Opinião

STJ e mulheres trans: quem reconhecemos como sujeitos e quais vidas importam

Autor

  • Larissa Barbosa

    é advogada criminalista graduada pela Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal e membro da Comissão Especial de Estudos do Direito Penal da OAB/RJ.

15 de abril de 2022, 17h08

Nos últimos dias, ganhou repercussão a decisão do STJ que autorizou a aplicação da Lei Maria da Penha quando a vítima for mulher trans. À primeira vista, a discussão parece simples ao versar sobre a incidência ou não de uma lei. Porém, da leitura do paradigmático voto do relator ministro Rogério Schietti, percebe-se que a questão vai além: é sobre quem reconhecemos como sujeitos e quais vidas importam.

Resumidamente, a discussão chegou ao STJ através de Recurso Especial interposto pelo Ministério Público de São Paulo contra decisão que indeferiu o pedido de imposição de medidas protetivas formulado por uma mulher transexual após ser agredida pelo seu próprio pai. O pleito foi negado em primeira e segunda instâncias sob argumentos estarrecedores que escancaram um malabarismo retórico para afirmar que o Direito não reconhece mulheres trans como merecedoras de proteção do Estado.

A decisão de primeira instância afasta a aplicação da Lei Maria da Penha uma vez que a "a vítima necessariamente tem que ser mulher, ou seja, pertencer ao gênero feminino" e que seu objetivo é coibir a violência de gênero que "gera uma situação de opressão da vítima". Como fundamento, cita os Princípios de Yogyakarta que diferenciam a orientação sexual da identidade de gênero.

O voto que prevaleceu no colegiado é ainda mais explicito em negar o reconhecimento aos sujeitos trans. O julgador declara conhecer "a existência de várias decisões… apoiando a pretensão", diz ainda "não desconheço, também, que os Princípios de Yogyakarta… estabeleceram vários direitos considerados de nível constitucional, inalienáveis" e completa "todavia, a meu ver, não incluem o direito que aqui se pleiteia". Dito de outra forma: o Estado até tem tolerado a existência de pessoas trans, mas não é dever do Estado protegê-las.

O argumento recorre ao velho e empoeirado binarismo biológico que define o gênero a partir do corpo biológico sexuado, afinal "'mulher' e 'homem' são conceitos científicos, biológicos" e, portanto, "não é possível fazer a equiparação 'transexual feminino' = mulher".

O ministro Rogério Schietti, discorrendo sobre o contexto de violações e de vulnerabilidade ao qual pessoas trans são submetidas, resolve a discussão afirmando o óbvio: "mulher trans mulher é".

Mais do que conceituar "mulher", "homem", "sexo", "gênero", a Corte sinaliza à sociedade e principalmente a todos os operadores jurídicos que as vidas trans importam e, portanto, o Estado deve se empenhar em preservá-las. Alargou-se o conceito de vida, um novo enquadramento se construiu para incluir sujeitos trans enquanto vidas que merecem ser vividas.

Como Butler explica, o enquadramento é um processo normativo de apreensão da realidade concreta em molduras, definindo o que é visto e o que se pretende esconder ou mais precisamente "estabelecem aquilo que será e não será humano" [1]. O que dirige esses enquadramentos da vida é a compreensão do sujeito em sua precariedade diante do outro e do mundo, em sua vulnerabilidade. O risco de perder determinadas vidas nos move a preservá-las [2].

Podemos afirmar com certa tranquilidade que, até então, as pessoas trans não eram reconhecidas como vidas precárias. Se por um lado não eram vistas como vítimas [3] (sendo muitas vezes culpabilizadas pela própria morte), por outro eram criminalizadas e punidas com mais rigor quando acusadas de cometerem algum crime [4].

O que permitiu a mudança de perspectiva foi o reconhecimento dos sujeitos trans enquanto vidas precárias, que demandam cuidado e que podem perecer. Ao citar os dossiês elaborados pela Antra sobre as mortes pessoas trans, a Corte reconhece que essas vidas não apenas são matáveis como estão sendo mortas. Trazendo os diversos julgados do STF que reconheceram direitos fundamentais às pessoas trans, o STJ revela a insuficiência dos precedentes caso esses sujeitos continuem vivendo sem dignidade e morrendo. A atuação do Estado, sobretudo do poder judiciário, deve ter como norte a proteção dessas vidas porque essas vidas importam. O caso concreto diz respeito às medidas protetivas, recurso essencial para impedir a escalada da violência demandando uma intervenção do judiciário atenta às relações de gênero que hierarquizam e subjugam determinados sujeitos.

Certamente a luta não chegou ao fim, ao contrário a recente decisão é um importante passo para o efetivo reconhecimento e proteção dos sujeitos trans. O que há de novo agora é a postura ativa do Estado em oferecer o suporte que os movimentos sociais tanto reivindicaram. É necessário, portanto, seguir na luta para que o entendimento firmado prevaleça nos demais casos, evitando-se a morte de pessoas trans. Esse compromisso deve ser assumido não apenas por militantes LGBTs, mas principalmente por nós pessoas cisgêneras na nossa prática jurídica.

 


[1] BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2016, p. 28

[2] Idem, p. 32

[3] LOPES, Davi Haydeé Almeida. "Morreu? Não vai dar em nada, melhor nem ter o trabalho": uma análise dos assassinatos de travestis em Belém. 2020. Dissertação (Mestrado em Direito)  Instituto de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Pará. Belém, 2020

[4] CARVALHO, Salo de et al. A manutenção de mulheres trans em presídios masculinos: um caso exemplar de transfobia judiciária. Revista Jurídica Luso-Brasileira, v. 6, nº 5, 2020; SERRA, Victor Siqueira. "Pessoa afeita ao crime": criminalização de travestis e os discursos de Justiça de São Paulo. São Paulo: IBCRIM, 2019. BARBOSA, Larissa Freire de Oliveira. Entre a criminologia crítica e a teoria queer: diálogos possíveis para pensar a lgbtfobia institucional na execução penal. 2019. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Direito) – Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2019

Autores

  • é advogada criminalista, graduada pela Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ), especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal e membro da Comissão Especial de Estudos do Direito Penal da OAB/RJ.

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