Opinião

Nova LIA e mudanças no âmbito do licenciamento ambiental

Autores

  • Mateus Stallivieri da Costa

    é advogado doutorando em Direito e Desenvolvimento pelo PPGD da FGV-SP mestre em Direito Internacional e Sustentabilidade pelo PPGD da UFSC e especialista em Direitos e Negócios Imobiliários e em Direito Ambiental e Urbanístico pelo Ibmec-SP.

  • Leonardo Bruno Pereira de Moraes

    é sócio do escritório Bornhausen & Zimmer Advogados professor doutorando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC e membro do Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da UFSC e da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

29 de abril de 2022, 7h04

No dia 26 de outubro de 2021 foi aprovado, sem vetos, o texto da nova Lei de Improbidade Administrativa. Apesar de fazer alterações diretamente na Lei 8.429/1992, sem revogar a totalidade do seu conteúdo, a Lei 14.230/2021 apresenta mudanças tão significativas que tem sido tratada como uma nova norma pela doutrina. Durante os últimos meses, os tribunais brasileiros passaram a enfrentar parte da repercussão da nova legislação, mas muitas outras são as consequências dessa alteração no nosso ordenamento jurídico.

Dessa forma, apresentamos aqui quais as principais modificações que devem afetar o instrumento do licenciamento ambiental, considerado por muitos o mais importante mecanismo de controle da Administração Pública para a proteção do meio ambiente.

Inicialmente, destaca-se que a Ação Civil de Improbidade Administrativa, ao longo dos anos, se tornou um elemento intensamente utilizado pelas diferentes esferas do Ministério Público para responsabilizar agentes públicos, bem como os particulares, que causavam algum tipo de dano ao Poder Público. Entretanto, a doutrina administrativista há tempos criticava o modo como a excessiva responsabilização por meros erros cotidianos sujeitava os gestores públicos às mais graves sanções, como multas e perda do cargo, ou, ao menos, à incômoda situação de permanecer anos como "réu em processo de improbidade".

Diante disso, o cenário passou a ser conhecido como "apagão das canetas" ou "direito administrativo do medo", nas palavras de Carlos Ari Sundfeld (Chega de Axé no Direito Administrativo) e Rodrigo Valgas (Direito Administrativo do Medo), que relatam o receio dos gestores nas tomadas de decisão.

Sendo assim, a nova Lei de Improbidade Administrativa tenta separar o joio do trigo, com o objetivo de permitir que a Administração Pública possa "dizer mais sim do que não", como na letra eternizada de "Tempos Modernos" composta por Lulu Santos. Isso ocorre por meio de alterações normativas que alteram o próprio alcance da LIA e a superação legislativa de entendimentos firmados pelo Superior Tribunal de Justiça durante as últimas décadas, que endureciam a legislação original aprovada pelo Congresso em 1992.

Com a Lei 14.230/2021, houve, por exemplo, a exclusão da hipótese de responsabilização em casos de condutas culposas  quando não há intenção de causar dano à Administração  e uma racionalização das responsabilidades referentes às violações aos princípios da Administração Pública. Antes, os gestores públicos poderiam responder a uma Ação Civil de Improbidade Administrativa caso os órgãos de controle considerassem que houvesse qualquer violação aos princípios da Administração Pública, ou seja, adotava-se um rol meramente exemplificativo na hipótese do artigo 11 da lei. Hoje, o rol passou a ser taxativo, trazendo segurança jurídica ao gestor, que não mais permanece à mercê da interpretação dos órgãos de controle.

Todas essas inovações são especialmente caras para quem trabalha com o meio ambiente. Com mais de 65 mil normas que regulam a área no âmbito federal e estadual, a insegurança jurídica tornou-se constante [1]. Segundo relatório do CNJ, somente em 2020 foram 57.168 novos processos envolvendo Direito Ambiental, sendo a "revogação/concessão de licença ambiental" o terceiro tema mais demandado, atrás apenas de "revogação e anulação de multas" e "danos ambientais", todos temas que inclusive se relacionam diretamente [2].

Torna-se natural, assim, o receio de alguns gestores e técnicos de órgãos públicos ambientais, que, muitas vezes tomados de uma preocupação genuína, acabam por evitar tomar certas decisões, gerando o fenômeno do "apagão das canetas". Em outras palavras, a insegurança acaba impedindo ou dificultando o exercício da própria atividade profissional, pois se visualiza no futuro não apenas a revisão dos atos, como até uma responsabilização de cunho pessoal dos agentes públicos envolvidos.  

Cabe então verificar quais mudanças trazidas pela nova lei podem afetar diretamente quem lida diariamente com o licenciamento ambiental.   

O licenciamento ambiental é um instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente (artigo 9º, IV da Lei 6.938/1981) previsto para a instalação e operação de todas as atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental (artigo 10 da PNMA), constando a sua definição na LC 140/2011 (artigo 2º, I). O principal objetivo do instituto é compatibilizar a proteção dos recursos naturais com o desenvolvimento social e o crescimento econômico, criando um controle prévio que permita evitar, mitigar e compensar impactos ambientais.

Os conceitos que norteiam a análise para a emissão das licenças acabam misturando concepções políticas, elementos objetivos e subjetivos, bem como qualitativos e quantitativos. Essas características afastam qualquer possível entendimento de vinculação na tomada de decisão dos gestores ambientais, ao mesmo tempo que não criam uma discricionariedade total, sendo comum a doutrina utilizar o conceito de discricionariedade técnica.

De forma simplificada, podemos entender que, pela discricionariedade técnica, o órgão ambiental precisa tomar a decisão com base em critérios técnicos e científicos, porém sempre considerando que esses não são absolutos ou munidos de certezas, podendo muitas vezes expor uma multiplicidade de alternativas. O que se realiza é um balanceamento, embasado, entre valores complexos [3].

Apesar da emissão de uma licença ambiental ser um ato fundamentalmente político, típico do Poder Executivo, ele exige fundamentação. Essa imprecisão, ou linha tênue, é justamente o que constantemente acarreta em discordâncias que podem ser levadas ao judiciário, alcançando assim os números já mencionados [4].

Essa situação de judicialização se repete quando falamos de responsabilização dos agentes públicos, mesmo que por meio da Lei de Improbidade Administrativa. Neste sentido, as mudanças trazidas pela Lei 14.230/2021 acabam alterando diretamente o regime, trazendo mais segurança para os responsáveis pela tomada de decisão quanto às licenças ambientais.     

Um dos pontos que trazia maior preocupação aos gestores públicos dos órgãos ambientais era justamente o rol exemplificativo do artigo 11, que enquadrava como ato de improbidade qualquer ação ou omissão que atentasse contra os princípios da Administração Pública, notadamente aqueles previstos no artigo 37 da Constituição: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Entretanto, em muitos casos também eram feitas referências aos princípios norteadores dos processos administrativos ou mesmo princípios "implícitos" do ordenamento jurídico, em especial os do Direito Ambiental. A indefinição e falta de delimitação de quais seriam os princípios, ou mesmo que atos configurariam como improbidade, causava enorme insegurança.  

Na revisão legislativa, o caput passou a conter a expressão omissão dolosa, tornando qualificada e mais restrita às condutas omissivas passivas de configuração como improbidade. Por outro lado, os incisos passaram a configurar um rol taxativo, superando assim a generalidade anterior. Hoje só será considerado improbidade administrativa se comprovada na conduta a intenção de obter proveito ou benefício (§1º), causando alguma forma de lesividade relevante (§4º).

Em relação ao licenciamento ambiental, a conduta do artigo 11 que deve ter maior repercussão é a prevista no inciso III, que trata da disponibilização de informações privilegiadas. Considerando que as licenças ambientais podem definir o futuro de empresas, inclusive as de capital aberto, o acesso adiantado a informações permite, por exemplo, que especuladores atuem no mercado de forma prévia ao conhecimento dos demais investidores.

Na vigência da redação anterior o STJ consolidou entendimento no sentido da necessidade de dolo genérico para condenação por improbidade, ao menos nas hipóteses de violação por princípios [5]. O legislador tratou de afastar logo no início da norma essa possibilidade, exigindo no artigo 1º §1º a existência de conduta dolosa, definindo no §2º o dolo como "a vontade livre e consciente de alcançar resultado ilícito", finalizando com a afirmação de que não basta voluntariedade do agente.

O §3º do mesmo artigo, volta a reforçar essa ideia, determinando que o mero exercício da função, sem fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade, não podendo, conforme o §8º, o agente ser condenado por ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa, ainda que não pacificada pela jurisprudência.

Essas previsões ganham extrema relevância no cenário do Direito Ambiental, onde grande parte dos temas ainda estão em debate no judiciário, com decisões antagônicas entre diferentes tribunais, e às vezes até mesmo dentro de uma única corte. 

Cabe ressaltar que a Lei de Crimes Ambientais, Lei 9.605/1998, continua prevendo, em seu artigo 67, a modalidade culposa para a conduta de conceder licença, autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais [6]. Dessa forma, ainda é possível que um agente público seja processado criminalmente por emitir, de forma culposa, uma licença em desconformidade com as normas ambientais, porém não mais por improbidade administrativa.

Nesse cenário, outra importante inovação é que sentenças, tanto penais como civis, que concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa da autoria terão, obrigatoriamente, efeitos na ação em trâmite (artigo 21, §3º). Ainda, a absolvição penal, em segunda instância, que discuta os mesmos fatos, impede a tramitação da Ação Civil de Improbidade Administrativa (artigo 21, §4º).

Por fim, outra inclusão importante é a diferenciação, em forma de previsão expressa, do cabimento da Ação de Improbidade e da Ação Civil Pública. No artigo 17-D, a lei tratou de deixar claro que, em virtude do seu caráter sancionatório e repressivo destinado a sanções de caráter pessoal, a Ação de Improbidade não deve ser utilizada para o controle de políticas públicas ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Para esses fins o Ministério Público deve atuar por meio do procedimento da Lei 7.347/1985, que rege a ACP.

Apesar dos avanços para garantir maior segurança jurídica, muitos pontos da lei ainda carecem de maiores debates e aprofundamentos por parte da doutrina. Uma das questões que têm gerado polêmica no Poder Judiciário está relacionada com a aplicação da Nova Lei de Improbidade Administrativa às ações em tramitação, que foram ajuizadas sob a égide das normas revogadas. Sobre esse ponto, o Supremo Tribunal Federal reconheceu em fevereiro do corrente ano a repercussão geral do Tema 1199 [7] e determinou, em março, a suspensão de todos os processos que estejam pendentes de julgamento no Superior Tribunal de Justiça.

Certamente, muitas outras discussões serão travadas a partir do momento em que tivermos sentenças e acórdãos fundamentados na chamada Nova Lei de Improbidade Administrativa. Neste breve artigo, buscou-se destacar alguns pontos da nova lei que devem influenciar as tomadas de decisões no âmbito da Administração Pública, em especial no que se refere aos Licenciamentos Ambientais. Espera-se que a redução da insegurança jurídica trazida pela Lei  14.230/2021 tenha reflexos positivos no Licenciamento Ambiental, de modo a consagrar a discricionariedade técnica, evitando a responsabilização do agente público que atua conforme a sua margem decisória e trazendo maior eficiência ao cotidiano da Administração.


[1] Atualmente o portal especializado RC Ambiental  Legislação Ambiental & Requisitos Legais contempla 66.297 atos jurídicos, entre Leis, Portarias, Instruções Normativas e demais normas estaduais e federais. Números atualizados em 17 de novembro de 2021.

[2] O relatório está disponibilizado no site do Conselho Nacional de Justiça, podendo ser consultado por meio do link: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso dia 14 de abril de 2022.

[3] Em virtude das limitações de espaço do presente artigo não abordaremos de forma exaustiva os limites e repercussões da discricionariedade técnica, porém recomendamos, para um aprofundamento do conceito, a professora Odete Medauar (Direito Administrativo Moderno. 21ª Edição. Belo Horizonte: Fórum, 2018, página 103 e seguintes). Em relação ao balanceamento de "valores complexos", recomendamos a leitura de Eduardo Fortunato Bim (Licenciamento ambiental. 5ª Edição. Belo Horizonte: Fórum, 2020, página 29 e seguintes).

[4] Em trabalho anterior analisamos de forma crítica a judicialização do Licenciamento Ambiental e os limites do Poder Jurisdicional. O capítulo "A Judicialização do Licenciamento Ambiental: uma análise do autocontrole do poder jurisdicional como manifestação do escopo político da jurisdição", foi publicado no livro Direito Ambiental e Cidades, encontrando-se disponível por meio do link: https://www.academia.edu/46934611/LIVRO_DIREITO_AMBIENTAL_E_CIDADES_e_book_vers%C3%A3o_mais_leve_. Acesso dia 14 de abril de 2021. 

[5] Nesse sentido, foram mencionadas algumas alterações em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-08/moraes-lei-improbidade-administrativa-stj. Acesso dia 14 de abril de 2022.

[6] No tocante ao crime previsto no artigo 67, o Projeto de Lei 2159/2021, chamado Lei Geral do Licenciamento Ambiental, em sua versão aprovada na Câmara dos Deputados, prevê a retirada da modalidade culposa (artigo 60). Para compreender as principais mudanças propostas pelo PL sugerimos a consulta do link: https://www.saesadvogados.com.br/2021/05/26/pl-da-lei-geral-do-licenciamento-ambiental-entenda-o-que-mudou-durante-a-tramitacao/. Acesso dia 14 de abril de 2022. 

Autores

  • é advogado, sócio do Saes Advogados, doutorando em Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), mestre em Direito Ecológico e Direitos Humanos pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pós-graduado em Direito e Negócios Imobiliários e em Direito Ambiental e Urbanístico pela Faculdade pela Faculdade IBMEC São Paulo, membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário e pesquisador do Grupo de Estudos em Direito Público (Gedip/UFSC).

  • é sócio do escritório Bornhausen & Zimmer Advogados, professor, doutorando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina, membro das Comissões de Direito Constitucional da OAB-SC, membro do Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da UFSC e da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

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