Pires na mão

'Emenda do Teto de Gastos foi golpe muito duro na Defensoria Pública da União'

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24 de abril de 2022, 8h42

O defensor público-geral federal, Daniel de Macedo Alves Pereira, faz um apelo ao Congresso Nacional: "Repense a questão da Emenda Constitucional nº 95, a Emenda do Teto (de gastos públicos)". Em entrevista à ConJur, o chefe da Defensoria Pública da União relata que a sua gestão tem focado na tentativa de obter mais recursos para financiar a atuação do órgão e para ampliar a sua capacidade de atendimento. O caminho tem sido manter diálogo com o Parlamento brasileiro e o Poder Executivo.

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Os efeitos da Emenda Constitucional 95/2016, que estabeleceu um limite de gastos para o poder público até o ano de 2036, são uma preocupação do defensor. "Foi um golpe muito duro na Defensoria Pública da União, que com um orçamento de R$ 606 milhões, frente a um orçamento de R$ 7,5 bilhões do Ministério Público, vem fazendo milagres. A sociedade é cada vez mais dependente da Defensoria. Não almejamos estar ao lado do poder, almejamos viabilizar o acesso à Justiça do rosto sofrido do empobrecido", diz ele.

O teto de gastos públicos limita o crescimento do orçamento da Defensoria, assim como de outros órgãos ligados ao governo, até a inflação registrada no ano anterior. A "Pesquisa Nacional da Defensoria Pública 2021" apontou que 86 milhões de brasileiros não tinham acesso aos serviços jurídico-assistenciais da DPU entre dezembro de 2020 e março do ano passado. Desse montante, 78 milhões de brasileiros se encontravam em situação de vulnerabilidade econômica com uma renda familiar de até três salários mínimos. O levantamento analisou que o país contava, em média, com um defensor público federal a cada 328.303 habitantes naquele período.

Macedo afirma que tem buscado diálogo com o Parlamento com o objetivo de incentivar a aprovação de projetos legislativos voltados à DPU. Neste mês de abril, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei 14.319/22, que transformou 21 cargos de defensor público federal de segunda categoria em 18 cargos de primeira categoria. A nova legislação é fruto do PL (Projeto de Lei) 4041/21, proposto pela Defensoria. Ele foi aprovado pela Câmara dos Deputados, na qual teve início a sua tramitação, e no Senado Federal. A nova lei concedeu também ao defensor público-geral federal a permissão para que, após ouvir o Conselho Superior da Defensoria Pública da União, transforme cargos de defensor público federal vagos. A legislação prevê que a conversão é possível, desde que não resulte em aumento das despesas do órgão.

A DPU também atua hoje para prestar auxílio jurídico à população diante dos efeitos da pandemia da Covid-19. Em meio à melhora da crise sanitária, o órgão prevê demandas ligadas ao período pós-Covid. "A pandemia deixou os seus grandes flagelos. A gente verifica o alto endividamento das famílias brasileiras e isso passa a ser um ponto central de diversos outros problemas".

Na conversa, o defensor público-geral federal disse ainda buscar diálogo com o Congresso Nacional e o Planalto com o objetivo de influenciar na elaboração de políticas públicas. A ideia é que a atuação da Defensoria possa ir além da judicialização.

Daniel de Macedo é defensor público há 15 anos. Atuou como defensor regional de Direitos Humanos no Rio de Janeiro e como defensor público-chefe em Guarulhos (SP). Também coordenou o Grupo de Trabalho em Saúde da DPU. 

Seu mandato teve início em janeiro do ano passado e se encerrará em janeiro de 2023. Macedo é mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de Coimbra e professor de Direito Processual Civil em instituições de ensino como Fundação Getulio Vargas, Ibmec Emerj, Cândido Mendes e Verbo Jurídico. 

Confira abaixo a entrevista:

ConJur — Pensando em um panorama geral, como o senhor avalia a atuação da Defensoria no ano passado?
Daniel de Macedo — A Defensoria teve uma atuação muito exitosa, pois no ano passado trabalhou no contexto de uma crise sanitária, fiscal e política, que ainda continua. É óbvio que com esse alto endividamento da sociedade brasileira, além dessas três crises, a sociedade começou a buscar ainda mais a Defensoria Pública da União. É a Defensoria que permite, por exemplo, o pagamento de auxílio emergencial, Loas (Lei Orgânica de Assistência Social), BPC (Benefício de Prestação Continuada). Ela quem faz essa ponte entre a sociedade civil e o Poder Judiciário. A Constituição acaba por definir duas funções primordiais para a Defensoria: ela é uma instituição nacional responsável por permitir o acesso à Justiça dos vulnerabilizados, mas ela tem outro papel mais fundamental ainda. É a instituição que promove os direitos humanos, então significa que a Defensoria no ano passado fez articulações com o governo federal, com o Congresso Nacional para discutir essas políticas públicas no seu nascedouro e no seu desenvolvimento. A Defensoria vem percebendo que precisa dar mais atenção à promoção dos direitos humanos, em participar na base da política pública do que apenas judicializar. Por exemplo, se eu tenho muitos pacientes precisando de medicamentos oncológicos em determinada região, entre judicializar cada uma dessas demandas e vir aqui no Ministério da Saúde e ter uma conversa franca informando que há um problema sério naquele estado, é melhor resolver na base da política pública.

ConJur — E agora que a pandemia está dando sinal de melhoras, que nós temos uma expectativa de que ela se encerre, como é que a Defensoria vê esse final de Covid-19? Qual a expectativa dela para atuar nesse novo período?
Macedo — A pandemia vem arrefecendo, diminuiu bastante a questão das internações hospitalares, mas ela deixou também suas consequências, os seus flagelos. Entre seus grandes flagelos hoje, além de todas essas crises que estão em desenvolvimento, verificamos o alto endividamento das famílias brasileiras. E isso passa a ser um ponto central de diversos outros problemas. Além disso, a emenda constitucional do teto (Emenda Constitucional 95/2016) ainda permanece produzindo seus efeitos funestos. Eu não posso com R$ 130 bilhões manter a saúde no Brasil com o mesmo valor de 2016, porque insumos, medicamentos e materiais estão todos atrelados ao dólar e tudo vem encarecendo. O processo inflacionário é uma realidade não só no Brasil, mas em todo mundo. Esses flagelos persistem e a Defensoria continua no seu papel de permitir o acesso à Justiça de famílias que antes não se encaixavam em um perfil de assistido, mas, hoje, passam a se encaixar, que são famílias que ganham até dois salários mínimos. Percebemos que após a pandemia houve um aumento exponencial de pessoas que buscam a Defensoria.

ConJur — Em relação a esse alcance do órgão, há um levantamento que a DPU divulgou no ano passado de que 86 milhões de brasileiros não tinham acesso a ela entre dezembro de 2020 e março do ano passado. E também há a Emenda Constitucional 80/2014, que dá um prazo até julho deste ano para aumentar o número de unidades da Defensoria. Como o senhor avalia essa questão?
Macedo — A emenda do teto (de gastos públicos), que é posterior à Emenda Constitucional 80, acabou neutralizando esta. Uma emenda determina que onde houver uma comarca com um juiz e um promotor, tem de ter um defensor. Na sequência, vem a emenda constitucional do teto. Essa acabou interrompendo um projeto constitucional de acesso à Justiça. Hoje, o retrato é que a Defensoria Pública, que está sobre a égide da emenda do teto, está presente em menos de 28% das seções e subseções da Justiça Federal. A consequência disso é que em todo o interior do país onde não há Defensoria Pública da União, aquela senhora que tem uma queda da própria altura tomando banho e fratura o fêmur e precisa ter entrada em um hospital de alta complexidade, ela não vai ter entrada. Aquele senhor que precisa de um BPC, de uma aposentadoria rural, de uma titulação de terra, ele não vai ter acesso ao Poder Judiciário. O motivo é muito simples: o advogado pro bono (voluntário) não vai atuar nessas causas. Primeiro, porque não interessa a ele; e segundo, porque ficamos à mercê de uma atitude muito voluntarista da advocacia. É preciso uma instituição forte, que tenha um compromisso institucional com a causa de levar o acesso à Justiça a essas pessoas. Além disso, nós trabalhamos com grupos vulnerabilizados: comunidades tradicionais, comunidade indígena, grupo LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Queer, Intersexo e Assexuais), segurança alimentar, grupos quilombolas… São pessoas que não têm ninguém por elas. Ao não fortalecer a Defensoria Pública, a gente acaba não fortalecendo a sociedade brasileira.

ConJur — No ano de 2022, quais são os maiores focos de atuação da Defensoria?
Macedo — Hoje ela tem 15 grupos de trabalho, que são comitês executivos. São grupos que ou socialmente e culturalmente precisam de um tratamento destacado, diferenciado, de atuação. Eles são extremamente marginalizados e precisam de uma atuação dedicada com recorte temático. Precisam de uma atenção e uma política pública específica. A DPU trabalha expedindo ofícios, recomendações, participando de reuniões aqui no centro do poder em Brasília e, por último, ajuizando ação coletiva quando houver necessidade. Além disso, nós trabalhamos para permitir acesso à Justiça nas ações individuais e aí vale rememorar: em toda ação contra União, autarquia e empresa pública federal cuja família tenha uma renda não superior a dois salários mínimos, a Defensoria Pública da União tutela o direito. E aí é um público-alvo de mais de 80 milhões de brasileiros.

ConJur — Uma outra questão é a Lei 14.312/22. Como o senhor avalia sua aprovação? Já podemos ver um impacto na atuação da Defensoria?
Macedo — É de suma importância a aprovação dessa lei. É uma grande vitória da Defensoria Pública da União, pois desde 2014 nós não aprovávamos um projeto de lei estruturante no Executivo, não de pauta regulatória. É um projeto de lei de remodelação na carreira de defensor público federal e é importante porque hoje eu tenho um desequilíbrio de forças de trabalho entre o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União em seis Tribunais Regionais Federais. Por exemplo, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, (que abrange o território de) Rio de Janeiro e Espírito Santo, eu tenho lá cerca de 46 procuradores regionais e 18 defensores regionais. E a diferença entre o MPF e a Defensoria é que nós trabalhamos com uma galeria aberta atendendo pessoas. Se alguém procurar o Ministério Público Federal para tutelar uma ação de medicamentos, eles inevitavelmente vão direcionar o assistido para a Defensoria Pública. Então a transformação desses cargos vai permitir que a gente equalize a força de trabalho entre os seis tribunais regionais federais e o tribunal superior. Então a importância é muito grande.

ConJur — E uma outra proposta é o projeto de Lei 3.038/21, que propõe a criação de um conselho gestor para gerir a utilização dos honorários advocatícios decorrentes da atuação dos defensores. Qual é o objetivo dessa proposta?
Macedo — O que acontece é que, com a emenda do teto, o Ministério da Economia entende que o valor que ingressa de honorários na Defensoria Pública da União sensibiliza o teto. Ou seja, por essa razão eles entendem que esse valor tem de ficar em uma conta específica do Ministério da Economia e a Defensoria não pode utilizar esse valor. Disso a gente discorda e, por essa razão, esses valores de honorários estão com previsão na lei complementar (LC 80/94) com finalidade de instrumentalizar a Defensoria Pública da União. Esse valor não é para pagar subsídio, não é nenhuma pauta corporativa. Na AGU (Advocacia Geral da União), os honorários de alguma forma vão para o bolso do advogado da União. Mas, na Defensoria, não. Esse valor tem uma destinação específica, que é o aparelhamento da Defensoria Pública. Então esse projeto veio primeiro como a necessidade de sinalizar para o Congresso Nacional que precisamos aprovar um comitê gestor desse fundo de aparelhamento da Defensoria. O defensor público-geral tem iniciativa de lei e está fazendo uso disso como interlocução com o Congresso Nacional e com o Poder Executivo.

ConJur — Há conversas hoje com o Parlamento brasileiro para seguir a tramitação do projeto? Como está essa interlocução?
Macedo — Sabemos que estamos em um momento eleitoral. Sabemos que os deputados retornam para as suas bases para participar de campanhas eleitorais, mas mantemos diálogos constantes com o líder do governo, na Câmara e no Senado, com os líderes de partidos, para demonstrar a importância desse projeto.

ConJur — Como está o processo de virtualização da Defensoria e qual a importância de tornar o órgão cada vez mais tecnológico?
Macedo — Entendemos que a pandemia acabou redesenhando a configuração de trabalho das instituições que formam o sistema de justiça. O teletrabalho passou a ser uma realidade e entendemos que, ao abrir esses canais tecnológicos para a sociedade, o trabalho também aumentou para a gente. Nós trabalhamos muito mais na pandemia do que antes da pandemia. Isso é um fato. Então a nossa ideia é criar ofícios de apoio remoto. Quase todo brasileiro tem acesso a um smartphone e ao WhatsApp. Então, se você integra com inteligência artificial, conseguimos permitir o acesso à Justiça via WhatsApp ou via um balão virtual no site da DPU. Ao concentrar esses ofícios em Brasília, por exemplo, eu vou dar uma uniformidade, vou definir fluxos de trabalho e vamos produzir muito mais com menos esforço. Então essa é a ideia: ampliar o acesso à Justiça, utilizar as ferramentas tecnológicas disponíveis para ter um atendimento mais efetivo.

ConJur — Com a melhora da pandemia, muda algo em relação a esse processo de virtualização?
Macedo — A pandemia acabou antecipando um processo que já estava iniciado na Defensoria Pública da União e o fato de a pandemia ter acabado ou estar na iminência de acabar faz com que tenhamos experimentado os benefícios da virtualização do mundo tecnológico. Acho que esse é um bom momento, que não há mais retrocesso nessa área e a Defensoria vai continuar no mesmo ritmo de virtualização, de utilização de ferramentas tecnológicas. Nós queremos muito menos prédios e mais tecnologia. Queremos menos estrutura e mais valorização do defensor.

ConJur — É um processo que não tem mais volta, tanto na Defensoria como na sociedade?
Macedo — Acho que é um processo irreversível, que veio para ficar, e os benefícios são imensos. O custo é menor e quando você investe em tecnologia, o retorno já é imediato.

ConJur — O senhor gostaria de dizer algo mais?
Macedo — É mais um apelo que eu faço ao Congresso Nacional para que repense a questão da Emenda Constitucional 95, a Emenda do Teto (de gastos públicos). Ela foi um golpe muito duro na Defensoria Pública da União, que com um orçamento de R$ 606 milhões, frente a um orçamento de R$ 7,5 bilhões do Ministério Público da União, vem tentando fazer milagres aqui. A sociedade cada vez mais depende da Defensoria Pública da União. Precisa da Defensoria Pública da União. Não almejamos ser o poder ou estar ao lado do poder. Almejamos simplesmente viabilizar o acesso à Justiça, ao rosto sofrido do empobrecido. Somente isso.

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