Opinião

Lições de Ketanji O. Brown sobre plea bargaining e arroubos punitivos no Brasil

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21 de abril de 2022, 19h37

Recentemente o mundo jurídico ficou em êxtase com a aprovação da juíza Ketanji Onyika Brown, uma mulher negra, para a Suprema Corte dos Estados Unidos [1], pela primeira vez, após 115 integrantes, onde apenas dois foram homens negros.

Feitas as devidas homenagens, importa voltar nossa atenção para um alerta feito quando ainda estudante, em 1992, no trabalho de conclusão, como requisito para obtenção do título de "Bachelor of Arts" na Harvard College; uma espécie de graduação anterior ao ingresso na Law School, que seria uma pós-graduação. Ali Ketanji Brown já discutia criticamente o uso do plea bargaining na persecução penal estadunidense [2].

A relevância do tema vem à tona porque enquanto críticas bem fundamentadas são feitas ao plea bargaining nos EUA, como ela o faz, o Brasil segue em uma tendência apaixonada pelos acordos penais, que já podemos afirmar serem uma realidade que veio para ficar [3], tal como posto nos projetos de lei de novos Código Penal (PLS 236/12) e de Processo Penal (PL 8.045/10) que ampliam os espaços negociais. A última tentativa de adoção de um modelo mais próximo do plea bargaining estadunidense foi derrotada no Congresso com a aprovação da Lei 13.964/19 sem o polêmico artigo 395-A, que previa a possibilidade de acordo sem limites de pena em uma aproximação perigosa com o modelo no Norte.

Mas afinal, o que é plea bargaining? É difícil chegar a uma definição que transborde o sentido literal do termo, ou tradução. Defensores tratam-no como uma justiça negociada, na qual defesa e acusação chegam a um acordo através do diálogo e negociação [4]. Para os críticos se trata de um processo sem julgamento, no qual o Estado coloca sobre o réu um fardo ao tornar muito custoso para o acusado reclamar seus direitos constitucionais a um julgamento [5]. Duas observações sobressaltam: a um, estas definições foram feitas a partir do modelo estadunidense de plea bargaining, a dois, elas não se antagonizam.

Retomando o parágrafo anterior, as definições não são excludentes, chegando ambas a uma conclusão comum: não há processo. Continua havendo sistema de justiça criminal, coerção e força estatal, mas o processo é enfraquecido a ponto de se tornar desnecessário. Processo Penal e o carrasco da Idade Média não se confundem, suas funções não se equiparam.

O processo é — até então — o meio democrático necessário para se chegar à pena [6]. Democrático porque protege o cidadão e limita a atividade do Estado, sua missão é, antes de tudo, instrumentalizar Direitos e garantias Fundamentais. Um procedimento que aplique pena sem processo, é arbitrário e fadado ao autoritarismo.

Em sua pesquisa, realizada nas cortes criminais de Nova York, Miami e Boston, a juíza Brown teve a chance de entrevistar agentes do sistema de justiça criminal e, apesar de um culpar o outro, com exceção dos advogados que culpavam ambos, juízes e promotores, numa coisa, todos concordavam: os réus estavam sofrendo pressão do sistema a partir de uma variedade de formas para aceitar os acordos [7]. Em sua investigação, constatou que, na verdade, a pressão vinha dos três níveis: participação dos juízes, discricionariedade dos promotores para exagerar na acusação e os advogados que omitiam informações dos clientes para que aceitassem acordos. E arremata: "eu pude argumentar que os processos de plea bargaining são legalmente impróprios no sentido de que os interesses administrativos do Estado não são suficientemente convincentes para superar a ameaça aos direitos individuais".

Se se pensar que não existe tradução ou importação de institutos livre de influências das realidades e cultura jurídica local [8], há que se pensar muito, antes de fazer um transplante de algo já problemático para o Brasil, onde vigora um Código de Processo Penal de inspiração fascista e uma cultura autoritária que vive em constante ressignificação [9]. O simples transplante pode apenas servir como novo instrumento a favor do poder punitivo. Se houver dúvidas deixa-se a pergunta: qual a contribuição do plea bargaining para contenção do arbítrio e do poder do Estado?

"Devemos nos abster de separar mentalmente o acusado de qualquer outro cidadão ao contemplar os direitos constitucionais, pois se insistirmos em fazer uma distinção entre os cidadãos que são acusados de fazer mal e aqueles que não são, deixamos o poder de conferir ou negar direitos inteiramente nas mãos das instituições das quais os direitos existem para nos proteger" (BROWN, 1992, p. 6).

Assim, esperamos ver logo a juíza Brown exercendo suas funções, desejosos de que ela continue com o mesmo espírito inquieto e crítico da juventude, pois seu alerta de estudante não foi em vão e certamente os próximos ecoarão ainda mais. Por isso e muito mais há o que se comemorar.

[1] Aqui, acesso em 12/04/22.

[2] BROWN, Ketanji Onyika. "The hand of oppression": plea bargaining processes and the coercion of criminal defendants. Harvard College, 1992.

[3] LANGER, Maximo. From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the americanization thesis in criminal procedure. In Harvard Internacional Law Journal. v. 45. nº 01, 2004; GIACOMOLLI, Nereu José; VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Justiça criminal negocial: crítica à fragilização da jurisdição penal em um cenário de expansão dos espaços de consenso no processo penal. Revista novos estudos jurídicos  Eletrônica, Vol. 20  nº 3, 2015.

[4] CHURCH, Thomas W. In Defense of "Bargain Justice". Law and Society Review. Vol. 13, Winter 1979, p. 509.

[5] LANGBEIN, John Harriss. Understanding the short history of plea bargaining. Law and Society. Vol. 13, Winter 1979, p. 261.

[6] LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 32.

[7] BROWN, Ketanji Onyika. "The hand of oppression": plea bargaining processes and the coercion of criminal defendants. Harvard College, 1992, p. 121.

[8] SOZZO, Máximo. Viagens culturais e a questão criminal. Tradução: Sérgio Lamarão.  1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014. P. 20-21.

[9] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro, volume 1, Ricardo Jacobsen Gloeckner.  1. ed. – Florianópolis [SC] : Tirant Lo Blanch, 2018. P. 35.

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