Opinião

Aplicabilidade da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais

Autor

  • Alberto Hora Mendonça Filho

    é advogado mestre em Direitos Humanos pela Universidade Tiradentes (Unit-SE) especialista em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor da graduação e pós-graduação em Direito e conselheiro do Instituto dos Advogados de Sergipe (Iase).

18 de abril de 2022, 20h08

"E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!

Ninguém as vê cair dentro de mim!"

(Florbela Espanca)

Não obstante uma série de tratados e convenções internacionais voltados a erradicar a discriminação de gênero e a violência contra a mulher [1], além da própria vontade constitucional e convencional, o Brasil, até a edição da Lei nº 11.340 em 2006, não possuía uma lei específica sobre o tema — tão apenas os decretos que internalizaram [2] aqueles.

Contudo, a mencionada lei não surgiu do acaso, mas como decorrência de uma recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para, dentre outros pontos, "prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil" [3].

Demonstrando, portanto, uma aproximação ao sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, a Lei nº 11.340/06 (conhecida, bastante justamente, como Lei Maria da Penha) prevê, em seu artigo 6º, que "a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos".

Assim, conforme esclarece Renato Brasileiro de Lima [4], reconhecendo a infelizmente comum opressão da mulher na sociedade, a legislação prescreve meios para enfrentar a violência doméstica e familiar praticada contra a mulher, outorgando proteção especial ao gênero feminino, "conferindo proteção diferenciada ao gênero feminino tido como vulnerável quando inserido em situações legais específicas elencadas pelo artigo 5º: a) ambiente doméstico; b) ambiente familiar; ou c) relação íntima de afeto".

Pioneira e acertadamente, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça garantiu a aplicabilidade a Lei Maria da Penha às mulheres trans vítimas de violência doméstica, por oportunidade do julgamento do Recurso Especial nº 1.977.124.

No voto vencedor de relatoria do ministro Rogério Schietti, afastou-se o fator meramente biológico para caracterizar a incidência da Lei nº 11.340/06, afirmando que a "mulher trans mulher é".

A nosso ver, a decisão da Corte Cidadã harmoniza-se à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da união homoafetiva (ADI nº 4.277), alteração do registro civil (ADI nº 19), inaplicabilidade dos benefícios processuais da Lei nº 9.099/95 nos casos de violência doméstica (ADC nº 19), etc (inclusive, citados no próprio voto da relatoria).

A priori, vale acentuar a relevância do debate, o qual poderia ser objeto de reforma legislativa (mas, novamente, não adveio do Poder Legislativo voluntariamente). Com efeito, o Brasil ocupa a funesta liderança como país que mais mata pessoas trans em todo o mundo, sendo, tão somente em 2021, expressivos 140 homicídios mapeados pelo dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) [5] — isso sem contabilizar outras formas de violência.

Pois bem, como fundamentado no acórdão do STJ, o artigo 5º menciona a mulher, mas, logo após, aborda a violência praticada (c)omissivamente com base no "gênero".

O Poder Judiciário realiza, assim, uma interpretação extensiva, cujo fito, segundo Cezar Roberto Bitencourt [6], é de harmonizá-la com a sua volunta legis, quando, suprindo uma lacuna, amplia o seu alcance.

Vale lembrar que a referida lei advém da necessidade de proteção da família (vide artigo 226, § 8º, CF/88) e da igualdade material (artigo 24 da CADH), protegendo-se aquele que, em razão do gênero, está em situação de vulnerabilidade no seu contexto doméstico.

As consequências da aplicabilidade da Lei Maria da Penha conduzem a um maior rigor penal, pois afasta a transação penal e a suspensão condicional do processo (artigo 41 da Lei nº 11.340/06, corroborado pela Súmula nº 589 do próprio STJ).

Logo, mostra-se, ainda mais, recomendado que os órgãos policiais empreendam os esforços para o quanto antes apurar as circunstâncias do caso e dos envolvidos, pois podem alterar, drasticamente, o procedimento investigativo e o futuro processo judicial.

No sentir deste autor, o tempo e as futuras manifestações jurisdicionais são imprescindíveis para uma análise mais profunda deste novo entendimento. No entanto, vale frisar algo que não ficou muito explícito, mas aparentemente será seguido, da qual, inclusive, concordamos.

A presunção de vulnerabilidade, quando o sujeito ativo não for o homem, será de presunção relativa ou juris tantum, demandando a mensuração da hipossuficiência física, econômica ou emocional. Imagine-se, por exemplo, uma mulher trans que se relacione com outra mulher, há de se aplicar, automaticamente, a Lei Maria da Penha? A nosso ver, deve ser negativa a resposta, conquanto dependeria da referida comprovação de hipossuficiência.

A literatura de Jorge Amado indicava que "temos olhos de ver e olhos de não ver, depende do estado do coração de cada um". É significativo que o Direito olhe "com os olhos de ver" para aqueles que querem apenas o direito de dignamente viver.


[1] Exemplificando: Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres de 1981; Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica

[2] Vale lembrar a observação de Alexandre Coutinho Pagliarini de que não é necessário que o Direito Internacional seja incorporado pelo Direito interno (transformado em Direito nacional) de um país para se fazer valer” (PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Teoria Geral e Crítica do Direito Constitucional e Internacional dos Direitos Humanos. In: PAGLIARINI, A. C.; DIMOULIS, D. Direito Constitucional e Internacional dos Direitos Humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. P. 27-28).

[3] ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Relatório n. 54. Caso 12.051 (Maria da Penha Maia Fernandes versus Brasil). 4/4/2001. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso em: 12/4/2022.

[4] LIMA, Renato Brasileiro de Lima. Legislação Criminal Especial Comentada. 7ª ed., Salvador: Juspodivm, 2019. p. 1479.

[5] ESTADÃO. Brasil continua líder mundial de assassinatos da população trans. São Paulo. 29/1/2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/01/29/brasil-continua-lider-mundial-de-assassinatos-da-populacao-trans.htm. Acesso em: 12/4/2022.

[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. 19ª ed., Saraiva, 2013. p. 198

Autores

  • é advogado, mestre em Direito pela Universidade Tiradentes (Unit-SE), pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e integrante dos grupos de pesquisa Políticas Públicas de Proteção aos Direitos Humanos e Novas Tecnologias e o Impacto nos Direitos Humanos.

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