Controvérsias Jurídicas

Segurança pública e armamento da população civil

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

14 de abril de 2022, 8h00

Em função dos altos índices de criminalidade, as estratégias de combate à violência são bastante debatidas no Brasil. Grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, enfrentam o crime organizado de facções criminosas, as quais, além de cometerem crimes violentos habituais, ganham força por meio do acúmulo de capitais advindo do tráfico de entorpecentes, da lavagem de dinheiro e ocultação de patrimônio em vários segmentos da economia.

É compreensível que a reiteração criminosa e a condescendência da Lei de Execuções Penais tragam certo sentimento de impunidade para o corpo social. Afinal, por que um trabalhador haveria de continuar suas árduas jornadas de trabalho se outros desfrutam das benesses da vida fácil sem esforço? Não restam dúvidas de que o combate à criminalidade perpassa o sentimento de Justiça, no qual a sociedade se sente protegida dos criminosos e há recompensa àqueles que agem de acordo com a lei. De modo contrário, quando o sentimento de injustiça é generalizado, a confiança no aparato jurídico se torna frágil, encorajando alguns ao cometimento de delitos.

O sentimento de impunidade pode, algumas vezes, instigar desconfiança nos órgãos especializados de segurança, induzindo o cidadão comum à falsa percepção de que a forma mais eficaz de combater a violência está na autotutela, materializada, na maioria das vezes, na posse ou porte de uma arma de fogo.

Não há contestação quanto ao direito de cada um se autodefender em momentos de risco. Obviamente que não se requer do cidadão comum a passividade ante uma agressão à sua integridade física, dignidade sexual, vida ou patrimônio. Tanto é assim que a própria legislação autoriza que o cidadão tenha a posse ou porte de arma de fogo, desde que preenchidos alguns requisitos objetivos e subjetivos, desmontando a tese de que no Brasil o cidadão de bem não pode se defender. A problemática ocorre no plano da utilização de um direito individual como política pública de segurança.

A retórica de que a criminalidade diminui à medida que a população se arma é simples e fácil, porém, não necessariamente verdadeira, devendo ser avaliada com muita cautela. Considerando-se o cidadão individualmente, talvez haja uma suposta percepção de maior segurança se este estiver municiado de uma pistola. Todavia, a sensação individual de proteção não influi nas ações de criminosos habituais ou organizados. Em alguns casos, o efeito é diretamente o inverso, contribuindo para o crescimento de alguns crimes, como o homicídio.

O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo realizou pesquisa sobre os índices de criminalidade e seus fatores, no Brasil, entre 1991 e 2000 [1]. Tendo como fonte o sistema de informação sobre a mortalidade do Ministério da Saúde, classificou os homicídios cometidos no período como: a) cometidos com arma de fogo; b) cometidos por outros instrumentos; e c) cometidos por meios não especificados. Calculada a mortalidade proporcional e os coeficientes de mortalidade por cem mil habitantes, concluiu-se que os homicídios foram responsáveis por 33% das mortes por causas externas nos anos 90, sendo que destas 50% foram causadas por armas de fogo em 1991 e 70% em 2000. Os dados mostram que houve crescimento homogêneo por gênero e região por todo o país, representando um aumento de assassinatos em 27,5% em dez anos, sendo 72,5% destes por arma de fogo.

Em estudo realizado pelo Instituto de Segurança Pública, concluiu-se que o combate à criminalidade se dá com o desenvolvimento de novas formas de atuação das polícias, principalmente no que tange às ações de inteligência e estrutura (armamento, viaturas, coletes, contingente, informatização).

Tendo como referência o estado do Rio de Janeiro, a pesquisa revelou que apenas 12,3% dos homicídios registrados em 2018 tinham sido solucionados até 2020 [2]. Entre as mortes, 44% tiveram motivação não estimada; 31% foram causadas por traficantes; 10% não tiveram ligação com o crime organizado; 7,5% ocorreram em áreas de disputa de traficantes; 7% causadas por milicianos; e 0,5% por aliados de milicianos ou traficantes. Diante dos dados, compreende-se que o armamento do civil não implica automaticamente no aumento da segurança coletiva. O fato de estar armado pode protegê-lo de uma situação de risco específica, mas não influenciará, necessariamente, na atuação de criminosos organizados, traficantes de drogas ou milicianos.

Os mecanismos até então utilizados pelo estado de São Paulo ilustram exemplo de combate à criminalidade através de políticas de segurança pública, que não o armamento do cidadão civil. De acordo com os dados da Secretaria de Segurança Pública, a taxa de homicídios por cem mil habitantes despencou de 52,5%, em 1999, para 6,1%, em 2018 [3], sem que nenhuma ação governamental de incentivo ao porte ou posse de arma de fogo fosse feita. Como bem alertado pelo Instituto de Segurança Pública, a revolução pela qual passou o estado se deveu à atuação conjunta em dois eixos: 1) políticas de segurança pública; e 2) políticas públicas sociais.

Nas últimas décadas, o governo do estado não poupou esforços no aumento de contingente das polícias civil e militar, modernizando as corporações com novas viaturas, acessórios de segurança e armamento. O simples fato das viaturas terem acesso à internet e estarem ligadas a uma central de segurança, possibilitou uma maior e melhor interação entre as polícias com a Guarda Civil Metropolitana e Corpo de Bombeiros, por exemplo.

Há também de se falar no serviço interligado de inteligência das polícias, no investimento em delegacias de polícia e batalhões da Polícia Militar e construção dos Centros de Detenção Provisória, fazendo com que os presos em flagrante ou temporariamente não fiquem no distrito policial por longo tempo. Contudo, os fatores preponderantes para o declínio da taxa de homicídios foram o isolamento dos líderes do crime organizado em presídios de segurança máxima, em regime disciplinar diferenciado, e a asfixia econômica do crime organizado por meio do mapeamento de atividades que serviam como fachada para mascarar o dinheiro espúrio do grupo.

As políticas sociais, por seu turno, mesmo não combatendo diretamente a criminalidade, atuam como vetores de prevenção, propiciando um ambiente mais agradável para o convívio e menos suscetível às tentações que a vida criminosa pode gerar. A transformação de comunidades em conjuntos habitacionais, a recuperação de praças públicas e locais degradados com a construção de quadras poliesportivas, a iluminação de vias, praças e locais ermos, o controle de bebida alcoólica para menores, o combate à venda de entorpecentes na porta de escolas e proximidades e a queda da evasão escolar são exemplos de que ações sociais interferem diretamente no horizonte de perspectiva do cidadão, fazendo com que a vida criminosa se torne uma alternativa distante.

Por fim, de acordo com o estudo formulado pelo Atlas da Violência do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre os anos 1980 e 2003 [4], o número de homicídios com arma de fogo apresentava aumento persistente ano após ano. Contudo, com o advento do Estatuto do Desarmamento, a vertente de crescimento se estabilizou, representando verdadeiro freio na escalada da violência por duas décadas.

O Ipea também demonstrou que a cada 1% de aumento no número de armas de fogos em circulação nas cidades, aumenta-se em 2% o número de homicídios. Como já demonstrado, a pesquisa da USP também concluiu que 70% dos homicídios cometidos no país são cometidos com arma de fogo, sendo que destes 83% são por impulso ou motivo fútil.

O ponto fulcral da pesquisa demonstrou a alta letalidade policial no país, ao passo que também se tem as maiores taxas de mortes de policiais em serviço. Policiais possuem arma de fogo como instrumento diário de trabalho e passam por intenso treinamento para seu manejo sob situação de estresse e, mesmo assim, morrem em confrontos armados. Dessa forma, se a arma de fogo não constitui garantia absoluta de segurança para agentes treinados, muito menos para o cidadão comum. Pelo contrário, dados do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) demonstram que a vítima de roubo que está armada tem 56% mais chance de ser morta na ação do que a vítima não armada.

Por esses motivos, a questão do armamento da população civil tem de ser vista com cautela e sem fanatismos. Deve ser precedida de estudo aprofundado realizado por pessoas dotadas de conhecimento técnico para tanto, com base em dados, levando-se em consideração as peculiaridades e contexto de cada meio social.

 


[1] PERES, Maria Fernanda Tourinho; SANTOS, Patrícia Carla dos. Mortalidade por homicídios no Brasil na década de 90: o papel das armas de fogo. Núcleo de Estudos da Violência. Universidade de São Paulo, Ver. Saúde Pública, 2005, 39 (1).

[2] Instituto de Segurança Pública. Segurança em números – Evolução dos principais indicadores da criminalidade e atividade policial no estado do Rio de Janeiro, 2021.

[4] Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/

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