Opinião

Superando o autoritarismo: perspectivas das novas constituições de Chile e Turquia

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15 de abril de 2022, 13h09

O Chile e a Turquia parecem ser mais semelhantes do que se poderia inicialmente imaginar. Em ambos os países foram implementadas políticas neoliberais através de previsões constitucionais construídas sob a sombra de governos ditatoriais. Durante os últimos 50 anos, o desenvolvimento político e democrático desses dois países fora construído por meio de experiências totalitárias e golpes militares, que acabam por utilizar meios antidemocráticos de condução estatal. Em ambos, as constituições construídas durante esse período estão em vigor, contudo muito se discute sobre sua legitimidade, em razão de serem produtos de um governo militar.

Todavia, no final de 2019, o Chile iniciou uma reviravolta constitucional, na busca de romper com o texto construído durante seu período ditatorial, e caminhar para se tornar um país mais democrático, assentado nas premissas de participação popular, igualdade de gênero e valorização do meio ambiente e dos povos originários. No presente artigo busca-se refletir sobre os esforços promovidos em prol de uma nova constituição no Chile e avaliar como esse caminho pode auxiliar a construção de uma nova constituição na Turquia. Seria possível eliminar esse patrimônio antidemocrático em ambos os países?

Processo de elaboração da Constituição no Chile
Uma Constituição como coração central de um país sendo escrita desde sua origem através de intensa participação popular e representação política paritária em um país com histórico recente de governo militar e limitação de direitos fundamentais: é esse o momento que o Chile vive atualmente.

Nesse ponto é interessante fazer um brevíssimo histórico sobre o Chile e o que está em discussão no momento: a redação de uma nova Constituição e a revogação total de um texto constitucional construído durante o período do governo Pinochet que durou 17 anos, de 1973 a 1990.

Em 1970, nas eleições presidenciais, testemunhou a vitória tranquila de Salvador Allende, à época visto como representante socialista no continente. Contudo, com a avaliação de que pelo jogo partidário seria inviável virar o jogo político no país, o golpe militar foi visto como a solução pelos setores mais conservadores. Assim, em 11 de setembro de 1973 ocorreu o golpe militar no Chile, com ascensão ao poder, inicialmente, de uma junta militar comandada por Augusto Pinochet, foi o início de um regime marcado pela intensa violência e repressão de direitos e garantias fundamentais.

Com aproximadamente três mil mortos e desaparecidos, além de aproximadamente 200 mil exilados, o Chile durante o período do governo Pinochet passa por uma grande modulação econômica com bases neoliberais, colocando diversos instrumentos legais que dificultariam reformas de cunho social, inclusive com a aprovação de uma Constituição em 1980, que permanece vigente, marcada por ser construída em um período de ditadura, de exclusão de direitos e apegada à uma lógica discriminatória e excludente. Mesmo tendo sofrido o total de 15 reformas posteriores (com destaque para as reformas de 1989 e 2005 que pugnavam por trazer maior legitimidade popular para o texto) e mesmo após o fim do período Pinochet e reabertura democrática em 1989, é um documento sem legitimidade social.

Dentro desse contexto histórico e da falta de reconhecimento popular acerca da legitimidade da Constituição construída, somada à crise econômica, especialmente causada pelas políticas neoliberais, a vontade popular caminhava no sentido de criar um ambiente de escrita de uma nova constituição.

Nesse cenário, apontou como grande força dentro dos grupos sociais o papel do movimento feminista, que assumiu a liderança pela reinvindicação de um plebiscito nacional para aprovação da abertura de uma Convenção Constitucional. Através de plebiscito, cujo voto não era obrigatório, mas que contou com intensa participação popular mesmo durante o período de pandemia do Covid-19 em 25 de outubro de 2020, o povo chileno aprovou a abertura de uma convenção constitucional, com mais de 80% de aprovação, bem como aprovou que os constituintes que comporiam essa convenção deveriam ser eleitos especialmente para esse fim, contando com 155 membros, em composição paritária de gênero e com 17 vagas (escaños) reservadas para os povos originários do País, bandeiras previstas em lei após a aprovação da abertura da constituinte.

Em 16 de maio de 2021 tivemos a eleição dos constituintes que seriam responsáveis por compor a convenção nacional e que concluiu a eleição da primeira constituinte paritária de gênero do mundo. Um detalhe interessante é que, ao final, em se tratando de constituinte paritária, ocorreu a cessão de 11 vagas de mulheres eleitas para homens que não tinham angariado votação maior que as delas, mas que necessitavam estar na constituinte, sendo que tiveram no total, 699 mulheres e 674 homens concorrendo nos distritos do país.

Eram vagas obrigatoriamente destinadas para mulheres, em razão da previsão de paridade na composição da constituinte e não apenas no lançamento de candidaturas pelos partidos e pela lista independente (lista Pueblo  onde pessoas podem se candidatar mesmo sem filiação a nenhum partido político).

Alguns pontos devem ser destacados no processo da constituinte, o texto que está sendo escrito substituirá, caso aprovado, totalmente a Constituição de 1980, sendo que a convenção possuirá funcionamento por 9 meses, prorrogados por mais três meses. Inicialmente ocorreu a eleição da mesa diretiva, definição das comissões temáticas e definição dos procedimentos de deliberação e tomada de decisões, especialmente com a previsão de participação popular, tanto de maneira direta quanto indireta, por exemplo através de reuniões locais, chamados de cabildos.

Esses cabildos nada mais são do que reuniões de grupos de pessoas que debatem o que esperam da constituição nova, ocorrem através da convocação de associações de bairro, organizações civis e Universidades, podendo ser realizadas em qualquer espaço, com destaque para os cabildos promovidos dentro das penitenciárias, visando garantir a participação de todos os cidadãos chilenos, inclusive aqueles que estão cumprindo pena.

A própria assembleia se regulou e promoveu a eleição de sua primeira mesa diretiva, após instalação dos trabalhos em 04 de julho de 2021, que mais uma vez é marcada pela preocupação de gênero, com a eleição da constituinte Elisa Loncón, professora de origem Mapuche, povo originário indígena chileno. A segunda mesa diretiva foi eleita em 05 de janeiro de 2022 e teve a epidemiologista María Elisa Quinteros como escolhida após dois dias de sessão e nove rodadas de votação (para ganhar a eleição é necessária a maioria absoluta dos votos dos constituintes).

Após a escrita do texto constitucional pela convenção, há previsão de realização de um plebiscito chamado de dirimente, com voto obrigatório, onde normas que não tenham atingido a maioria absoluta de 2/3 para serem aprovadas e assim existirem no texto constitucional, mas que tenham alcançado uma maioria simples, serão colocadas para votação popular. Finalizado o plebiscito dirimente, ou nem realizado pois ele não é obrigatório, ocorre o chamado plebiscito de saída, marcado para 04 de setembro de 2022, onde a população, de maneira obrigatória, comparecerá para aprovar ou rejeitar o texto produzido na convenção constitucional, caso o texto seja aprovado, seguirá para promulgação e assim, o Chile possuirá uma nova constituição.

Igualmente existe diversos outros instrumentos aprovados na convenção para garantir a participação popular intensa, através dos cabildos acima explicados, mas também através de envio de sugestões de maneira virtual e com participação e audiências públicas temáticas. O canal da convenção é aberto através de site oficial e redes sociais, sendo possível inclusive acompanhar todas as sessões e debates ao vivo de maneira virtual em todos os grupos temáticos e no plenário.

Além disso, está previsto no regramento geral aprovado pela constituinte que o uso da palavra, a linguagem dos textos e toda comunicação se pautará no respeito de gênero, bem como haverá observância da paridade na composição de todos os órgãos, não podendo a ocupação de cargos pelo sexo masculino superar a quantidade de 60% (artigo 32).  Os únicos aspectos que não podem ser alterados no novo texto constitucional são o caráter de república democrática no país, os tratados internacionais assinados e a regra de aprovação e alteração de texto após aprovação por dois terços dos votos.

Outro interessante instrumento é a previsão de uma comissão de transversalização, que após toda votação, tem a responsabilidade de verificar e aprovar os artigos no sentido de colocá-lo em conformidade com os direitos humanos em uma perspectiva de gênero, equidade territorial, plurinacionalidade e interculturalidade [1].

Exigências para uma nova constituição na Turquia
A Turquia, cuja constituição foi feita sob a administração de um governo militar, é um país onde as demandas por uma nova constituição são constantemente destacadas e relembradas. Embora a Constituição de 1982 tenha sido alterada 19 vezes e muitos outros esforços para alterá-la tenham sido feitos durante esse tempo, a herança antidemocrática não foi apagada e todos esses processos de alteração não envolveram participação popular efetiva, pois foram feitos sob uma abordagem hierárquica.

Mesmo o primeiro processo de elaboração da constituição civil em 2011 foi realizado no centro da "Comissão de Reconciliação Constitucional" formada por representantes de quatro partidos no parlamento. Embora tenha havido contribuições significativas da sociedade civil, o processo terminou com um fracasso em 2013, porque os representantes dos partidos não conseguiram chegar a um consenso sobre os temas em debate.

Após a tentativa de golpe em 2016, a Turquia alterou sua constituição em 2017 e por meio dessa emenda, mudou seu regime político de parlamentar para um regime presidencial que confere ao Presidente amplos poderes nas esferas legislativa e executiva. No entanto, com o colapso da economia turca após referida emenda, até o próprio presidente, detentor de expressivos poderes estatais, enfatizou a necessidade de uma nova constituição.

Após o colapso econômico em 2017, seis partidos da oposição formaram uma aliança e começaram a preparar uma nova constituição, de maneira isolada e sem participação popular. A principal bandeira desse movimento é o argumento de que o regime presidencialista, que carece de freios e contrapesos, causou não apenas um retrocesso democrático, mas também instabilidade econômica. Considerando que tanto o Partido da situação, quanto a aliança de partidos de oposição exigem uma nova constituição, é justo supor que um novo documento será feito.

A aliança de oposição e o Partido da situação tiveram concordância no sentido de garantir através de princípios constitucionais um "sistema parlamentar fortalecido". A proposta promete principalmente um retorno ao sistema parlamentar, fortalecendo os mecanismos de equilíbrio e controle, aumentando o poder do legislativo, proporcionando segurança geográfica aos juízes para reduzir a interferência política no judiciário e fortalecendo os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

No entanto, a aliança pode ser considerada, em certa parte, limitada: metade dos partidos já fazia parte da coalizão governante até recentemente e, mais importante, o Partido Democrático Popular e o Partido dos Trabalhadores da Turquia, o segundo e o quarto maiores partidos da oposição no parlamento, estão fora desse acordo de situação e oposição.

Verifica-se que o processo de alteração constitucional na Turquia, especialmente por ter como objetivo apenas mudar o regime presidencialista e não possuir qualquer participação popular, não pode necessariamente restaurar a democracia. A proposta de princípios constitucionais em torno do resgate do Sistema parlamentarista foi acordada apenas por seis dirigentes de partidos políticos envolvidos na aliança política de situação e oposição, todos do sexo masculino e ainda com a ausência de dois grandes partidos de oposição na negociação.

Em outras palavras, a aliança não excluiu apenas dois dos maiores partidos de esquerda no parlamento; a participação do público também esteve ausente em todo o caminho. Consequentemente, a proposta de constituição elaborada pela aliança da oposição está longe do exemplo chileno, visto até aqui, em termos de abrangência e promoção da democracia. Enquanto o processo de elaboração da constituição no Chile promove a participação pública por meio de vários instrumentos, a oposição turca preparou sua proposta por meio de reuniões fechadas com dirigentes partidários. Assim, como o processo de constituição poderia abranger toda a sociedade nessas condições e assim, ser legítimo?

Outra diferença essencial está na dimensão da igualdade de gênero. Embora os princípios constitucionais estabelecidos para o retorno ao Sistema parlamentarista, tragam em seu texto um compromisso para estabelecer uma base adequada para a igualdade de gênero, parece ser mais o caso de uma legislação simbólica, haja vista que as mulheres, público-alvo desse princípio, sequer tiveram algum envolvimento nessa discussão. A igualdade de gênero deve ser assegurada em termos de substância material efetiva e não meramente formal, vejamos o exemplo chileno que buscou garantir paridade de gênero entre os responsáveis pelos debates e escrita da nova constituição.

Conclusão
Tendo constituições com forte herança militar e neoliberal, Turquia e Chile são, nesse sentido, países semelhantes. No entanto, o Chile adotou um novo processo constitucional que promete sair desse paradigma, rumo à construção de um texto constitucional forte, inclusivo e democrático.

A democracia é uma cultura, não uma ferramenta política, e pode ser fomentada por mecanismos institucionais. Ou seja, não se trata de realizar plebiscitos e perguntar às pessoas se aceitam o texto que foi construído para elas. Trata-se de construir o texto em conjunto. O processo de elaboração da constituição do Chile parece ter entendido isso.

A Turquia, em vez disso, parece estar longe de mudar sua tradição constitucional. De fato, mesmo os esforços da oposição, que alegam restaurar a democracia, estão longe de ser verdadeiramente democráticos. A experiência de elaboração da constituição chilena pode iluminar o caminho para países que buscam a transição de sua herança militar para democracias civis. Estabelecer mecanismos como os desenvolvidos no Chile pode ser um primeiro passo para a Turquia. O tempo dirá se o constitucionalismo turco passará por tal transformação.

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