Opinião

Perdão presidencial a Daniel: legalismo versus juridicidade

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24 de abril de 2022, 10h04

Muitos advogados e juristas não duvidam da imoralidade do ato administrativo do presidente da República ao conceder perdão aos crimes cometidos pelo deputado Daniel Silveira. A dúvida reside na constitucionalidade do ato.

O advogado Alberto Rollo, especialista em direito eleitoral, por exemplo, em recente entrevista, afirmou que, assim como o Supremo Tribunal Federal teve resguardada a prerrogativa de julgar e condenar, o presidente da República também deve ter assegurada a de indultar, nos exatos termos do artigo 84, XII, da Constituição Federal. Assim, pouco importaria o motivo e a finalidade do ato, porque nem a Constituição Federal e tampouco a lei processual fazem qualquer restrição ao ato, exceto nos casos expressamente vedados pelo inciso XLIII do artigo 5º da Carta Política ("a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem").

Esse ponto de vista tem uma fonte doutrinária muita conhecida: o velho positivismo que dominou o direito até meados do século passado. Ao longo de mais de 100 anos, grandes expoentes do direito firmaram a ideia de que a lei seria regulada por uma das variantes do cientificismo que caracterizou as ciências físicas e biológicas do século 19. Os juristas desse período se encarregaram de retirar do direito seu conteúdo metafísico e axiológico. O mais notável deles todos foi Kelsen, para quem uma ordem jurídica não deveria ser questionada se é justa ou injusta, mas apenas e tão somente se era válida e eficaz, ou seja, se estaria de acordo com a forma pela qual fora produzida, bem representada na forma de uma pirâmide de normas, de cujo vértice emanaria um escalonamento de normas submetidas à hierarquia das normas inferiores pelas superiores. Não interessaria para o jurista o aspecto ético da norma, mas, tão-somente se fora produzida por um órgão competente.

Com o fim da Segunda Guerra, esse cientificismo jurídico entrou em notável crise depois que os nazistas, para justificarem o horror de seus atos, alegaram que apenas "obedeceram a lei".

Desde então, o mundo jurídico se viu obrigado a fazer uma grande reviravolta para salvar o direito da caduquice. Afinal, não tinha cabimento supor que a norma jurídica, que visa justamente estabelecer critérios para se diferenciar o justo do injusto, seria alheia a valores éticos. A norma não poderia ser vista apenas como uma regra, mas também formada de princípios. O legalismo deveria ser substituído pela juridicidade, isto é, a norma deve se pautar pela razoabilidade e pela proporcionalidade. Nesse sentido, veja o seguinte aresto do Superior Tribunal de Justiça:

[…] A expressão legalidade, que durante a primeira fase do Estado de Direito dominava a avaliação da validez dos atos administrativos, perdeu, desde os anos iniciais da década de 50 do século 20, a sua primazia. Hoje, o sentido de Estado democrático de Direito não se rege mais pela simples legalidade, que assumiu a feição de legalismo. O Estado contemporâneo submete-se à juridicidade, que abrange, além das regras positivas, os princípios jurídicos da justiça, da razoabilidade e da proporcionalidade.[1]

Era, portanto, necessário recuperar os valores metafísicos que deram as bases para o surgimento do Estado moderno no século 18, como em Kant, quando disse que a pessoa humana, ao contrário das coisas, não tinha preço, mas uma dignidade, e não podia ser tomada como meio para satisfação das necessidades de outra pessoa, pois a pessoa humana é um "fim-em-si-mesma", ou seja, é um ser naturalmente livre, e como tal, não poderia ser medido como uma coisa descartável. Assim, o princípio moral da dignidade da pessoa humana não poderia ser apenas uma diretriz para o intérprete da norma, como acreditava Kelsen, mas deveria ser imanente à ela. Talvez nenhum pensamento tenha expressado melhor para expressar a crise do direito dos anos 1940 do que esse.

Como se sabe, essa época foi fecunda para o surgimento do moderno constitucionalismo, e inspirou fortemente as constituições em diversos países da Europa nos últimos 75 anos, como as da Alemanha (1949), Portugal (1976), Espanha (1978) e muitos outros países, inclusive, o Brasil pós-regime militar, em 1988. Pautado pelo binômio dignidade da pessoa humana e devido processo legal, o emergente Estado Constitucional firmou os direitos fundamentais como centro gravitacional de toda a ordem jurídica, e colocando o Estado como protetor desses direitos. Daí que a impessoalidade e a moralidade administrativa ganharam contornos ainda mais acentuados: o Estado existe exclusivamente para a promoção daqueles direitos e a satisfação do interesse público.

Por essa razão, quando um agente público agisse, não bastaria verificar sua esfera de competência, mas também os motivos e a finalidade do ato; não bastaria o ato ser estritamente legal, seria preciso também que estivesse de acordo com a ética social. Ninguém poderia agir em nome do Estado para beneficiar quem quer que seja que não fosse movido exclusivamente pelo interesse público.

Assim, até mesmo os chamados atos discricionários — aqueles que não possuem o motivo previamente determinado pela lei — devem estar de acordo com o interesse público. Por exemplo: o chefe do Executivo tem a prerrogativa de nomear para os cargos de confiança quem bem lhe aprouver: ele não precisa indicar o motivo da nomeação. No entanto, não pode "presentear" sua família e parentes nomeando-os para os cargos públicos de seu governo.

Em apertadas linhas, esse é o motivo pelo qual o presidente da República não poderia usar do instituto da graça para atender finalidades pessoais: agraciar seus amigos ou correligionários políticos, desfazendo um ato legítimo do Poder Judiciário. A graça existe para situação excepcionalíssimas, como ocorre com réus que se encontram em idade muito avançada ou gravemente enfermos ou outra situação de inequívoca comoção social — não uma falsa "comoção" de uma parcela da sociedade, inconformada com o resultado do julgamento, como alegou o presidente da República para justificar o decreto. Nossa ordem constitucional se encontra inteiramente curvada a esses princípios (artigo 37, caput, da CF).

Portanto, é patente o caráter pessoal do ato administrativo, que visa notoriamente desconstituir uma legítima decisão do Poder Judiciário para beneficiar um réu que praticou — frise-se — um ato atentatório contra a democracia e a independência dos Poderes da República, insuflando extremistas de direita a invadirem e depredarem o prédio do Supremo Tribunal Federal e agredirem fisicamente seus membros. A meu juízo, assim como de muitos juristas avessos ao velho positivismo, o decreto é nulo por desvio de finalidade, um dos requisitos essenciais de validade do ato administrativo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] STJ – Primeira Seção – MS 20.001/DF – Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho – julgado em 12/6/2019.

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