Opinião

Decreto de Bolsonaro não atende aos requisitos da doutrina brasileira

Autor

  • Leonardo Bruno Pereira de Moraes

    é sócio do escritório Bornhausen & Zimmer Advogados professor doutorando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC e membro do Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da UFSC e da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

22 de abril de 2022, 18h54

O presente artigo não tem como objetivo discutir o mérito da condenação do deputado Daniel Silveira ou traçar discussões acerca dos limites da liberdade de expressão ou da extensão da imunidade parlamentar no direito constitucional brasileiro. Nas próximas linhas, abordar-se-ão os elementos jurídico-políticos da graça constitucional concedida ao deputado Daniel Silveira por meio do decreto de 21 de abril de 2022, assim como as suas consequências na seara eleitoral, tanto em relação à possibilidade de cassação do atual mandato quanto à eventual inelegibilidade para as eleições de 2022.

Inicialmente, faz-se necessário esclarecer o conceito e os requisitos da chamada graça constitucional. Em primeiro lugar, a Constituição Federal de 1988 estabelece, dentre as competências privativas do presidente da República previstas no artigo 84, "XII – conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei". Muito embora o texto constitucional não utilize o termo "graça", esta nada mais é do que um indulto individual concedido pelo presidente da República, conforme citado pela doutrina especializada, por exemplo, Eugênio Pacelli (Manual de Direito Penal – Parte Geral, p. 548). Além disso, a expressão está presente no Código de Processo Penal (artigo 734) "a graça poderá ser provocada por petição do condenado, de qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, ou do Ministério Público, ressalvada, entretanto, ao Presidente da República, a faculdade de concedê-la espontaneamente".

Assim, o primeiro ponto a ser destacado é que a legislação brasileira admite a concessão de ofício pelo presidente da República, sendo desnecessárias as medidas estabelecidas nos artigos 735, 736 e 737 no caso do deputado Daniel Silveira. De outro lado, em relação às consequências da concessão da graça constitucional, o Código Penal em seu artigo 107 determina que a graça ou indulto resulta na extinção de punibilidade. No trecho final do presente artigo, far-se-á uma breve análise das consequências no caso concreto.

Antes disso, importante elucidar se o Supremo Tribunal Federal tem competência para revisar o mérito do decreto de 21 de abril de 2022. O entendimento da Suprema Corte na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 5.874/DF, em demanda que versava sobre o indulto natalino concedido pelo presidente Michel Temer, sedimentou-se no sentido de que o Judiciário poderia analisar somente a constitucionalidade do ato, excetuando os elementos de mérito, que seriam um juízo de conveniência e oportunidade. Do voto do relator para o acórdão, ministro Alexandre de Moraes, extrai-se:

"Em regra, portanto, compete ao Presidente da República definir a concessão ou não do indulto, bem como seus requisitos e a extensão desse verdadeiro ato de clemência constitucional, a partir de critérios de conveniência e oportunidade; devendo ser, por inoportuna, afastada qualquer alegação de desrespeito à Separação de Poderes ou ilícita ingerência do Executivo na política criminal, genericamente, estabelecida pelo Legislativo e aplicada, concretamente, pelo Judiciário."

No corpo do voto na ADI 5.874, o ministro Alexandre de Moraes disserta que a discricionariedade do presidente está limitada às proibições expressas ou implícitas no próprio texto constitucional, tal como acontece nos crimes hediondos, excluídos expressamente das hipóteses de indulto ou graça pela Constituição Federal, ou nos crimes contra a humanidade, decorrentes de compromissos assumidos pelo Brasil por meio de tratados internacionais.

Destaca-se trecho doutrinário dos professores Gustavo Octaviano e Patrícia Vanzolini ("Manual de Direito Penal", p. 496) sobre os limites de controle: "Acreditamos que é descabido qualquer controle do Poder Judiciário ou do Poder Legislativo sobre o poder discricionário do Presidente da República de exercer a clemência soberana. Trata-se de um desdobramento da divisão de funções arquitetada na Constituição. A única limitação para o poder de clemência está na própria Constituição, que afasta o perdão presidencial para os crimes hediondos ou equiparados. Não cabe ao Poder Legislativo criar procedimentos ou obstáculos ao poder que a Constituição atribui ao Presidente, tampouco seria legítimo ao Poder Judiciário questionar as razões do perdão".

No caso do deputado Daniel Silveira, tem-se suscitado que o decreto poderia violar o princípio da impessoalidade (artigo 37, CF) ou constituir desvio de finalidade. Todavia, não se acredita que esses argumentos estejam acertados. Isso porque, o indulto individual ou graça constitucional tem como objetivo nato ser direcionado a uma única pessoa, o que não acontece com o indulto coletivo. Desta forma, se o próprio instituto tem como finalidade conceder uma graça individual, não há como sustentar a violação ao princípio da impessoalidade, por ser algo intrínseco à natureza do instituto jurídico. De outro lado, em relação ao desvio de finalidade, o decreto possui fundamentação lógica, ainda que não se concorde com o seu mérito, devendo prevalecer o entendimento do STF na ADI 5.874 e a posição doutrinária quase unânime sobre não interferência do Judiciário, por não se enquadrar nas regras constitucionais de vedação de concessão de indulto.

Resta a dúvida se o Supremo Tribunal Federal poderia anular o decreto de 21 de abril de 2022 por vícios formais na sua edição. O questionamento é relevante, pois a doutrina, exemplificada pelos professores Gustavo Octaviano e Patrícia Vanzolini ("Manual de Direito Penal", p. 349) e Guilherme de Souza Nucci ("Manual de Direito Penal", p. 496), afirma, de forma majoritária, pela exigência de uma sentença penal condenatória com trânsito em julgado para a concessão da graça constitucional. Todavia, deve-se ressaltar que o ministro Alexandre de Moraes em seu voto vencedor na ADI 5.874 destaca que "a Constituição Federal não limita o momento em que o presidente da República pode conceder o indulto, sendo possível isentar o autor de punibilidade, mesmo antes de qualquer condenação criminal", inclusive com diversos precedentes.

Certamente, a situação será objeto de nova apreciação pelo STF em breve. Entretanto, de modo a colaborar com a discussão, entende-se que neste ponto parece existir uma diferença a ser considerada entre o indulto individual (graça) e o coletivo. Isso porque, a exigência de trânsito em julgado poderia causar distorções na aplicação coletiva, que trataria de forma desigual os envolvidos, beneficiando aqueles que tivessem sentenças transitadas em julgado e prejudicando os que tivessem cometido as mesmas infrações, mas ainda aguardavam o julgamento de algum recurso. No caso do indulto individual, não haveria qualquer risco ao aguardar o trânsito em julgado da decisão condenatória, ainda que não exista nenhuma exigência no direito positivo brasileiro.

Na segunda metade deste breve artigo, passa-se à análise das consequências práticas da condenação criminal e da graça constitucional concedida ao deputado Daniel Silveira, com destaque para os efeitos políticos e eleitorais envolvidos no debate.

O artigo 15 da Constituição Federal estabelece causas de perda ou suspensão dos direitos políticos. Sob essa perspectiva, enquanto a perda tem natureza definitiva, a suspensão possui característica de sanção temporária. Nesse contexto, a condenação criminal por decisão transitada em julgado é uma das hipóteses de suspensão de direitos políticos, ou seja, a impossibilidade de exercício dos direitos políticos subsiste enquanto durarem os efeitos da condenação, cessando com o cumprimento ou extinção da pena.

Nessa linha, o Tribunal Superior Eleitoral editou, ainda no ano de 1992, a Súmula 9: "A suspensão de direitos políticos decorrente de condenação criminal transitada em julgado cessa com o cumprimento ou a extinção da pena, independendo de reabilitação ou de prova de reparação dos danos". Entretanto, vale ressaltar que atualmente o TSE possui o entendimento de que o cumprimento da pena inclui também o pagamento da multa, não estando restrita somente às penas privativas de liberdade ou restrição de direitos, como esclarecido pela corte na Consulta n° 936-31.2015.600.0000/MS.

Sobre o assunto, também merece referência o Tema de Repercussão Geral 370 do STF que estabeleceu que: "A suspensão de direitos políticos prevista no art. 15, inc. III, da Constituição Federal aplica-se no caso de substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos". Desta forma, extrai-se que a condenação criminal transitada em julgada, ainda que não imponha pena privativa de liberdade, gera a suspensão dos direitos políticos enquanto não houver o cumprimento ou extinção da pena.

Entretanto, como já mencionado, a graça constitucional ou indulto individual, conforme estabelece o Código Penal, resulta na extinção de punibilidade. Na prática, o Decreto de 21 de abril de 2022 extingue a pena a ser aplicada ao deputado Daniel Silveira. Portanto, caso mantida a validade do decreto, há de se reconhecer que o Deputado não está com os seus direitos políticos suspensos. Sendo assim, afasta-se a eventual incidência do artigo 15, III, e 55, IV, da Constituição que estabelecem as hipóteses de perda de mandato dos deputados ou senadores. Contudo, isso não significa dizer que o deputado não estará sujeito à perda do mandato com fundamento no artigo 55, VI, da Carta Magna.

O referido inciso diz respeito aos deputados ou senadores que sofrerem condenações criminais em sentenças transitas em julgado. Essa distinção é relevante, pois no caso da suspensão dos direitos políticos (artigo 55, IV c/c § 3°) a perda será somente declarada pela Mesa da Casa Legislativa, enquanto na hipótese de condenação criminal (artigo 55, VI c/c 2º°) "a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados". Ou seja, nos casos de condenação criminal a perda não será automática, sendo necessária a votação pelo plenário da Câmara com exigência de maioria absoluta dos membros.

Importante destacar que o Supremo Tribunal Federal tem uma jurisprudência oscilante sobre o tema, conforme destacado pelos professores Bernardo Gonçalves Fernandes ("Curso de Direito Constitucional", p. 1127) e Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco ("Curso de Direito Constitucional", pp. 828-829). O debate sobre a imposição constitucional de deliberação pela Casa Legislativa nos casos de perda do mandato e a aplicabilidade da suspensão dos direitos políticos aos congressistas é tema importante no âmbito do Direito Constitucional. Todavia, para efeitos deste artigo, considerando o Decreto que concedeu o indulto individual ao deputado Daniel Silveira, defende-se que não mais subsistiria a suspensão dos direitos políticos, restando somente a condenação criminal — em vias de transitar em julgado — a qual indubitavelmente estará sujeita à deliberação do plenário da Câmara para ensejar a perda do mandato.

Por fim, deve-se enfrentar a inelegibilidade do deputado Daniel Silveira para concorrer às eleições de 2022. Neste ponto, a Súmula 631 do Superior Tribunal de Justiça define que: "O indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais". O deputado foi condenado, dentre outros tipos, pela infração ao artigo 344 do Código Penal que estabelece o crime denominado de coação no curso do processo (usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral), do capítulo dos Crimes contra Administração da Justiça, estes, por sua vez, do título de Crimes contra a Administração Pública.

A Lei Complementar n° 64/90, conhecida como Lei das Inelegibilidades, com a redação alterada pela famosa Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n° 135/10), estabelece que são inelegíveis "e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes: 1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público". Como o indulto extingue os efeitos primários da condenação, mas não atinge os secundários, compreende-se ser plenamente aplicável ao deputado as inelegibilidades infraconstitucionais.

Sendo assim, ainda que não venha a ter o mandato cassado pela Câmara dos deputados, Daniel Silveira estará inelegível para as eleições de 2022 por força do artigo 1º, e, I, da Lei Complementar n° 64/90, pois o crime de coação no curso do processo é enquadrado como crime contra a administração pública, o que enseja a incidência da inelegibilidade. Ainda, salienta-se que o prazo de oito anos deverá ser contado a partir da aplicação dos efeitos do decreto de 21 de abril de 2022 que extingue a punibilidade, considerando-o como o cumprimento da pena, nos termos do artigo 1°, e, 1, da LC n° 64/90.

Diante do exposto, conclui-se que o decreto de 21 de 2022 não atende aos requisitos impostos pela doutrina brasileira, uma vez que não houve o trânsito em julgado da ação penal, condição mencionada por diversos juristas como necessária para a concessão do indulto individual ou graça constitucional. No mérito, os fundamentos elencados pelo presidente da República não devem ser objeto de revisão pelo Supremo Tribunal Federal por se tratar de prerrogativa constitucional do chefe do Poder Executivo, que não está sujeita à sindicância pelos demais Poderes da República. Por fim, caso seja mantido o decreto ou sobrevenha outro decreto do presidente da República após o trânsito em julgado, o indulto individual ou graça constitucional não atingirá os efeitos secundários da condenação criminal, em especial, a inelegibilidade dela decorrente.

Referências:
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 13ed. Jus Podivum, 2021.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 14ed. Saraiva, 2021.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 18ed. Grupo GEN, 2022.
OCTAVIANO, Gustavo; FIGUEIREDO, Maria Patrícia Vanzolini. Manual de Direito Penal. 8 ed. Saraiva, 2022.
PACELLI, Eugênio. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 6 ed. Grupo GEN, 2020.

Autores

  • é sócio do escritório Bornhausen & Zimmer Advogados, professor, doutorando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina, membro das Comissões de Direito Constitucional da OAB-SC, membro do Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da UFSC e da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

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