossibilidade, ou em nível menos grave a obstrução: 1) do exercício do contraditório e da participação democrática; 2) da consulta às teses veiculadas pelas partes e conhecimento daquelas que foram acatadas ou rechaçadas pelos respectivos julgadores;  3) da realização do distinguishing (que depende da ciência e demonstração das questões de fato) ou, por outro lado, da demonstração da similitude de um caso concreto ao Incidente e à tese fixada; 4) do pleito de suspensão de algum processo até a fixação da tese em IRDR relacionado; e, inclusive, 5) da realização de pesquisas acadêmicas aprofundadas sobre dados que não estão disponibilizados nas páginas dos tribunais e que somente podem ser obtidos através da análise dos autos dos Incidentes.

A intenção, com essas constatações, é permitir que a comunidade jurídica e os tribunais possam tomar ciência e trabalhar para melhorar o sistema como um todo, garantindo a efetividade e a legitimidade das teses fixadas em IRDRs  e quem sabe nos demais repetitivos que tramitam perante o STJ e STF.

Dessa forma, propõe-se, como solução, duas medidas.

A primeira, que a suscitação dos Incidentes ocorra apenas em processos que sejam públicos. Essa medida pode ser bem executada pelos (as) magistrados (as), que possuem a liberdade de escolha da causa objeto da suscitação  essa escolha deverá incidir sobre o processo que não esteja em sigilo e que esteja com maior maturidade para enfrentamento e exposição das questões que serão objeto da tese, conforme exposto por Sofia Temer [6] e Antônio do Passo Cabral [7].

A segunda medida capaz de solucionar o problema é a retirada do sigilo. Isso poderá ocorrer integralmente nos autos em que não constem as hipóteses do artigo 189 do CPC (artigo que versa sobre os processos que devem tramitar em sigilo), ou, caso essas hipóteses estejam presentes, deverá haver a necessária preservação dos dados eventualmente presentes nos autos mediante limitação da consulta pelo público  documentos sigilosos podem ser limitados por senha, nome de menores podem ser abreviados, dentre outros.

Não se desconhece que essas propostas podem ensejar dificuldades práticas na sua aplicação (inclusive, dificuldades tecnológicas e operacionais). Contudo, o que se sugere é que a comunidade jurídica se esforce para implementar a ampla e específica divulgação e publicidade prevista no artigo 979 do CPC, cuidando, caso a caso, para que quaisquer empecilhos sejam superados.

Somente assim será possível que todos tenham acesso às fundamentações adotadas pelas partes e às movimentações ocorridas, a fim de garantir o contraditório, a participação democrática e as pesquisas acadêmicas, a realização do distinguishing e, até mesmo, eventual pedido de suspensão dos autos até a fixação da tese em IRDR.


[1] Ver: GONÇALVES, Gláucio Maciel; DUTRA, Victor Barbosa. Apontamentos sobre o novo Incidente de resolução de demandas repetitivas do Código de Processo Civil de 2015. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 208, p. 189-202, 2015; MARINONI, Luiz Guilherme. O "problema" do Incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, v. 5, n. 49, p. 81-96, abr. 2016.

[2] ZUFELATO, Camilo (Org.). I relatório de pesquisa do observatório brasileiros de IRDRs: dados de Incidentes suscitados de 18 de março de 2016 a 15 de junho de 2018. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo, 2019. Disponível aqui. Acesso em 19 de abr. de 2022.

[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil: Volume único. 9. ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 1052. 

[4] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Incidente de Demandas Repetitivas: a luta contra a dispersão jurisprudencial excessiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 228.

[5] ROCHA, Igor Moraes; HOLANDA, Larissa; VILELA, Otávio. IRDRs inacessíveis: ensaio sobre autos em segredo de justiça e autos físicos no TJSP e TJMG. In: GONÇALVES, Gláucio Maciel; MAIA, Renata C. Vieira; ROCHA, Igor Moraes; TEODORO, Giovani Pontes (Org.). Estudos empíricos em processo e organização judiciária. Belo Horizonte: Editora Expert, 2022, p. 514-542. Disponível em: <https://experteditora.com.br/estudos-empiricos-em-processo-e-organizacao-judiciaria/>. Acesso em 19 de abr. de 2022.

[6] TEMER, Sofia. Incidente de Demandas Repetitivas. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2016.

[7] CABRAL, Antônio do Passo. A escolha da causa-piloto nos Incidentes de resolução de processos repetitivos. Revista de Processo, São Paulo, v. 231, nº 1, mai. 2014.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!