Opinião

A defesa do direito do outro como pilar da Justiça

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29 de abril de 2022, 21h16

A Constituição Federal tem duas funções. A primeira, fundamental para nossos interesses individuais, é garantir aquilo que desejamos e seu texto nos assegura. A segunda, ainda mais relevante, em especial para a paz social, é nos limitar naquilo que não concordamos. Deixar de honrar o império da Constituição naquilo que ela nos desagrada é abdicar moralmente daquilo que ela nos protege e onde resguarda o que queremos.

Como professor de Direito Constitucional, e me dirigindo aos meus alunos que me indagaram sobre o indulto, na modalidade de graça, concedido pelo presidente da República, respondo trazendo questões mais amplas.

Primeiro, é importante deixar claro que sou solidário às vítimas pelas ofensas sofridas. Não gosto do tipo "valentão", de ameaças e nem de discursos agressivos. Apesar disso, a consciência me manda ser mais solidário ainda aos mandamentos constitucionais que regem o Direito Processual Penal. Não gosto igualmente de regras processuais ignoradas, ainda mais de forma desigual para conservadores e progressistas.

Tenho visto alguns fenômenos mais estranhos e preocupantes do que os tempos estranhos que vivemos: parlamentares comemorarem poder cassar mandato de parlamentares adversários políticos, ao arrepio do artigo 55, §2º, da CF; advogados de defesa, antes ciosos dos direitos humanos, comemorarem condenações em processos nos quais vários princípios e normas processuais foram ignorados; a OAB se calar diante de multas por exercício da defesa e de réus cujos advogados não têm acesso aos autos e sequer sabem do que são acusados; cidadãos comemorando a hostilização de políticos da outra "bolha" esquecendo que isso gera cultura de violência que também atinge os políticos com os quais concordam; professores universitários sugerindo desrespeito à casa do outro, esquecendo-se que eles também possuem suas próprias casas e familiares; cidadãos se alegrando com hostilização de magistrados em suas residências, esquecendo-se que isso é um retrocesso civilizatório; jornalistas, antes ciosos da liberdade de imprensa, aplaudindo censura prévia vedada pela CF; intelectuais aceitando que o Estado queira assumir a tarefa de analisar o que é verdade e o que é mentira, suprimindo do cidadão essa faculdade; artistas que criticavam a ditadura chancelando restrições à liberdade de expressão.

O que mais se vê é indignação seletiva. Nessa mesma toada, vemos desprezados princípios que já deveriam estar consolidados: direito de defesa, contraditório, devido processo legal, sistema acusatório e, de todos o mais vandalizado, o completo desprestígio da noção de isonomia.

Dois pesos e duas medidas: eis nosso maior drama. Utilizando Karl Popper, muitos, numa leitura ruim do paradoxo da tolerância, idolatram a intolerância. Defendem democracia, mas querem que o adversário não a acesse. Aqueles que pedem respeito, desrespeitam. Multiplica-se o "ódio do bem". Usam o "lugar de fala" não de forma inclusiva mas para amordaçar o diferente. De um lado se fala "bandido bom é bandido morto" e, do outro, "fogo nos racistas". Nenhum dos lados lê o preâmbulo da Constituição, que informa os valores supremos: fraternidade, pluralismo, respeito, harmonia social e "solução pacífica das controvérsias".

Nesse cenário, é preciso insistir e professar velhas lições: o nosso direito termina quando começa o direito alheio, "dois errados" não fazem "um certo" e o fato de alguém discordar de nós não torna essa pessoa necessariamente má e não oblitera os direitos que a lei lhe assegura.

Indo além, digo que a luta, a defesa e o exercício dos direitos são apenas o assoalho do castelo da Justiça. Em seus píncaros, há duas torres que, quando visitadas, revelam a maturidade jurídica daqueles que o fazem, jamais se esquecendo que elas no alto do castelo permanecem. A primeira torre, a capacidade de abrir mão de um direito quando algum valor mais caro se apresenta. A segunda torre, o respeito pela norma que protege seus adversários.

Embora sofisticada, essa segunda ideia pode ser compreendida até mesmo por um cidadão mais simples: garantir o direito do outro, mesmo sendo momentaneamente um adversário, é garantir nosso direito no dia seguinte. Até mesmo os mais egoístas deveriam compreender essa lógica.

Perdemos em algum lugar da jornada global a sabedoria contida na frase atribuída a Voltaire, mas na verdade da lavra de sua biógrafa, Evelyn Beatrice Hall: "Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo". Hoje, muitos jovens, deseducados por professores irresponsáveis, defendem até a morte o inexistente direito de calar quem eles não concordam.

Hoje, mesmo diante do sistema acusatório, previsto na Lei Maior, e na recente lei do juiz de garantias, advogados e partidos políticos retornam ao período pré-iluminista e propugnam tratamento de bruxa para seus adversários: que não tenham direito à voz nem à defesa.

Martin Luther King Jr., um famoso ativista preto, pastor evangélico e norte-americano, uma vez disse:

"A covardia coloca a questão: 'É seguro?'
O comodismo coloca a questão: 'É popular?'
A etiqueta coloca a questão: 'É elegante?'
Mas a consciência coloca a questão, 'É correto?'
E chega uma altura em que temos de tomar uma posição que não é segura, não é elegante, não é popular, mas o temos de fazer porque a nossa consciência nos diz que é essa a atitude correta".

 A liberdade de opinião está arranhada no Brasil a ponto de não ser mais seguro criticar a Corte Suprema, nem popular defender a Carta Magna, e muito menos elegante dizer que se discorda. Aliás, a polarização vem cobrando de seus participantes adesão integral e acrítica a todo discurso "anti" o outro lado. Quem não adere a um pacote fechado mesmo que carregado de absurdos é visto com desconfiança, desqualificado ou mesmo expulso. Noutro caminho, Ronald Reagan alertava: "A pessoa que concorda com você 80% do tempo é um amigo e um aliado — não 20% do tempo um traidor".

Chegamos a um ponto em que, ignorada a Constituição (que só vale para os amigos), talvez devamos voltar ao ensino fundamental e reler O Pequeno Príncipe, de Exupery: as pessoas precisam construir pontes e não muros. Enfim, precisamos retomar o diálogo e as pautas comuns, os interesses de Estado e não apenas os de ideologias ou de governo.

 Aqueles que hoje comemoram as violações da Constituição que atingem os adversários, podem, em um futuro próximo, sentir saudades dos tempos em que se respeitava a Constituição em vigor. Os tempos mudam, são os valores perenes  que nos protegem: legalidade, respeito, direito de defesa, diálogo…

Outro estadista norte-americano, John F. Kennedy, em seu discurso de posse, em 1961, disse: " (…)Lembrem-se de que, no passado, aqueles que totalmente buscaram o poder cavalgando no dorso do tigre acabaram devorados". Hoje o equívoco se repete: muitos querem se livrar do outro cavalgando no dorso da tirania e do arbítrio, ou louvando-os. Amanhã podem ser devorados pelo tigre que hoje acariciam.

Lamento que este texto provavelmente seja aplaudido e vilipendiado pelos motivos errados: por aparentemente defender um lado e não o outro, e não pelo seu conteúdo jurídico. Luther King já disse: precisamos olhar o caráter (ou o conteúdo) e não a cor da pele (ou da ideologia).

Temos que legar à próxima geração uma boa herança civilizatória: podemos até errar, mas aplicaremos a mesma métrica de erro (ou acerto) a amigos e inimigos. Precisamos recuperar a ideia de isonomia. Como já foi dito, Chico e Francisco precisam ser tratados de forma igual diante de fatos semelhantes. Repetindo saudoso senador da República, temos que defender o certo mesmo quando ele nos prejudica e sermos contra o que é errado mesmo quando ele nos beneficia. Temos que ser contra o arbítrio contra nossos adversários e recusar a leniência indevida com nossos correligionários.

Enfim, temos que defender o direito do inimigo e a vigência da Constituição para todos. Sem isso, adeus, civilização! Adeus, Direito!

Autores

  • é desembargador Federal/TRF2, professor, escritor, mestre em Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho (UGF) e pós-graduado em Políticas Públicas e Governo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (EPPG/COPPE/UFRJ).

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