Opinião

Nelson Mandela e a Lei nº 14.326: comentários, desafios e perspectivas

Autor

  • Víctor Minervino Quintiere

    é doutor em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) Research Fellow na Universitá degli studi Roma TRE na Itália mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) sócio no escritório Bruno Espiñeira Lemos & Quintiere Advogados professor do programa de pós-graduação em Direito Penal do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) professor convidado do programa de pós-graduação da Escola Baiana de Direito em Direito Penal e professor da Faculdade de Ciências Jurídicas (Fajs) do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

21 de abril de 2022, 17h12

Foi publicada na edição do Diário Oficial da União de 13/4/2022 a Lei nº 14.326.

Referido ato normativo teve por objetivo alterar a lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), visando assegurar à mulher presa gestante ou puérpera tratamento humanitário antes e durante o trabalho de parto e no período de puerpério, bem como assistência integral à sua saúde e à do recém-nascido.

Nesse sentido, o artigo 14, da LEP foi acrescido do parágrafo quarto, nos seguintes termos: "será assegurado tratamento humanitário à mulher grávida durante os atos médico-hospitalares preparatórios para a realização do parto e durante o trabalho de parto, bem como à mulher no período de puerpério, cabendo ao poder público promover a assistência integral à sua saúde e à do recém-nascido".

O acréscimo feito à legislação simboliza importante avanço, pois, dentre outros, está de acordo com as diretrizes trazidas nas famosas Regras de Mandela.

As regras, nome dado em homenagem ao líder sul-africano, dizem respeito a diretrizes mínimas a serem observadas pelo Estado no que tange o tratamento de reclusos. O documento, criado pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 1955, passou por uma revisão em 2015, incorporando mais garantias com o fito de assegurar tratamento digno às pessoas em situação de privação de liberdade.

Além do Brasil, estavam presentes à sessão de revisão, a qual ocorreu entre os dias 18 à 22 de maio de 2015, os seguintes países: África do Sul, Argentina, Áustria, Chile, El Salvador, Equador, Estados Unidos, França, Itália, Líbano, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Polônia, Tailândia e Uruguai.

O objetivo do documento, de forma específica, é estabelecer regras aceitas como sendo bons princípios e práticas no tratamento dos reclusos e na gestão dos estabelecimentos prisionais, sem, contudo, ter a pretensão de descrever pormenorizadamente um modelo de sistema prisional.

A regra nº 47 dispõe que o uso de correntes, de imobilizadores de ferro ou outros instrumentos restritivos que são inerentemente degradantes ou dolorosos devem ser proibidos. Em seu  parágrafo segundo, referida norma dispõe que outros instrumentos restritivos, não contidos evidentemente na vedação descrita no caput, da regra nº 47, devem ser utilizados em desfavor de pessoas reclusas apenas quando previstos em lei e nas seguintes circunstâncias:

a) Como precaução contra a fuga durante uma transferência, desde que sejam removidos quando o preso estiver diante de autoridade judicial ou administrativa;
b) Por ordem do diretor da unidade prisional, se outros métodos de controle falharem, a fim de evitar que um preso machuque a si mesmo ou a outrem ou que danifique propriedade; em tais circunstâncias, o diretor deve imediatamente alertar o médico ou outro profissional de saúde qualificado e reportar à autoridade administrativa superior.

Dando sequência, de acordo com a regra nº 48, quando a utilização de instrumentos restritivos for autorizada, de acordo com o parágrafo 2 da regra 47, ou seja, quando previstos em lei, o Estado deverá observar os seguintes princípios:

a) Os instrumentos restritivos serão utilizados apenas quando outras formas menos severas de controle não forem efetivas para enfrentar os riscos representados pelo movimento sem a restrição;
b) O método de restrição será o menos invasivo necessário, e razoável para controlar a movimentação do preso, baseado no nível e natureza do risco apresentado;
c) Os instrumentos de restrição devem ser utilizados apenas durante o período exigido e devem ser retirados, assim que possível, depois que o risco que motivou a restrição não esteja mais presente.

Nesse sentido, o parágrafo segundo, da regra nº 48, dispõe que os instrumentos de restrição não devem ser utilizados em mulheres em trabalho de parto, nem durante e imediatamente após o referido ato.

Nesse texto, resumidamente, dois pontos chamam a atenção quando nos deparamos com a redação da lei nº 14.326/2022. O primeiro deles, positivo, é o de que se trata de medida legislativa importante, em especial, quando se está diante de um país que muitas vezes não aplica o ordenamento internacional em seu cotidiano, ao assegurar "tratamento humanitário à mulher grávida durante os atos médico-hospitalares preparatórios para a realização do parto e durante o trabalho de parto, bem como à mulher no período de puerpério".

Para além da observância das Regras de Mandela, tal dispositivo é constitucional sob a perspectiva 1) do respeito à dignidade da pessoa humana da mulher em situação de cárcere e seu respectivo (a) filho (a) (artigo 1º, III, da CF/88), 2) da vedação de penas de caráter cruel (artigo 5º, III, da CF/88), 3) bem como da isonomia material entre homens e mulheres reclusos (artigo 5º, caput, da CF/88).

O segundo ponto, que poderia ter sido melhor detalhado, diz respeito ao que o Poder Público pode fazer a respeito do tema. Não me parece suficiente dispor que cabe ao poder público, de forma genérica, "promover a assistência integral à saúde da mulher em situação de cárcere e do recém-nascido quando, por exemplo, existem diretrizes específicas previstas no próprio artigo 49, da Regra de Mandela, no sentido de que a administração prisional deve buscar e promover o treinamento no uso de técnicas de controle que afastem a necessidade de utilizar instrumentos restritivos ou que reduzam seu caráter invasivo, bem como quando estamos diante de matéria, indiretamente, no mínimo, afeta ao direito penitenciário, cuja competência para legislar, diferentemente da penal e da processual penal, por exemplo, é concorrente, nos moldes do artigo 24, I, da CF/88".

Nesse sentido, a lei nº 14.326/2022 poderia ter reforçado diretrizes mais específicas pelas quais a administração pública (federal e estadual) possa atingir o respeito à disposição prevista no novo §14º, da LEP.

Aguardemos os próximos episódios.

Referências bibliográficas
BRASIL. Constituição Federal Brasileira de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 13.abril.2022.
BRASIL. Lei nº 7.210/1984 (Lei de Execução Penal). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 13.abril.2022.
BRASIL. Lei nº 14.326/2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.326-de-12-de-abril-de-2022-393234282. Acesso em: 13.abril.2022.
Conselho Nacional de Justiça. Regras de Mandela: regras mínimas das Nações Unidas para o tratamento de presos/ Conselho Nacional de Justiça; Coordenação: Luís Geraldo Sant'Ana Lanfredi — Brasília: CNJ, 2016. 88 p. — (Série Tratados Internacionais de Direitos Humanos) ISBN 978-85-5834-012-0.

Autores

  • é doutor em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), research fellow na Universitá degli studi Roma TRE - Itália, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio no escritório Bruno Espiñeira Lemos & Quintiere Advogados, professor do programa de pós-graduação em Direito Penal e da Faculdade de Ciências Jurídicas - FAJS do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

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