Diário de classe

Um brevíssimo histórico do pensamento hermenêutico filosófico

Autor

  • Luã Nogueira Jung

    é doutor e mestre em Filosofia pela PUC-RS pós-doutorando em Direito Público (Unisinos) professor do PPGD Unedsa-RJ e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

16 de abril de 2022, 8h00

Diante do início do grupo de estudo "Hermenêutica filosófica: uma introdução"1, promovido pelo grupo de pesquisa Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos, no último dia 14 de abril, aproveito a oportunidade para delinear neste espaço, e tendo em vista as limitações do mesmo, o caminho percorrido pelo pensamento hermenêutico nos últimos séculos. O tema, naturalmente, não é relevante apenas para os participantes do referido grupo de estudo, mas para todos que se interessam por filosofia, por hermenêutica jurídica e, em particular, pelas teses desenvolvidas pelo professor Lenio Streck2.

Em Historia de la hermenéutica, o filósofo italiano Maurizio Ferraris comenta que a hermenêutica filosófica "não significa interpretação de textos filosóficos, mas, justamente, a imposição da interpretação como questão fundamental da filosofia"3. Trata-se, pois, de uma perspectiva segundo a qual a interpretação é um traço universal da experiência humana de mundo. Em que pese a universalidade defendida pela hermenêutica contemporânea de Hans-Georg Gadamer, atenta-se para o fato de que a hermenêutica, desde a modernidade, se desenvolve como disciplina particular, como arte da compreensão relacionada a campos específicos como a filologia, a teologia, a história e o direito. Esta transição, de disciplina particular a paradigma filosófico, ocorre, portanto, gradativamente e de forma paralela à preocupação teórica acerca do estatuto teórico da linguagem e de seu papel constitutivo no desenvolvimento da consciência humana. Tal preocupação ganha espaço com a crítica romântica à Aufklärung.

Como afirma Michael Forster4, se a assim denominada virada linguística, cuja origem é para muitos a obra de Frege, tem por base os princípios teóricos de que (i) pensamento é essencialmente dependente e ligado pela linguagem, e (ii) significado consiste no uso das palavras, tal pressuposição acerca de sua origem é certamente falsa. De fato, se considerarmos os trabalhos escritos por autores românticos ou pré-românticos podemos afirmar que a virada linguística da filosofia se inicia, pelo menos, no século XVIII. Por exemplo, em Johann Georg Hamann (1730 – 1788) já se vê a formulação incipiente do princípio segundo o qual pensamento e linguagem são indissociáveis. No entanto, é em Johann Gottfried Herder (1744 – 1803) que o papel da linguagem começa a ser pensado de forma mais extensa e consistente, influenciando toda a filosofia alemã dos períodos posteriores.

Para Herder, o conceito de razão é indissociável de nossas capacidades linguísticas: "a linguagem constitui o verdadeiro caráter distintivo exterior da nossa espécie, tal como a razão constitui o interior"5. Wilhelm von Humboldt (1767 – 1835), no mesmo sentido, afirma que "a linguagem é o organismo formador do pensamento. […] a capacidade intelectual e a linguagem são, portanto, unas e inseparáveis entre si"6. Humboldt desenvolverá, a partir desta associação entre pensamento e linguagem, a famosa noção de "Weltansicht" (visão de mundo), segundo a qual nossa inserção em práticas linguísticas históricas determina o nosso horizonte de compreensão, tema que será tão caro a Gadamer.

Tais autores contribuíram para o desenvolvimento do pano de fundo teórico a partir do qual uma teoria da interpretação poderia se desenvolver. Como referido, no entanto, a hermenêutica enquanto disciplina não possuía unidade até sua refundação moderna, levada a cabo principalmente por Friedrich Daniel Schleiermacher (1768 – 1834). De acordo com Dilthey, "uma hermenêutica efetiva só poderia emergir em uma mente que combinasse a virtuosidade da interpretação filológica com uma capacidade filosófica genuína. Um homem com tal mente era Schleiermacher"7.

Para Schleiermacher, a tarefa da interpretação consiste em compreender um autor melhor do que ele próprio se compreendeu e, para tanto, deve-se fazer o uso de duas metodologias simultâneas, a gramatical e a psicológica. A interpretação psicológica se torna proeminente quando o foco se dá em relação a uma individualidade específica, cujo conteúdo reflexivo tem na linguagem um meio de expressão e de organização. A interpretação gramatical, por sua vez, é relevante quando analisamos o aspecto objetivo de um texto, ou seja, tanto a linguagem empregada como o seu contexto histórico e social.

A distinção entre ambas abordagens resulta no dualismo entre o método comparativo, voltado a uma abordagem analítica dos elementos do texto, e o método divinatório, onde o objetivo é o de o intérprete "transformar-se" ou "converter-se" (verwandeln) no autor para compreendê-lo diretamente (unmittelbar)8. A predominância do caráter subjetivo e psicológico da interpretação em Schleiermacher confere a esta uma inferioridade epistemológica em relação ao método científico, de maneira que, apesar da pretensão de desenvolvimento de uma teoria hermenêutica geral, esta permanece sendo uma arte cujas afirmações não atingem o nível de conhecimento objetivo.

Admirador e biógrafo de Schleiermacher, Wilhelm Dilthey (1833 – 1911) pretendeu dar sequência ao projeto hermenêutico encarado, principalmente a partir do autor, como aquilo que hoje chamamos de ciências do espírito ou ciências humanas (Geisteswissenschaften). O emprego da expressão "ciência", nesse sentido, não é casual. Instigado pelo ambiente teórico positivista de autores como Auguste Comte e John Stuart Mill, Dilthey pretende conferir às humanidades um estatuto metodológico mais rígido que as equiparem às ciências empíricas. Para Dilthey, enquanto a ciência natural busca explicar os fenômenos e relações causais, a hermenêutica lida com a compreensão das instituições históricas e sociais as quais constituem aquilo que o autor chama de "mundo da vida" (Lebenswelt). A pretensão de conferir maior objetividade metodológica às humanidades, todavia, não desvincula a hermenêutica de um caráter psicológico, tendo em vista que, para Dilthey, a interpretação está associada à reconstrução de processos mentais coletivos. Tal concepção leva Dilthey a conceber cada período histórico objeto de investigação como detentor de um espírito objetivo singular, fato que vincula o projeto do autor ao que criticamente chamamos de historicismo.

Se com Schleiermacher a hermenêutica ganha unidade e com Dilthey a mesma se estabelece como metodologia das ciências humanas, a partir da obra Ser e Tempo, de Martin Heidegger (1889 – 1976), ela adquire um caráter ontológico. Para o autor, o ser humano ou o ser-aí, Dasein, é o ente que pressupõe uma compreensão acerca de si mesmo. Antes de abstrairmos o mundo que nos circunda (Umwelt) através do método científico e de enunciados objetivos, já manifestamos uma dimensão de interação e reconhecimento acerca do sentido das coisas que não é puramente reflexiva. Trata-se de uma estrutura prévia que é constituída na medida em que nos desenvolvemos como seres de linguagem (logos). A consciência humana, portanto, possui um caráter inexoravelmente intersubjetivo. Este nível intersubjetivo é o que Heidegger chama de "como" hermenêutico, anterior ao "como" apofântico, ou seja, teórico: "É preciso uma atitude já muito artificial e complicada para 'ouvir' um 'barulho puro'. Que em primeiro lugar ouçamos motocicletas e carros é a prova fenomênica de que o Dasein, como ser-no-mundo, mantém-se cada vez junto ao utilizável do-interior-do-mundo, e de modo algum imediatamente junto a 'sensações' (Empfindungen), cuja concatenação tivesse primeiramente de ser formada para que se proporcionasse o trampolim a partir do qual o sujeito saltaria para alcançar finalmente um 'mundo'. O Dasein como essencialmente entendedor (compreendedor) é de pronto junto ao compreendido"9.

O tratamento de especificidades da obra de Heidegger neste curto espaço, assim como dos demais autores anteriormente referidos, excederia os limites da prudência e do bom senso intelectual. A ênfase dada ao aspecto pré-compreensivo de Dasein tem como objetivo destacar a relevância desta tese para o desenvolvimento de temas centrais de Verdade e Método, de Hans-Georg Gadamer (1902 – 2002). Influenciado pela ontologia de Heidegger e, simultaneamente, pela ambição epistemológica de Dilthey, Gadamer aborda o problema da historicidade do compreender direcionando-o às ciências humanas. Nesse sentido, não se trata mais de uma filosofia hermenêutica, como era o caso em Heidegger, mas de uma hermenêutica filosófica, o que não é mero jogo de palavras, mas uma relevante diferença em termos de projeto teórico10.

Apropriando-se do nível pré-compreensivo desenvolvido por Heidegger em Ser e Tempo, Gadamer, em diálogo com a dialética platônica e hegeliana, apresenta uma defesa da autonomia epistemológica das humanidades em relação às ciências naturais, estas pautadas pelo ideal metodológico de verificação e de certeza. Com este intuito, o autor propõe que a tradição (compreendida linguisticamente) e a historicidade são um traço determinante e positivo da interpretação, pois é a partir de contextos históricos concretos que processos interpretativos têm o seu starting point.

Uma vez que a interpretação consiste em um perguntar resultante de preocupações vinculadas a contextos historicamente situados, interpretar significa aplicar, ou seja: a resposta dada por determinado texto é dependente da pergunta que lhe é feita, e esta, por sua vez, tem sempre como origem o horizonte daquele que questiona. Como exemplifica Charles Taylor, nesse sentido, uma eventual diferença entre a interpretação histórica na China do século XXV e a nossa interpretação atual sobre o império romano não ocorrerá porque as mesmas proposições terão valores de verdade distintos: "a diferença, ao contrário, será a de que diferentes perguntas serão feitas, distintos problemas suscitados, distintas características serão destacadas como notáveis, e assim por diante"11.

Ao relacionar a interpretação à aplicação, Gadamer destaca a relevância paradigmática da interpretação jurídica para a teoria geral da hermenêutica. Como afirma Ferrariz, "seja porque no direito, tanto como na teologia e na literatura, se tem a experiência de uma dimensão canônica dos textos e de um alcance dogmático da tradição, contra as pretensões de uma razão privada de pressupostos; e seja porque no âmbito de uma filosofia de tipo existencial, a relação aplicativa do juiz frente ao dito da lei constitui o modelo geral da conexão prático-existencial do intérprete diante da tradição. Tampouco a relação do juiz, com efeito, é uma aproximação abstrata que deduz o particular do universal; aponta e define o significado objetivo e universal da lei partindo da situação concreta do caso individual sobre o qual se trata a sua deliberação"12.

Ainda que deixando de fora pontos relevantes da obra, é possível afirmar, em síntese, que a reconstrução crítica do problema hermenêutico e a defesa da universalidade da interpretação presente em Verdade e Método revelam o compromisso humanista da tradição hermenêutica em face do crescente predomínio da técnica e da consequente objetificação do ser humano.

Cada uma das teses aqui suscitadas guarda implicações profundas para a filosofia do direito. Elas são o pressuposto (e a solução) de dualismos constantes como, por exemplo, a relevância da "intenção do legislador" ou "vontade da lei", objetividade e discricionariedade, modelos processuais pautados entre o livre convencimento e prova tarifada, bem como de tantos outros problemas e incompreensões retratadas pelo professor Streck em livros como Verdade e Consenso13. No mesmo sentido de meus últimos dois textos nesta coluna14, pretendi fazer uma divulgação de autores e ideias relevantes para aqueles que se interessam por filosofia e por teoria do direito. Para uma abordagem mais detalhada sobre o desenvolvimento da hermenêutica filosófica, também indico o meu livro Verdade e interpretação: hermenêutica filosófica como alternativa ao naturalismo e ao relativismo15.


1 Para informações, contatar [email protected].

2 Nesse sentido, saliento que as ideias exploradas nesta coluna são desdobradas de forma mais extensa e profunda na obra STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2013, em especial capítulo 7 e seguintes.

3 FERRARIS, Maurizio. Historia de la hermenéutica. Traducción Jorge Pérez de Tudela. Madrid: Ediciones Akal S.A., 2000, p. 11.

4 FORSTER, Michael N. German Philosophy of Language: from Schlegel to Hegel and beyond. Oxford University Press, 2011, p. 1.

5 HERDER, Johann Gottfried. Abhandlung über den Ursprung der Sprache. Reclam, p. 43.

6 HUMBOLDT, Wilhelm von. Über die Verschiedenheiten des Menschliches Sprachbaues. Hofenberg, 2016, p. 42.

7 DILTHEY, Wilhelm. Selected Writings. Edited, Translated and introduced by H. P. Rickman. Cambridge University Press, 1976, p. 255.

8 SCHLEIERMACHER, F. D. E. Hermeneutik und Kritik. Suhrkamp Taschenbuch Wissenschaft, 1977.

9 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Fausto Castilho – Campinas, SP: Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012, 462/463.

10 "Podemos perceber a diferença decisiva entre Heidegger e Gadamer, observando que no primeiro se apresenta, como âmbito de pensamento, a filosofia hermenêutica, enquanto em Gadamer surge a hermenêutica filosófica. Ainda que tenhamos que reconhecer a vizinhança da obra dos dois filósofos, mostrou- se, de maneira irrecusável, que os dois projetos se distanciam na questão central, e que é preciso encontrar, em meio à proximidade de linguagens teóricas, uma situação muito distinta no contexto da filosofia." (STEIN, Ernildo. Gadamer e a consumação da hermenêutica. In: STEIN, Ernildo; STRECK, Lenio (Orgs.). Hermenêutica e epistemologia: 50 anos de Verdade e Método, p. 14).

11 TAYLOR, Charles. Understanding the Other: A Gadamerian View on Conceptual Schemes. (In:) MALPAS, Jeff; ARNSWALD, Ulrich; KETSCHER, Jens (Editors). Gadamer’s Century: Essays in Honor of Hans-Georg Gadamer. The MIT Press, 2002, p. 288.

12 FERRARIS, Maurizio. Historia de la hermenéutica. Traducción Jorge Pérez de Tudela. Madrid: Ediciones Akal S.A., 2000, p. 45.

13 STRECK, Lenio. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. São Paulo: Saraiva 2014.

14 Ver: < https://www.conjur.com.br/2021-dez-04/diario-classe-filosofia-direito-teorias-direito-metaetica> e < https://www.conjur.com.br/2022-jan-15/diario-classe-filosofia-direito-problema-verdade> .

15 < https://www.fundarfenix.com.br/_files/ugd/9b34d5_55c3ed22eca74fd6961d83315738c163.pdf>.

Autores

  • é professor do programa de pós-graduação em Direito da UNESA; mestre e doutor em Filosofia (PUC-RS); pós-doutorando em Direito Público (UNISINOS); membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos; e advogado.

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