Opinião

Teletrabalho internacional: o que pensar da MP 1108/2022

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22 de abril de 2022, 7h09

No último dia 25 de março, foi publicada a Medida Provisória nº 1.108/2022 que altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) com a justificativa da adoção mais generalizada do trabalho remoto.

Como vem se tornando muito comum, trata-se de mais uma tentativa de o Executivo "legislar" temas sobre os quais não há qualquer urgência a justificar, ainda que o assunto seja, de fato, relevante. Além disso, indica o atual déficit democrático que permeia o debate de temas de direito contratual: isso porque não só o teletrabalho não é nenhuma novidade, como as condições de sua regulamentação devem ser fruto do debate público e de regular processo legislativo.

Não bastasse o "atropelo" normativo, o Executivo tratou, ainda, de conceituar o teletrabalho (novo artigo 75-B [1], da CLT) e prever "regras" para quando ele fosse realizado internacionalmente (§8° do mesmo artigo 75-B [2]). Eis aí o problema: a tal regulação do contrato internacional de teletrabalho em comparação com a regulamentação anterior pode trazer mais dúvidas que certezas. Explicamos.

Até a entrada em vigor desta MP, a matéria (contratos internacionais de trabalho) era regulada pela Lei n° 7.064/1982 com a redação dada pela Lei n° 11.962 de 2009 [3], que previa o âmbito de aplicação mais amplo: "trabalhadores contratados no Brasil ou transferidos por seus empregadores".

1. A primeira dúvida que pode surgir, então, é que a MP não se aplica aos casos de "transferência" do empregado, ou seja, quando ele fosse removido, cedido ou tivesse sido contratado para trabalhar no exterior (artigo 2º, I a III, da Lei n° 7.064/1982). Em princípio, então, a previsão da MP se refere apenas a casos em que o empregado decide fazê-lo ("opção"). Seria, então, o dispositivo pensado para aquele trabalhador que, em razão do formato de seu trabalho, decidisse migrar? Seria a MP voltada ao nômade digital brasileiro?

Ora, se o novo texto normativo foi idealizado para estas situações, ele é desnecessário e redundante: a aplicação do Direito brasileiro a estes contratos já decorreria do artigo 9º, da Lei de Introdução [4] (LINDB) e do artigo 3º, da Lei n° 7.064/1982.

Além disso, a eventual decisão de o empregado exercer seu trabalho de outro país  quando isso não fosse impedido pelo contrato e/ou não decorresse de decisão do empregador  não viria a alterar o Direito aplicável ao contrato de trabalho. Aceitar o contrário, seria dotar um dos contratantes do absurdo poder de, unilateralmente, alterar todo o regime contratual.

2. A segunda dúvida que surge é, justamente, outro aspecto prático: há cada vez maior número de trabalhadores que exercem o teletrabalho internacional a partir do Brasil. Como destacamos anteriormente [5], diversas empresas têm se valido da qualidade de nossos profissionais  especialmente da área tecnológica  para prestação remota de serviços  a partir do Brasil  a um custo infinitamente inferior, sem a necessidade de vistos e migração. Estes trabalhadores também não estão abrangidos pelo texto da MP, já que exercem o trabalho no Brasil.

3. Um terceiro ponto de destaque  que se liga ao anterior  é a forma como estes trabalhadores são contratados: pessoas jurídicas prestadoras de serviços regidos por contratados internacionais, muitas vezes com cláusulas de eleição de foro e legislação estrangeiros. Este cenário também não foi previsto pela MP (e talvez nem pudesse, já que a rigor não se trata de "emprego").

Talvez o Judiciário venha a entender que isto é uma forma de fraudar a exigência de autorização do Ministério do Trabalho (artigo 12, da Lei n° 7.064/1982 e artigo 149, do Decreto n° 10.854/2021 [6]). Prefiro acreditar, no entanto, que estes dispositivos são reminiscências de uma era anterior, muito menos livre e que hoje não fazem mais muito sentido [7].

4. Além destas dúvidas, há também um problema. A parte final do referido §8° do novo artigo 75-B, da CLT traz uma "novidade": a aparente possibilidade de escolha do Direito aplicável ao contrato. Agrava-se pelo fato de que, como destacamos anteriormente, o âmbito de aplicação da MP não é claro.

O primeiro ponto é a forma como a MP foi redigida. Isso porque a expressão "aplica-se a legislação brasileira, excetuadas as disposições constantes na Lei nº 7.064, de 6 de dezembro 1982, salvo disposição em contrário estipulada entre as partes" poderia indicar a possibilidade, simples, de os contratantes afastarem a legislação brasileira protetiva. Como se sabe, trata-se de matéria de ordem pública e, portanto, tal interpretação estaria prejudicada.

O segundo ponto é que, como se sabe, o Direito brasileiro atual não admite a escolha do Direito aplicável a contratos internacionais aqui celebrados. Esta interpretação  amplamente majoritária  decorre da redação do artigo 9º da LINDB.

Ainda que exista uma tendência internacional em favorecer a escolha do Direito aplicável aos contratos internacionais, ela se refere a contratos entre não vulneráveis. Daí porque os marcos normativos mais contemporâneos se referem a contratos empresariais [8] e as atuais propostas de reforma legislativa brasileira a permitam apenas para "profissionais, empresários e comerciantes" [9].

Poderíamos, então, talvez, admitir a escolha do Direito aplicável para aqueles trabalhadores não vulneráveis (assim como a eventual abertura permitida pela legislação arbitral), mas esbararíamos nas interpretações anteriores.

Ainda que se tente justificar a redação adotada pela MP1108/2022, parece que, além de inexistir urgência em sua adoção (pelo menos no aspecto internacional), seus efeitos práticos internacionais não seriam evidentes.


[1] Artigo 75-B. Considera-se teletrabalho ou trabalho remoto a prestação de serviços fora das dependências do empregador, de maneira preponderante ou não, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação, que, por sua natureza, não se configure como trabalho externo.

[2] §8º Ao contrato de trabalho do empregado admitido no Brasil que optar pela realização de teletrabalho fora do território nacional, aplica-se a legislação brasileira, excetuadas as disposições constantes na Lei nº 7.064, de 6 de dezembro 1982, salvo disposição em contrário estipulada entre as partes.

[8] Vide, neste sentido, os Princípios da Haia e o Guia da OEA, cujas traduções para o português estão disponíveis em: https://glitzgondim.adv.br/biblioteca/contratos-internacionais-e-a-escolha-do-direito-aplicavel-traducao-dos-principios-haia-e-guia-da-organizacao-dos-estados-americanos-oea/ .

[9] Vide Projeto de Lei do Senado n° 1.038/2020 disponível aqui.

Autores

  • é advogado, mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pós-doutor em Direito e Novas Tecnologias em Reggio Calabria na Itália e professor universitário.

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