Opinião

Pedido de patente e publicação de artigo: equilíbrio a ser atingido na pós-graduação

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19 de abril de 2022, 9h12

Das inúmeras atribuições que cumprem às universidades, cujas missões constitucionalmente estabelecidas são o ensino, a pesquisa e a extensão [1], destaca-se na última década a função da transferência tecnológica, ou seja, "a transmissão para o ambiente socioeconômico dos conhecimentos e tecnologias gerados em seu seio e com sua participação" [2].

O professor catedrático de Direito Mercantil da Universidade de Salamanca, Fernando Carbajo Cascón, sustenta que a pesquisa é um dever dos membros das universidades e institutos concernentes. Ela não conduz necessariamente a resultados concretos, embora geralmente conduza a resultados que podem ser de natureza distinta, o que levanta a questão sobre "a quem eles pertencem" e como esse pertencimento pode ser garantido, sendo esses resultados criações intelectuais decorrentes do processo de pesquisa [3].

Já a professora Catherine Blaizot-Hazard, considera a pesquisa científica aplicada "como a ação de tentar empurrar para trás os limites do conhecimento. A investigação científica constitui, portanto, esta ação desenvolvida no quadro de um corpo coerente de conhecimentos relativos a certas categorias de fatos, objetos ou fenómenos que obedecem a leis verificadas por métodos experimentais. […] pesquisa científica inclui a exploração de seus resultados. Pesquisa e desenvolvimento são, de fato, inseparáveis hoje; a segunda tornou-se mesmo, por lei, um objetivo a ser perseguido pela primeira" [4].

O pesquisador-inventor, aluno ou professor, é, de fato, "a pessoa mais familiarizada com os detalhes de sua tese ou projeto de pesquisa", que "passou incontáveis horas no laboratório experimentando condições e fazendo corrida após corrida para investigar suas questões de pesquisa", que "estudou a literatura e está atualizada sobre todas as descobertas passadas e mais recentes em sua área de tese/projeto", e que geralmente "sabe quem está fazendo o que em todo o mundo em seu tópico" [5].

Diante deste cenário, constata-se que, para além dos critérios gerais de mensuração/avaliação da atividade acadêmica do pesquisador — quantidade de publicações, citações auferidas e fator de impacto (h-factor) etc. —, há cada vez mais interesse no critério específico das parcerias [6] traçadas entre instituições públicas de ensino e organizações privadas, estabelecidas conforme as normas de incentivo para tal fim (vide a Lei de Inovação – 10.973/2004), "fortalecendo o vínculo entre o mundo acadêmico e o mercado" [7].

Contudo, mesmo considerando que a garantia de direitos de propriedade intelectual é fundamental no contexto da produção tecnocientífica universitária em parceria com o setor produtivo, aspecto este que integra a agenda nacional há mais de duas décadas, a realidade em relação às instâncias acadêmicas revela um cenário ainda incipiente.

Dados da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) apontam que, até o ano 2020, o Brasil soma mais de 4.000 programas de pós-graduação em atividade [8]. Durante o quadriênio 2017-2020 a Capes contabilizou dados sobre a produção intelectual da pós-graduação stricto sensu nacional.

Foram relatados mais de 15 mil títulos de propriedade industrial, entre patentes e registros de software, solicitados por ou em conjunto com universidades de todo o Brasil [9]. No mesmo período, foram relatados mais de um milhão de artigos acadêmicos publicados em periódicos científicos [10]. Ou seja, comparativamente, a reivindicação de títulos de intangíveis representam apenas 1,5% em relação a produção científica publicada.

Para a constituição (entrada) e manutenção (permanência) dos programas de pós-graduação nacionais, a Capes realiza desde 1998 a Avaliação Periódica do Sistema Nacional de Pós-Graduação, em 49 áreas de conhecimento hierarquizadas em quatro níveis — grande área, área básica, subárea e especialidade – com a atribuição, ao final da avaliação, de notas em escala de um a sete [11].

O processo de avaliação está fundado no princípio da legalidade administrativa, e uma das principais regras que o fundamentam é a Portaria nº 182, de 14 de agosto de 2018, que dispõe sobre processos avaliativos das propostas de cursos novos e dos programas de pós-graduação stricto sensu em funcionamento [12]. O artigo décimo dessa normativa dispõe que "os critérios para avaliação periódica estarão dispostos em Documentos Orientadores das áreas de avaliação, disponíveis no sítio eletrônico da Capes". No artigo décimo desta norma consta que "os critérios para avaliação periódica estarão dispostos em Documentos Orientadores das áreas de avaliação, disponíveis no sítio eletrônico da Capes".

A título de exemplo sobre a diferença de consideração entre patentes e publicação científica, traz-se dados de um destes documentos orientadores (ficha de avaliação) correspondente a área de Engenharias II (composta pelas Engenharias Química, Têxtil, Nuclear, de Minas e de Materiais e Metalúrgica, e dividida nas modalidades Acadêmica e Profissional) [13] [14].

A ficha é dividida em três itens: programa, formação e impacto na sociedade. Dentro do item formação, o qual é destinado a avaliar a produção dos docentes/discentes, apenas 3% do cômputo pertinente a tal item é atribuído a patentes na modalidade acadêmica, onde a grande maioria dos programas de pós-graduação atua [15].

Quando avaliado o impacto na sociedade pelos programas de pós-graduação, no subitem "Impacto e caráter inovador da produção intelectual em função da natureza do programa", dos 30% do cômputo pertinente a tal subitem, onde busca-se avaliar aplicabilidade, impacto e caráter inovador da produção intelectual, apenas 8% é destinado a patentes nacionais, e 10% a internacionais [16]. Já o índice h (h-factor), que indica o número de citações dos artigos, detém 12% do cômputo.

Ou seja, mesmo quando se propõe, com a descrição pela ficha, em quantificar o impacto das pesquisas na sociedade, o percentual mais relevante se refere a citações de artigos, que, em sua grande parte, são restritos à comunidade acadêmica.

Dessa forma, a fim de melhorar os seus indicadores pessoais e dos seus programas, os pesquisadores direcionam a sua produção intelectual para a publicação de artigos, como demonstra a figura 1. No comparativo apresentado, observa-se que o quantitativo de patentes é proporcional aos critérios estabelecidos na ficha de avaliação, no item formação.

Reprodução
Figura 1: Produção intelectual (artigos e patentes) no quadriênio, referentes a área de Engenharias II
Fonte: dadosabertos.capes.gov.br [17]

A partir dessas informações, percebe-se que as patentes — em particular para a área de Engenharias II, embora esse quadro possa refletir também a situação das outras Engenharias e áreas — representam um critério de destaque avaliativo inferior quando em relação às publicações científicas em geral.

Vale ressaltar ainda que muitas universidades apresentam dificuldades no reconhecimento dos pedidos de patente, de patentes concedidas ou de transferências realizadas — efetuados pela instituição em conjunto aos pesquisadores-professores-inventores (muitas vezes, servidores públicos) de seu quadro — a título de pontuação para o sistema de progressão de carreira no magistério superior.

Porém, pode-se perceber também que esforços estão sendo empreendidos para mudanças neste cenário. A Portaria nº 502, de 2021, recém-promulgada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que tem por objeto definir as regras do Direito de Propriedade Intelectual que se aplicam às relações entre o CNPq e as instituições executoras de projetos, bolsistas e pesquisadores beneficiados pelos instrumentos de fomento do Conselho, é um excelente exemplo destes esforços [18]. Destaca-se a redação de seu artigo 4º: "A divulgação de informações relacionadas com o projeto não pode prejudicar a eventual obtenção de proteção para a propriedade intelectual sobre os conhecimentos gerados com o apoio do CNPq".

Esse dispositivo é afeto ao mecanismo do período de graça previsto na Lei de Propriedade Industrial que, para as patentes, corresponde a desconsideração da divulgação de invenção ou modelo de utilidade quando ocorrida durante os 12 meses que precederem a data de depósito ou a da prioridade do pedido de patente, se promovida pelo inventor, pelo INPI ou por terceiros em decorrência de informações ou atos promovidos pelo próprio inventor (Artigo 12, I, II e III, Lei 9.279/96).

É muito comum que os entregáveis (resultados finais) de um projeto de pesquisa impliquem um relatório ou documento semelhante sobre o seu desenvolvimento (que pode envolver prestação de contas, quando da presença de subvenção ou investimento externo), um artigo científico que detalha o projeto, entre outros instrumentos de publicação.

Caso os resultados da pesquisa caracterizem invenção (por critérios legais e por critérios "empíricos"), caso haja interesse à concessão de uma patente, é recomendável a ponderação entre a publicidade derivada da divulgação da pesquisa em artigos, e o mecanismo do período de graça (que, no fundo, zela pelo requisito de patenteabilidade da novidade).

Tem-se um grande desafio nesta tarefa, pois que o tempo demandado para a concessão de uma patente varia muito no Brasil (bem como em outros países) a depender do domínio da técnica que a invenção apresenta.

Nesta seara, as competências atribuídas aos Núcleos de Inovação Tecnológica pela Lei de Inovação e pelas políticas de cada Instituição de Ciência, Tecnologia e Inovação, podem facilitar o processo, o que demanda de cada Universidade um corpo qualificado de colaboradores para, em conjunto com o pesquisador-inventor-professor, proporcionar as melhores condições de resguardo da criação intelectual.


[1] Artigo 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. (grifos nossos)

[2] TORRES, Luis Enrique Nores. La investigación bajo demanda. In: GARCÍA, Concepción Saiz; UREÑA SALCEDO, Juan Antonio. (dir.). Investigación, docencia universitaria y derechos de propiedad intelectual. Valencia: Tirant lo Blanch, 2015. p. 84-86 (tradução nossa)

[3] CASCÓN, Fernando Carbajo. Investigación, Ciencia, Propiedad Intelectual, Propiedad Industrial y Propiedad Científica. In: CASCÓN, Fernando Carbajo; POLO, Maria Mercedes Curto. (dir.). Propiedad intelectual y transferencia de conocimiento en universidades y centros públicos de investigación. Valencia: Tirant lo Blanch; Ediciones Universidad Salamanca, 2018. p. 42-43

[4] BLAIZOT-HAZARD, Catherine. Droit de la recherche scientifique. Paris: PUF, 2003. p. 1 (tradução nossa)

[5] MARCOLONGO, Michele. Academic Entrepreneurship: how to bring your scientific discovery to a successful commercial product. Nova Jérsei: John Wiley & Sons, 2017. p. 113

[6] Para um panorama internacional da matéria, vide REINGAND, Nadya (org.). Intellectual Property in Academia: a practical guide for scientists and engineers. Boca Raton: Taylor & Francis CRC, 2012. Particularmente no que se refere aos negócios jurídicos atinentes, a abordagem de Alberto López Cazalilla é oportuna: "Devemos ressaltar que, independentemente da natureza civil, comercial ou administrativa dos contratos, convênios ou acordos de transferência de tecnologia realizados pelos diversos agentes socioeconômicos, todos eles são regidos pelo princípio da autonomia da vontade, pois a vontade dos contratantes dão origem aos seus respectivos direitos e obrigações, de modo que o que é livremente acordado tem força de lei inter partes. […]. Devemos também levar em conta que, dadas as prerrogativas de que goza a administração pública e a rigidez do processo administrativo de contratação, no direito administrativo não prepondera o princípio da autonomia da vontade, mas sim uma liberdade de pactuações muito mais restrita […]. Daí a importância de conhecer a natureza civil, comercial ou administrativa do contrato de transferência de tecnologia que se pretende celebrar com agentes adscritos ao setor público, uma vez que o procedimento de contratação pode ser afetado por normas de cumprimento imperativo, e os direitos e obrigações dos contratantes restem convenientemente limitados." (Transferencia de tecnologia entre los sectores público y privado: convenios, contratos, joint venture y spin-off. In: BURGOS, Enrique Ortega (dir.). Actualidad Propiedad Industrial & Intelectual. Valencia: Tirant lo Blanch, 2020. p. 129-130 [tradução nossa])

[7] BARANI, Marie. Patents matter for universities. 2022. DIsponível em https://patentlawyermagazine.com/patents-matter-for-universities-maria-barani-reports/

[9] Os pedidos de patentes podem ter sido concedidos ou ainda estarem em fase de exame. Também os pedidos podem ter sido realizados em cotitularidade ou não. Dados detalhados em https://dadosabertos.capes.gov.br/dataset/2017-a-2020-producao-intelectual-de-pos-graduacao-stricto-sensu-no-brasil (vide Ano 2017 a 2020 – Tipo Técnica Subtipo Patente)

[10] Dados detalhados em https://dadosabertos.capes.gov.br/dataset/2017-a-2020-producao-intelectual-de-pos-graduacao-stricto-sensu-no-brasil (vide Ano 2017 a 2020 – Tipo Bibliográfica Subtipo Artigo em Periódico)

[14] "O mestrado acadêmico visa, primordialmente, o preparo de profissionais para atuação na docência superior e na pesquisa acadêmica. O mestrado profissional é voltado para a capacitação de profissionais, nas diversas áreas do conhecimento, mediante o estudo de técnicas, processos ou temáticas que atendam a alguma demanda do mercado de trabalho." (BRASIL. Capes. Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes/sobre-a-cap)

[15] Soma-se ao fato de que, na área de Engenharias II, 131 cursos de pós-graduação (mestrado + doutorado) são de modalidade acadêmica, enquanto que apenas 11 cursos (mestrado) são de modalidade profissional. (Dados detalhados em https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/programa/quantitativos/quantitativoAreaConhecimento.xhtml?areaAvaliacao=12>)

[16] Sendo esta última (internacional) um indicador praticamente inacessível, devido ao alto custo financeiro envolvido.

[18] "A norma do CNPq traz o aprimoramento da publicação da pesquisa e, ao mesmo tempo, procura garantir o retorno dos investimentos públicos. Nessa perspectiva, cumpre a CAPES aperfeiçoar o modelo avaliativo dos programas nacionais de pósgraduação, bem como cabe as Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (FAPs) e demais instituições públicas em âmbito municipal, estabelecerem critérios de disponibilidade à recursos públicos que possibilitem acesso ao conhecimento produzido com pesquisas e fortaleçam a geração de ativos intangíveis. Considerando esses fatores, a atuação dos Núcleos de Inovação Tecnológica torna-se ainda mais estratégica no sentido de orientar as atividades de pesquisa e contribuir para o desenvolvimento de competências relacionadas a reivindicação de títulos consistentes de propriedade intelectual. Sugere-se estudos futuros que possam contribuir com o aprimoramento do zelo à garantia da PI nas ICTs, assim como voltados a propor metodologias diagnósticas relacionadas." (ARRABAL; WIGGERS; et. al. Disponível em http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i11.19978)

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