Opinião

Saiba mais sobre o crime de violência institucional

Autor

  • Jose Luiz da Silva

    é bacharel em Direito pela Unifai Adamantina (SP) pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Paulista de Direito professor de Direito Penal e Processo Penal na Escola Superior de Soldados da PM-SP em Junqueirópolis (SP) e policial militar do estado de São Paulo.

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16 de abril de 2022, 6h34

No último dia 31 de março, a Lei nº 14.321 incluiu o artigo 15-A no texto da Lei contra o abuso de autoridade (Lei nº 13.869/19) sob a rubrica marginal de "Violência Institucional".

Esse novo tipo penal é fruto de um projeto iniciado em 2020, que nasceu após a repercussão nacional daquele que ficou conhecido como caso "Mariana Ferrer".

A jovem e bela promotora de eventos em Santa Catarina acusou um jovem e rico empresário, André, de, no ano de 2018, durante uma festa em uma boate, tê-la dopado e mantido relações sexuais não consensuais, estando ela vulnerável e incapaz de resistir.

O fato tomou proporções nacionais em setembro de 2020, quando, durante a audiência de julgamento, a vítima e testemunha Mariana sofreu os mais diversos ataques por parte da defesa, que tentava a absolvição do réu.

Não nos interessa aqui adentrar o mérito da tese de defesa sustentada ou da decisão proferida, mas tão somente relembrar o ocorrido. A audiência foi realizada remotamente, o que pode ter contribuído para os excessos da defesa e a inércia do Ministério Publico e do magistrado.

Mariana sofreu diversos ataques à sua honra, viu fotos suas serem apresentadas de forma pejorativa, chorou muito, teve que se retirar para tomar água e se acalmar, e o que mais surpreendeu foi a inércia do promotor de Justiça e do juiz do caso, que, em nenhum momento atuaram para proteger os direitos da vítima.

A divulgação das imagens de uma mulher, vítima de crime sexual (lembrando que não estamos analisando o mérito do caso), "rodeada" por homens, sendo mais uma vez vitimizada, repercutiu de forma muito negativa e movimentou não só a sociedade civil, mas principalmente o Legislativo, que apresentou projetos para coibir prática semelhante.

Busca-se, com isso, impedir a "revitimização", ou seja, a vitimização secundária daquele que já foi vitima de infração penal.

Desenvolvimento
"Violência Institucional
Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade"

Rubrica marginal
Em primeiro momento o projeto de lei nº 5.091/20 trouxe, sob o titulo de "Violência Institucional", um texto diferente do aprovado par ao artigo 15-A.

O texto, basicamente reproduzia o conceito de violência institucional trazido no artigo 5º, I, do Decreto nº 9.603/18, com poucas adaptações necessárias.

Com sua tramitação, emendas foram aprovadas, dando origem ao atual texto, que se aproximou do conceito de "revitimização", também trazido no artigo 5º, II, do Decreto nº 9.603/18 — contudo, não alterou a rubrica marginal do tipo, que, acreditamos, seria mais adequado caso fosse definido como "Revitimização".

Ademais, esse passou a ser, até o momento, o único caso de tipo penal com rubrica marginal previsto na Lei de Abuso de Autoridade.

Bem jurídico tutelado
O crime do artigo 15-A, além de tutelar a Administração Publica, alcança também a honra e dignidade da vitima de infrações penais e da testemunha de crimes violentos.

Sujeitos do crime
Sujeito Ativo
O sujeito ativo do crime é o agente público, nos termos do artigo 2º da Lei nº 13.869/19. Trata-se de crime próprio, pois exige do agente uma qualidade especial.

Apesar de a cultura nacional levar o leitor a lembrar dos agentes da segurança pública e dos que participam da persecução penal, todo agente publico que trate com a vítima ou testemunha, pode ser sujeito ativo deste crime, como por exemplo, o médico ou enfermeiro que atenda a vítima, ou ainda o assistente social que preste assistência à vitima ou à testemunha.

Concurso de agentes públicos com particulares
Essa qualidade especial do sujeito ativo figura como verdadeira elementar do tipo penal, e nos termos do artigo 30 do Código Penal, comunica-se com o particular que venha a atuar na condição de coautor ou partícipe na pratica do crime.

No entanto, para ocorrência do concurso de pessoas, faz-se necessário que o particular tenha ciência da qualidade especial de servidor público do coautor, sob pena de responder por outro crime, a depender do caso concreto, assim ensina o professor Renato Brasileiro de Lima:

"De todo modo, se o particular agir em concurso de pessoas com o agente público, é indispensável que o extraneus tenha consciência de sua qualidade especial, sob pena de não responder pelo crime de abuso de autoridade. De fato, desconhecendo essa condição de agente publico, o dolo do particular não terá o condão de abranger todos os elementos constitutivos do tipo, configurando-se o denominado erro de tipo, que afasta a tipicidade da conduta. Responderá, todavia, por outro crime, nos termos da previsão do art. 29, §2º, do Código Penal, que cuida da chamada cooperação dolosamente distinta."

Sujeito passivo
Os crimes de abuso de autoridade previstos na Lei 13.869/19 são delitos de "dupla subjetividade passiva". São condutas que atingem dois sujeitos passivos: de um lado, o Estado (Poder Público), que tem sua imagem, credibilidade e até patrimônio ofendidos; do outro, a pessoa física ou jurídica diretamente atingida ou prejudicada pela conduta abusiva, como, por exemplo, a pessoa presa, no caso do crime do artigo 13.

No artigo 15-A temos dois sujeitos passivos primários: a vitima de infração penal (vitima de crime ou contravenção, violentos ou não) e a testemunha de crimes violentos (testemunha de crime violento, não incluindo a contravenção)

O legislador não fez diferença entre a violência própria e imprópria, o que nos faz acreditar que ambas justificam a caracterização do sujeito passivo.

Tipo objetivo
O núcleo do tipo é o verbo "submeter", ou seja, tirar a liberdade e a independência de; dominar, subjugar, sujeitar.

Como se trata de um crime praticado por agente público, essa capacidade de submeter alguém acaba sendo, em certos casos, fácil de comprovar. É fácil imaginar que uma simples orientação vinda de uma autoridade policial, por exemplo, adquire certa coercibilidade.

O objeto material deste crime é o próprio sujeito passivo, ou seja, a vítima de infração penal e a testemunha de crime violento.

A conduta do sujeito ativo pode ser comissiva ou omissiva. Comissiva no caso do caput do artigo 15-A e § 2º, e omissiva no do § 1º do mesmo artigo.

Sobre o objeto material podem recair três ações: procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos.

Primeiramente cabe destacar que, "procedimento" pode ser conceituado como sendo o modo pelo qual alguém realiza algo, ou também, a maneira como alguém deve agir em uma situação especifica. Assim, os atos da administração pública em regra são procedimentais, tem previsão legal sobre como devem ser realizados.

Portanto, nos parece mais acertado afirmar que, como o legislador utilizou apenas a palavra procedimento, ele quis abranger tanto os procedimentos oficiais como os não oficiais.

Os procedimentos realizados devem ser: desnecessários, repetitivos ou invasivos, e ainda, levar a vitima a reviver, de forma desnecessária, uma das situações dos incisos I e II.

Quanto aos procedimentos desnecessários não temos dificuldade em afirmar que são aqueles que em nada contribuem para a elucidação dos fatos. Por sua vez, os procedimentos invasivos são aqueles que invadem qualquer parte do corpo humano, semelhante às cirurgias. Agora, quanto aos procedimentos repetitivos fica um ponto a se debater, quantas vezes deve se repetir um procedimento para que ele possa ser considerado repetitivo?

Podemos afirmar com muita tranquilidade que procedimento repetitivo é diferente de procedimento repetido. Parece não haver duvidas que um procedimento realizado duas vezes pode ser considerado repetido, todavia não seria razoável considerá-lo repetitivo.

Com a devida vênia, nos parece mais razoável que a definição de procedimento repetitivo seja obtida no caso concreto, com base no tipo de procedimento e na quantidade de vezes que se repetiu.

A parte final do artigo 15-A traz que as ações devem ser potencialmente lesivas a ponto "que a leve a reviver, sem estrita necessidade", as situações dos incisos I e II.

Sabemos que ser vitima ou testemunhar um crime não é agradável, e certamente não se quer reviver essa situação. Todavia, muitas vezes é necessário que essa vitima ou testemunha "reviva" o fato, ainda que em sua mente, pois o processo penal requer a colheita de elementos informativos e sua reprodução em juízo, com o fim de se elucidar crimes e punir responsáveis.

Conhecedor disso o legislador introduziu no tipo penal o elemento normativo "sem estrita necessidade" para tornar atípica a conduta do agente publico que faça a vitima ou testemunha reviver uma das situações dos incisos I e II, através de procedimentos repetitivos ou invasivos, mas que sejam estritamente necessários.

Obviamente, na conduta de submeter o sujeito passivo a procedimentos desnecessários, não se exige a analise do elemento normativo descrito acima, isso porque se o procedimento inicial já é considerado desnecessário é impossível que o elemento normativo o transforme em estritamente necessário.

A pena aplicada ao crime do caput é relativamente branda, detenção de três meses a um ano, idêntica a aplicada ao crime do artigo 146, caput, do Código Penal — Constrangimento Ilegal.

5. § 1º. Se o agente publico permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços).

O § 1º traz causa de aumento de pena para o crime de violência institucional por omissão, pois pune a conduta do agente publico que se abstém de impedir que terceiro intimide a vitima de crimes violentos, gerando indevida revitimização.

Importante destacar que, o terceiro descrito acima deve ser necessariamente um particular sem vinculo com a administração publica, pois, caso contrario, ambos seriam coautores do crime do caput do artigo 15-A.

O agente público omisso respondera pelo crime do §1º, enquanto que o particular autor das intimidações respondera por crime diverso a depender dos meios utilizados para intimidar a vitima.

O sujeito passivo do § 1º é apenas a vitima de crimes violentos, ou seja, excluem-se as testemunhas e as vitimas de contravenções penais ou de crimes cometidos sem violência.

Para que o agente público omisso responda pelo crime do § 1º a conduta do terceiro deve ter potencial lesivo de "gerar uma indevida revitimização".

Caso a conduta do terceiro não tenha esse potencial, ou caso a revitimização seja necessária, não ha que se falar em crime do art. 15-A, podendo estar diante de crime diverso, a depender do caso concreto.

Aplica-se, ao agente público omisso, a pena do caput aumentada de 2/3 (dois terços).

§ 2º. Se o agente público intimidar a vitima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro.

Temos aqui mais um caso de aumento de pena, porem, o autor das intimidações é o próprio agente publico, merecedor de maior reprimenda — pena em dobro.

Em ambos, §§ 1º 2º, o que motivou uma maior reprimenda é o fato de que a conduta de “intimidar” tem uma maior gravidade em relação a submeter, por isso merecedora de maior atenção.

Tipo subjetivo
Nos crimes da Lei de Abuso de Autoridade, além do dolo, que é a vontade livre e consciente de realizar uma conduta, também reclamam um especial fim de agir, conforme artigo 1º, § 1º do referido diploma legal.

"Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal." (grifo meu)

O artigo 15-A e seus parágrafos, por comporem a referida Lei de Abuso de Autoridade, também reclamam para a sua consumação não apenas o dolo, mas também cumulativamente o especial fim de agir.

O dolo deve sempre ser identificado no fato típico, ou seja, o autor deve materializar o seu dolo de realizar, livre e conscientemente a conduta. Por sua vez, no que tange ao especial fim de agir, basta que exista na mente do autor, no seu psiquismo, não sendo necessário que se concretize para que o crime se consuma.

Sendo assim, para que o delito do artigo 15-A se consume, além dos requisitos objetivos do tipo o autor deve agir dolosamente e com o especial fim de: prejudicar outrem; ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro; ou por mero capricho ou satisfação pessoal.

Consumação e tentativa
Para sua consumação o tipo penal exige a ocorrência de um resultado específico, qual seja, que leve a vitima a reviver alguma das situações dos incisos I e II. Esse resultado esta presente não só no caput do artigo 15-A como também nos §§ 1º e 2º, onde, apesar do legislador utilizar o terno "revitimização", fica claro tratar-se do mesmo conteúdo do caput e seus incisos, haja vista que o conceito de revitimização consta no Decreto nº 9.603/18, em seu artigo 5º, II, que serviu de base para o projeto de lei que deu origem a essa alteração.

"Art. 5º Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:
II – revitimização – discurso ou prática institucional que submeta crianças e adolescentes a procedimentos desnecessários, repetitivos, invasivos, que levem as vítimas ou testemunhas a reviver a situação de violência ou outras situações que gerem sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem;"

Sendo assim, podemos afirmar que a execução se inicia quando o agente público submete o sujeito passivo a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos (no caso do caput), ou intimida (no caso do § 2º), ou ainda permite que terceiro intimide (no caso do § 1º), porem a consumação do crime ocorre apenas quando essas ações provocam no sujeito passivo os resultados exigidos, quais sejam, que a leve a reviver alguma das situações dos incisos I e II do caput, ou, no caso dos parágrafos, que gere indevida revitimização.

A tentativa, pelo menos em tese, é admitida, pois estamos diante de um delito plurissubsitente, cujo iter criminis é passível de fracionamento.

Autores

  • é bacharel em Direito pela Unifai Adamantina (SP), pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Paulista de Direito, professor de Direito Penal e Processo Penal na Escola Superior de Soldados da PM-SP em Junqueirópolis (SP) e policial militar do estado de São Paulo.

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