Opinião

Proposta de regular ativos virtuais no contexto de prevenção à lavagem de dinheiro

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14 de abril de 2022, 7h04

A regulamentação do universo dos ativos virtuais é um problema que se impõe diante do inegável crescimento do mercado de criptomoedas no Brasil e da criação de corretoras que executam serviços a elas relacionados, as chamadas exchanges. A questão é pauta do Senado, que, considerando a existência, ainda em 2019, de 35 empresas atuando livremente na área, sem fiscalização dos órgãos que compõem o sistema financeiro nacional, aprovou em sua Comissão de Assuntos Econômicos substitutivo ao Projeto de Lei (PL) n° 3.285/2019, de autoria do senador Flávio Arns [1].

No projeto [2], os ativos virtuais são definidos como "a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com o propósito de investimento", excluídas, por exemplo, as moedas emitidas por autoridades que tenham o controle sobre o sistema monetário (moedas soberanas) e as eletrônicas [3]. Verifica-se a opção por um conceito mais genérico, que não se restringe aos criptoativos (que utilizam de criptografia) [4]. As pessoas jurídicas que prestam serviços de ativos virtuais são as que executam a troca entre estes e as moedas soberanas, entre um ou mais ativos virtuais, realizam sua transferência, efetuam a custódia ou administração desses ativos ou de instrumentos que possibilitem seu controle ou que atuam na participação em serviços financeiros e na prestação de serviços relacionados à oferta por um emissor ou venda de ativos virtuais.

A proposta determina a necessidade de autorização por órgão ou entidade da Administração Pública Federal, a ser indicado pelo Poder Executivo, para que tais pessoas jurídicas possam prestar aqueles serviços ou outros que estejam relacionados. No que se refere às diretrizes gerais da atuação das prestadoras de serviços de ativos virtuais, vale destacar a imposição de medidas de "prevenção à lavagem de dinheiro, ocultação de bens, direitos e valores, combate à atuação de organizações criminosas, ao financiamento do terrorismo e ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa, em alinhamento com os padrões internacionais". Dado o alcance das trocas envolvendo moedas virtuais e seu caráter pseudoanônimo, há um receio generalizado de que sejam capturadas como instrumentos preferenciais para a lavagem de bens e valores decorrentes de práticas delitivas.

Lembra-se, aliás, que a tipificação brasileira da lavagem de dinheiro se apresenta como uma norma de considerável extensão, que se contenta, por exemplo, com a simples ocultação da origem de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal, numa redação que se mostra independente da tradição criminológica da lavagem como um processo complexo e integrado por etapas (ocultação, dissimulação e integração dos ativos na economia formal).

A posição de protagonismo que obteve a lavagem de dinheiro no âmbito da política criminal, sobretudo a partir da década de 1980, derivou de um movimento de internacionalização do direito penal com foco no enfrentamento da criminalidade organizada, em especial pela identificação dos bens e valores advindos de suas práticas ilícitas, as quais revelaram um notável avanço em termos de sofisticação.

Os sistemas de prevenção e combate à lavagem de dinheiro foram construídos, portanto, a partir de padrões internacionais estabelecidos por organismos globais e regionais, com destaque para o Gafi (Grupo de Ação Financeira), cujas recomendações aos países cooperantes revelam com nitidez os pressupostos da prevenção, em particular o intercâmbio de informações e a cooperação (cumprimento de deveres) de particulares cuja atuação profissional se dá em setores "sensíveis", isto é, mais facilmente sujeitos à utilização para o fim da reciclagem de valores.

O setor sensível por excelência é, sem dúvida, o bancário e financeiro, que agora alcança também as prestadoras de serviços de ativos virtuais (conforme terminologia utilizada pelo Gafi, que se refere aos Vasps — virtual assets service providers [5]). Pelo PL 3.285/2019, os responsáveis pelas pessoas jurídicas que atuem nesse setor sem autorização do órgão regulador estarão sujeitos às penas do crime contra o sistema financeiro nacional previsto no artigo 16 da Lei n° 7.492/86. Integrando-as ao sistema nacional de prevenção contra a lavagem de dinheiro, o projeto inclui as prestadoras de serviços virtuais ao rol de entidades obrigadas ao cumprimento de deveres de identificação dos clientes, manutenção de registros e comunicação de operações suspeitas, definidos nos artigos 10 e 11 da Lei n° 9.613/98.

É compreensível a crescente preocupação com a utilização do universo das moedas virtuais para fins ilícitos, razão pela qual o PL em comento chega a sugerir a inclusão do delito específico de "fraude em prestação de serviços de ativos virtuais" ao Código Penal brasileiro [6], com uma pena significativamente superior ao seu tipo penal de referência, o estelionato (punido, na figura simples, com reclusão de um a cinco anos e multa).

Em que pesem as aproximações entre a operação com moedas virtuais e a criminalidade (sobretudo organizada), é preciso estabelecer a noção de que esses ativos não estão situados num plano, por si só, ilícito. É dizer, não há ilicitude inerente à troca, transferência, custódia ou administração das moedas virtuais, que tão somente estão sujeitas à utilização para fins delitivos, o que igualmente ocorre com as moedas físicas e eletrônicas.

A regulamentação proposta certamente não será capaz de impedir a existência de corretoras não autorizadas ou toda e qualquer prática de lavagem de dinheiro por meio de moedas virtuais, notadamente por exchanges localizadas no exterior. O projeto também não criminaliza o usuário das corretoras que não possuem licença do órgão competente, tão somente os prestadores do serviço. No entanto, alguma sorte de normatização se faz necessária para a garantia de maiores níveis de segurança e prevenção, o que deve ser buscado também no âmbito internacional [7].

NOTAS:
[1] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/02/22/reconhecimento-e-regras-para-criptomoedas-avancam-na-cae
[2] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137512
[3] Nos termos da Lei nº 12.865/2013, as moedas eletrônicas consistem nos "recursos armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitem ao usuário final efetuar transação de pagamento" (artigo 6º, VI).
[4] Conforme definição da Instrução Normativa n° 1.888/2019, da Receita Federal do Brasil, que trata da obrigatoriedade da prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal, nos moldes do art. 6º dessa instrução.
[5] Vide Recomendação n° 15, disponível aqui
[6] "Art. 171-A. Organizar, gerir, ofertar carteiras ou intermediar operações envolvendo ativos virtuais, com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento. Pena — reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos e multa."
[7] Como bem apontam Silveira e Camargo: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; CAMARGO, Beatriz Corrêa. Ocultar o oculto: apontamentos sobre a lavagem de dinheiro em tempos de criptomoedas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 29, n. 175, p. 145-187, jan.. 2021.

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