Opinião

Retorno do paciente não dá direito à cobrança de uma nova consulta médica

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21 de abril de 2022, 13h07

Dia desses, um dos meus familiares estive às voltas de uma cobrança dessa natureza, praticada por um estabelecimento de saúde.

O fato ocorreu na noite do último dia 24 de março, quando, então, vítima de uma entorse de tornozelo, consequência de uma partida de futebol, esse parente foi levado ao pronto-socorro de um hospital local, já que, naquele momento, acometido de muita dor e relevante inchaço local.

Na recepção da unidade hospitalar, a atendente, passando o cartão do seu convênio médico, procedeu com a regular cobrança de uma consulta em favor da médica de plantão, especialista em ortopedia.

Minutos após, ainda durante a consulta de pronto socorro, a médica-atendente, mesmo realizando o exame físico do paciente e, ainda, um raio-X de tornozelo, não conseguiu chegar a um diagnóstico seguro, se por um lado, o laudo de imagem não apontava, felizmente, nenhuma fratura, por outro, o inchaço e a intermitente dor local sugeria alguma lesão, provavelmente ligamentar, razão pela qual, requisitou a especialista, naquele momento, em guia própria (Sadt) do convênio médico, um novo exame; agora, uma ressonância nuclear magnética, só poderia ser realizado em clínica própria e em horário comercial.

Então, no seguinte, o exame foi agendado pelo paciente e realizado pela Clínica, sendo que, entretanto, seu laudo e imagem só foram disponibilizados seis dias depois do atendimento médico (30/3).

Ao retornar à recepção hospitalar, para a finalização da consulta do dia 24/3, agora já de posse do laudo técnico do exame de RNM, a atendente foi categórica em afirmar que "a consulta de pronto-socorro não dá direito a retorno" e que, por isso, esse atendimento geraria nova cobrança, a título de consulta médica.

Parafraseando (obviamente às avessas) o título do livro de Abrão Slavutzky e Daniel Kupermann, a conduta do estabelecimento de saúde, notadamente irregular, "seria cômica… se não fosse trágica", já que, "Detalhe pequeno, papai" [1], o plano do paciente é do tipo coparticipativo, o que significa dizer que, a prevalecer a imposição hospitalar, ambos atendimentos lhe gerariam a obrigação de pagar parcela!

Ressalte-se que, formalizado uma reclamação junto à ouvidoria do hospital, a orientação da atendente foi, também lá, mantida, ao seguinte argumento:

"Conforme acordo contratual com a operadora, para atendimentos provenientes do Pronto Atendimento, somente é considerado retorno quando não há melhora do quadro clínico ou pendências de exames solicitados na urgência, para diagnóstico cabível para o atendimento.
Considerando que para este atendimento foi solicitado pela plantonista o exame de imagem (RX), que não evidenciou alterações significativas para diagnóstico conforme descrito no prontuário, foi solicitado o exame de ressonância magnética em regime eletivo e orientações para segmento ambulatorial, em seguida alta hospitalar, devendo agendar consulta em ambulatório de ortopedia para conduta de tratamento adequado.
Saliento que nestes casos, atualmente não comunicamos ao médico plantonista e portanto não houve negativa de atendimento ao paciente pelo médico, as orientações repassadas ao beneficiário e responsável quanto ao processo de avaliação do exames realizados ambulatorialmente foi realizada pela equipe de atendimento, seguindo fluxo estabelecido.
Oriento o beneficiário a registrar a insatisfação na ouvidoria da operadora para conhecimento do chamado.
Atenciosamente, […]".

Absolutamente equivocada a conduta praticada pelos prepostos do hospital!

Isso porque, como é sabido, a consulta médica é considerada um ato complexo, já que, composta de cinco etapas, a saber:

1) A anamnese, que nada mais é que a entrevista realizada pelo médico junto ao paciente, com a finalidade de colher a história atual e pregressa do paciente, seus hábitos, sinais e sintomas, imprescindíveis, via de regra, à adequada conclusão diagnóstica e a assertividade na resolução do problema de saúde apresentado;

2) O exame físico, que consiste em analisar o paciente, por meio de inspeção, palpação, percussão e/ou ausculta, a fim de observar seus principais sinas e sintomas clínicos;

3) A conclusão diagnóstica  que é o registro médico das principais hipóteses diagnósticas, extraídas do exame clínico realizado (anamnese + exame físico) e, eventualmente, de outros exames auxiliares de diagnóstico;

4) O prognóstico, que consiste na tentativa médica de se precisar provável evolução e tempo da doença ou lesão;

5) A prescrição terapêutica, que consiste na descrição médica (escrita ou não), com o fim de detalhar ao paciente, as instruções necessárias ao tratamento do seu problema de saúde.  

Assim, aliás, é a exata expressão da Resolução nº 1.958/2010, do Conselho Federal de Medicina, que de forma textual, estabelece:

"Artigo 1º. Definir que a consulta médica compreende a anamnese, o exame físico e a elaboração de hipótese ou conclusões diagnósticas, solicitação de exames complementares, quando necessários, e prescrição terapêutica como ato médico completo e que pode ser concluído ou não em um único momento".

Importante destacar, como bem elucidado na parte final do supramencionado artigo, que as cinco etapas que compreendem a consulta podem ou não ser concluídas em um único momento. Em outras palavras, a "consulta", para ser considerada perfeita e acabada, deve percorrer as cinco etapas, ainda que realizadas, parte num determinado dia, parte em outro (ou outros)!

É bem verdade que, uma consulta, para ser considerada "perfeita e terminada", precisa percorrer necessariamente as cinco etapas, definidas na normativa supracitada!

Sim, pois, para se chegar numa segura hipótese diagnóstica, nem sempre se faz necessário ao médico, por exemplo, a realização de exames complementares de diagnóstico. Da mesma forma, concluindo o profissional, após a anamnese e o exame físico, que inexiste qualquer patologia instalada, não mostra adequada, por óbvias razões, a realização de qualquer prescrição terapêutica!

Porém, não é menos verdade que, ao ser solicitado, para a conclusão diagnóstica, a realização de exame complementar, mostra-se, naquele momento, ainda incompleta e inacabada a consulta médica inicial, que somente será por lei finalizada, no ato da leitura e análise do seu laudo, com o estabelecimento do diagnóstico do paciente, o prognóstico da doença e eventual prescrição médica, pouco importando se tudo isso ocorrer no ato do atendimento inicial ou em momento posterior.

Em outras palavras, até que isso aconteça, a consulta ainda se encontra em curso de finalização e, por isso, não poderá haver, por crassa inadequação jurídico-legal e moral, cobrança de nova consulta pelo mesmo fato/problema/patologia!

Assim, aliás, está expressamente normatizado no §1º, do artigo 1º, da Resolução supramencionada, in verbis:

"Quando houver necessidade de exames complementares que não possam ser apreciados nesta mesma consulta, o ato terá continuidade para a sua finalização, com tempo determinado a critério do médico, não gerando cobrança de honorário".

No mesmo sentido é o Parecer-Consulta nº 08/2021, do Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremec), de 1/3/2021, que com clareza de detalhe, assim pontifica:

"De acordo com a referida Resolução (nº 1.958/10), o retorno do paciente para a apreciação de exames, para um planejamento e proposta de prescrição ou procedimentos terapêuticos, faz parte da consulta com um ato médico completo. Não há previsão de um tempo mínimo estabelecido entre a consulta e o dito retorno para a apreciação de exames ou relatórios médicos, portanto não devendo haver nova cobrança de honorário".

Não é desnecessário lembrar que o caso ora analisado não se refere a novo evento médico, ou acompanhamento de doença ou lesão já diagnosticada, nova patologia e nem alterações de sinais e/ou sintomas do primeiro atendimento  estes sim, passíveis de nova cobrança honorária – mas sim, a necessidade da conclusão de um ato médico já cobrado, porém, ainda inacabado, já que pendente a análise técnica do exame específico requisitado pela profissional de medicina, a fim de se estabelecer um diagnóstico ao quadro do paciente!

Disso demonstrado, conclui-se que:

"I – o retorno do paciente ao médico, para a entrega e a análise do resultado de um exame, não gera a sua obrigação de pagar por nova consulta médica, já que complemento/continuação do primeiro ato;
II – que a conclusão externada no item 'I' vale para quaisquer 'tipos de consulta', inclusive, para as consultas em pronto socorro, desconhecemos, seja na 'Lei dos Planos de Saúde', seja nas normativas emanadas do Conselho Federal de Medicina, qualquer diferenciação técnica entre consultas".

Aliás, embora aparentemente válido, entre hospitalar e o médico, o estabelecimento de uma subdivisão organizacional e/ou financeira entre tipos e momentos diferentes do atendimento (ex: consulta em pronto socorro, consulta domiciliar, consulta eletiva, consulta noturna, consulta particular, consulta via convênio, consulta de urgência/emergência, etc.), o mesmo não se pode dizer na relação existente entre médico-paciente-hospital, visto que não há, dentre os diversos regramentos que tratam sobre o tema [2], nenhuma observação, nenhuma particularidade, enfim, nenhuma diferenciação, instituição ou estabelecimento de critério que suprima de determinado paciente (inclusive, paciente em consulta de pronto socorro), o seu direito (e a obrigação do médico) ao cumprimento das cincos etapas inerentes à consulta!

Pudera, todo paciente, sem distinção, traz em seu íntimo anseios iguais, angústias idênticas, as mesmas expectativas: a ávida busca de amparo médico, capaz de solucionar seu problema de saúde, em nada diferenciando (e nem importando), portanto, as suas características pessoais, o seu poder aquisitivo, a forma adotada para o pagamento do serviço, o horário do seu atendimento!

Com invulgar maestria, o Cremesp, no julgamento da Consulta nº 118.275/05, consignou que "a atividade médica não pode ser medida em quantos dias o paciente deve ou pode retornar ao médico, mas sim pelo bom julgamento clínico do médico e pela necessidade do paciente, respeitando-se o que diz o artigo 2º do Código de Ética Médica, que reza que… 'O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional'".

Data maxima venia, parece-nos também absurda, se não risível, a "sugestão" repassada pelo hospital ao consumidor-paciente no sentido dele "registrar a insatisfação na ouvidoria da operadora para conhecimento do chamado", como se a este coubesse a obrigação de resolver nítido desacordo comercial, existente entre as instituições e seus médicos!

Lembre-se, aqui, as lições do Conselheiro do Conselho Federal de Medicina, Edson de Oliveira Andrade, que em brilhante voto, assim no Processo-Consulta nº 3.556/95 [3]:

"[…] O direito de o médico pactuar a forma como oferece os seus serviços aos convênios não se confunde com a sua obrigação para com os pacientes que o procuram.
O médico pode recusar-se a ser conveniado ou cooperado com base no entendimento de que é mal remunerado. No entanto, uma vez acordada a sua participação no quadro de médicos referenciados, este argumento não mais pode ser utilizado para discriminar pacientes.
O paciente que procura ajuda médica traz como maior riqueza a sua humanidade  a qual e por si só basta e é suficiente.
O direito de considerar-se mal remunerado permite ao médico denunciar o pacto realizado com a cooperativa ou o convênio. Jamais poderá, contudo, qualificar ou quantificar o seu trabalho com base no quantas recebido. […]
Palmilhar estes caminhos é transformar a Medicina em ato de mercancia, onde teremos serviços médicos de todos os quilates e preços; adequando-se cada um (talvez!) à remuneração recebida".

Temos, portanto, como reprovável juridicamente, a prática perpetrada pelo estabelecimento de saúde, ao exigir do paciente novo pagamento, a título de consulta médica, quando ainda pendente a análise de exame e, de conseguinte, a conclusão da consulta (já paga); prática que, como visto, poderá gerar ao médico e/ou ao estabelecimento de saúde, penalidades na esfera administrativa da classe, além de responder judicialmente por eventuais prejuízos materiais e morais sofridos pelo paciente.


[1] Bordão eternizado pelo comediante Henrique Maderite  @henriquemaderite.

[2] Cite-se, exemplificativamente: Resolução CFM nº 1.958/10, Resolução CFM nº 2.077/14, Resolução CFM nº 1.451/9, Lei 9.656/98, RN-465 da ANS, etc..

[3] Processo-Consulta nº 3.556/95, aprovado pelo Pleno do Conselho Federal de Medicina (CFM), em Sessão Plenária do dia 17/03/2000.

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