Opinião

Trio da desunião na Covid e reafirmação do federalismo cooperativo pelo STF

Autor

  • Clivanir Cassiano de Oliveira

    é advogada especialista em Direito Público membro da Comissão de Direito Tributário da OAB-RN e assessora técnica na Secretaria de Estado da Administração do Rio Grande do Norte.

14 de abril de 2022, 10h04

O jogo da democracia não é para amadores. Ainda temos muito para aprender, principalmente sobre as regras e as respectivas consequências dos atos institucionais neste regime de governo. Pois é preciso aperfeiçoar os institutos jurídicos, os entes federados e as instituições públicas.

Diferentes âmbitos de poder possuem grande capacidade de formar grupos para que, cada um com suas características, trabalhem em prol de uma unidade próspera de uma nação. Esta é a lógica do federalismo. Entretanto, no mundo real, o que se observou na pandemia causada pela Covid-19 [1], foi uma briga da União com os entes federativos, para mostrar quem manda e quem é detentor de competência constitucional para dispor sobre as regras a serem adotadas na crise sanitária.

Desprezaram assim, a urgência de atendimento público no combate do vírus, e a oportunidade de exercitar o federalismo cooperativo.

Com a crise sanitária, o Brasil perdeu cerca de 660 mil cidadãos, todos assassinados pelo inimigo invisível da Covid-19 [2]. Mas a União se preocupou em disputar com os subnacionais a aptidão constitucional para legislar sobre a abertura de comércio, vacina e uso obrigatório de máscaras, dentre outros.

O quantitativo de 7.902 processos recebidos e 9.691 decisões produzidas, somente pelo Supremo Tribunal Federal, no âmbito das ações relacionadas ao combate da Covid, demonstram a tamanha falta de competência da governo federal para atuar como ente central do planejamento e coordenação de ações de saúde pública, pois estava mais preocupados em mostrar para a mídia quem manda, do que ter um planejamento público para evitar mais perdas de vidas e a proliferação da doença [3].

Ironicamente, vivemos em um federalismo fiscal que tem como ponto de destaque a busca de uma unidade em comum, em um vasto território, com pluralidade social, cultural e diferenças econômicas regionais. Tudo para possibilitar, em certa medida, autonomia aos entes federados para exercício político e administrativo [4].

É como se, mesmo diante do federalismo cooperativista, existisse uma necessidade de manter os subnacionais como eternas crianças, dependentes de auxílio do governo federal. E isto pode ser observado por duas óticas: 1. a centralização possibilitaria um maior controle e organização, com a ideologia que se criou, de que a concentração gera eficiência [5]; 2. a centralização é resquício de um país que teve um federalismo oligárquico [6].

Por diversas vezes, quando o conflito de competência para legislar ou administrar, sobre determinado assunto, chegou para o Supremo Tribunal Federal, os entes federados ficaram em desvantagens [7]. Tais decisões acabaram por mostrar que existe (ou existia) uma certa tendência de centralizar o poderio legislativo e administrativo na União, em detrimento dos Estados, Distrito Federal ou Municípios [8].

Porém, a poetisa Silvana Duboc, em seu poema "Navegue", já tinha descrito: "[…] Alague seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas […]" [9]. Por isso, não deve-se perder a esperança!

Entre as brigas de ego, ou, como dizia o Francês Pierre Bourdieu: "demonstração de poder simbólico", surge uma luz no fim do túnel: interpretação conforme, do STF, com valorização do federalismo cooperativo [10].

Duas questões acompanham de forma intuitiva essa forma de distribuição de competências compartilhada: Quem pode ou deve fazer o que? E que relação existe, ou deve existir, entre as múltiplas atuações dos entes federados nesse contexto? [11]

O PDT ajuizou uma ação constitucional (ADI nº 6341) em face da Lei nº 13.979/20 (Lei Nacional acerca do combate da pandemia do Covid-19), que resultou no entendimento pelo Supremo Tribunal Federal de que os Estados e Municípios podem formular políticas públicas no combate à crise sanitária, ante a omissão da união, nos termos do artigo 23, II, da CRFB e, mais especificamente ainda, do artigo 198, I, da CRFB. Inobstante, o governo central pode fazer seu papel, constitucional, de cooperação federativa, com normas gerais [12].

Destaco duas frases registradas pelo ministro Edson Fachin, no seu voto na ação supracitada: "O Estado garantidor dos direitos fundamentais não é apenas a União, mas também os Estados e os Municípios" e "o federalismo como um laboratório social da democracia”, na feliz expressão do Justice Louis Brandeis" [13].

No Paraná, a representação por inconstitucionalidade nº 919, alegou que a matéria de fiscalização de produtos sanitários já estava sendo regulada por lei federal, e por isso impediria a normatização do assunto pelo Estado do Paraná. O ministro relator, Bilac Pinto, ao proferir seu voto, registrou que a competência da União para legislar sobre defesa e proteção da saúde "é competência que traz na sua outorga a própria limitação. Não vai além da emissão de normas gerais".

Além destas, o dissabor da União e o pedido de socorro dos entes subnacionais são exibidos nas seguintes ações constitucionais: ADI 6.341 (pleito de reconhecimento da inconstitucionalidade de dispositivos da Medida Provisória nº 926/20, que alterou a Lei 13.979), ADPF 672 (em face dos atos omissivos e comissivos do Poder Executivo federal praticados no contexto da pandemia); ADI 6.343 (Corte suspendeu, sem reprodução do texto, o artigo 3º, VI, "b", e §§6º, 6º-A e 7º, II, da Lei 13.979/2020); ADI 6.362 (pedido de interpretação conforme para condicionar as requisições estaduais e municipais ao exame e autorização do Ministério da Saúde, bem como à prévia oitiva do atingido pela requisição); ADI 6.585 (requereu que fosse assegurada a competência dos Estados e Municípios para determinar a vacinação compulsória contra o vírus, independentemente do que decidisse o Ministério da Saúde); Pedido cautelar em ADPF 770 e da ACO 3.451; (sobre plano definitivo nacional de imunização, registro e acesso à vacina contra a Covid-19); e ainda, a ADPF 672, proposta em face dos atos omissivos e comissivos do Poder Executivo federal, praticados no contexto da pandemia, sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes.

Da análise de todas as decisões do STF, nas ações supracitadas, constatou que enfim a suprema corte volveu seus olhos para que os subnacionais pudesse realizar as ações mais eficazes. Nas decisões é possível detectar que a Corte Suprema não pretendia retirar da União sua competência para legislar sobre normas gerais, mas prestigiar a capacidade que o ente subnacional tem; ademais, a sociedade de um Município ou Estado está mais perto do respectivo ente do que da União.

No ponto, é interessante observar a avaliação de alguns Ministros da Corte sobre a questão. Ao falar no "1º Congresso Digital Covid-19: Repercussões Jurídicas e Sociais da Pandemia", promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o ministro Ricardo Lewandowski afirmou que o Supremo Tribunal Federal revalorizou o federalismo com as decisões aqui analisadas, pois esclareceu o papel coordenativo da da União e Estados e, ao mesmo tempo, demonstrou a importância de os prefeitos, os vereadores e os governadores, que estão mais próximos do povo, poderem tomar as medidas necessárias, cada qual no âmbito de suas competências regionais.

Eis que para efetivação do bem, tudo está conectado. É que o sol, o céu, o mar, as estrelas, o modelo federal, a educação, a descentralização de poder e a democracia, compõem um ciclo, entrelaçado e rotacional, no qual nós, seres em movimento, temos capacidade de compreender a história, o presente e as alternativas para o futuro; ou incipientemente, podemos interferir no fluxo e prejudicar toda uma coletividade. No caso do STF, toda uma nação. Eis a questão: uma época em que se influenciou os ministros ou os Juízes influenciando um país?


[1] A Covid-19 é uma infecção respiratória aguda causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, potencialmente grave, de elevada transmissibilidade e de distribuição global. BRASIL. Governo Federal. Ministério da Saúde. Disponível em <https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/o-que-e-o-coronavirus>. Acesso em 20 de março de 2022.

[2] Brasil. Governo Federal. Coronavírus. Disponível em <https://covid.saude.gov.br/>. Acesso em 19 de março de 2022.

[3] BRITTO. Flavio Carvalho. Consultor Jurídico. Covid-19 e a jurisprudência do STF sobre competência legislativa municipal. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-15/opiniao-jurisprudencia-stf-competencia-municipal>. Acesso em 20 de março de 2022. OLIVEIRA, Mariana. TV Globo. .Coronavírus: ministro do STF vê falta de coordenação entre governos federal e estaduais. Disponível em <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/30/coronavirus-ministro-do-stf-ve-falta-de-coordenacao-entre-governos-federal-e-estaduais.ghtml>. Acesso em 20 de março de 2022. PINHEIRO, Regina. Rádio Senado. STF reconhece competência de estados e municípios em regras de isolamento, disponível em <https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2020/04/16/stf-reconhece-competencia-concorrente-de-estados-df-municipios-e-uniao-no-combate-a-covid-19>. Acesso em 27 de fevereiro de 2022.

[4] É possível constatar isso nos seguintes livros: ARABI, Abhner Youssif Mota. Federalismo brasileiro: perspectivas descentralizadoras. Belo Horizonte: Fórum, 2019. BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves (org). O federalismo na visão dos estados: uma homenagem do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal  CONPEG — aos 30 anos de Constituição. Belo Horizonte: Letramento. Casa do Direito, 2018.

[5] A Emenda Constitucional nº 45/2019, autoria do Deputado Baleia Rossi argumento neste sentido. Em artigo sobre o tema registrou-se: "Conforme argumentado na proposta, o que se espera é uma melhora na operacionalização do sistema tributário nacional, através da eficiência e simplificação sem que haja custos aos Entes Federados no sentido de perda da autonomia, pois a possibilidade de alteração das alíquotas(Artigo 152-A, §2º, I) de forma unificada tenderia a preservá-la juntamente com a repartição de receitas, cobrindo a perda de arrecadação decorrente da extinção dos tributos originais. Outrossim, a proposta fundamenta que além destas, a função de arrecadar e fiscalizar os tributos auxiliariam no resguardo da autonomia. Porém, não se pode negar a perda parcial da possibilidade de se extrair a totalidade dos proveitos decorrentes das competências atribuídas aos Entes Políticos mais próximos à população, a de influência por meio da função extrafiscal"In: GUIMARÃES, Juliana Alcântara B. GUIMARÃES, Sabrina Alcântara B. SANTOS, Gustavo Abrahão dos. O PACTO FEDERATIVO BRASILEIRO E A REFORMA TRIBUTÁRIA. Faculdade do Guarujá. Revista Científica Intr@ciência. Edição 21  maio/junho 2021.

[6] TORRES, Heleno Taveira. Constituição financeira e o federalismo financeiro cooperativo equilibrado brasileiro. Revista Fórum Dir. fin. e Econômico — RFDFE. Belo Horizonte, ano 3, nº 5, p. 25-54, mar./ago. 2014.

[7] Representação nº 1153, prevaleceu a posição do ministro Moreira Alves pela inconstitucionalidade da Lei do Rio Grande do Sul que restringia a comercialização e uso de agrotóxicos, uma vez que o Estado teria legislado em matéria de comércio e consumo, campo de competência legislativa privativa da União. Rp nº 1153, relator ministro Aldir Passarinho, Tribunal Pleno, Julgamento em 16/05/1985, Dje de 25/10/1985.

ADI nº 3035, sobre a inconstitucionalidade da Lei Paranaense, que vedava o uso, cultivo, importação e comercialização de organismos geneticamente modificados. ADI nº 3035, relator ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, Julgamento em 06/04/2005, Dje de 14/10/2005.

ADI nº 4.369, em face da lei de São Paulo nº 13.854/2009, sobre proibição, nos serviços de telefonia fixa e móvel celular no Estado, a cobrança de valores correspondentes à "assinatura mensal", permitindo os serviços efetivamente prestados, sob pena de multa.  ADI nº 4.369, relator ministro Marcos Aurélio, Tribunal Pleno, Julgamento em 15/10/2014, Dje de 03/11/2014.

ADI nº 3.959, impugnou a lei n.º 12.239/2006, de São Paulo, acerca de cadastro com número das linhas telefônicas dos assinantes do serviço de telefonia interessados em vender por via telefônica. ADI  n.º 3.959, rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, Julgamento em 20/04/2016, Dje de 11/05/2016.

ADI nº 2.905, em face da Lei n.º 14.507/2002, de Minas Gerais, que versou sobre normas para vendas de títulos de capitalização e similares. ADI  n.º 2.905, relator ministro Eros Grau, Redator para o acórdão ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, Julgamento em 16/11/2016, Dje de 18/12/2019.

ADI nº 5.158, impugnou a Lei n.º 15.404/2014, de Pernambuco, que disciplinou sobre obrigatoriedade de fornecimento ao consumidor de carro similar, pelas montadoras de veículos, quando estiver em conserto o carro, ainda em cobertura de garantia contratual não ocorra em 15 dias.  ADI  nº 5.158, relator ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, Julgamento em 06/12/2018, Dje de 20/02/2019.

[8] A tendência centralizadora remete à forma que o federalismo surgiu no Brasil, divergentemente, por exemplo, dos Estados Unidos. Pois nos EUA observou que vinda do modelo federal com a união das treze colônias independentes  movimento conhecido como centrípeto , enquanto no Brasil deu-se em fluxo centrífugo, onde as capitanias, de propriedade do Estado unitário, passou a ter autonomia. In: RAMOS, Dircêo Torrecillas. O federalista atual  Teoria do Federalismo. Belo Horizonte: Arraes, 2013, p. 496.

[9] DUBOC, Silvana. Poema navegue. Fundação Biblioteca Nacional. Ministério da Cultura. Registro  309.788. Livro  564. Folha  448. Escritório de Direitos Autorais, Rua da Imprensa, 16, sala 1205, Centro, Rio de Janeiro.

[10] Foram quase 10.427 processos recebidos e 13.742 decisões produzidas, somente pelo Supremo Tribunal Federal, no âmbito das ações relacionadas à Covid-19, segundo as informações fornecidas pelo Painel de Ações Covid-19 do site do STF, disponível em: <http://portal.stf.jus.br/covid19/>. Acesso em 27 de março de 2022.

[11] BARCELLOS, Ana Paula de. PANDEMIA E FEDERAÇÃO: A NOVA DIRETRIZ DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA A INTERPRETAÇÃO DAS COMPETÊNCIAS COMUNS E ALGUNS DESAFIOS PARA SUA UNIVERSALIZAÇÃO. Disponível em: <https://revistas.newtonpaiva.br/redcunp/wp-content/uploads/2021/01/DIR42-10.pdf>. Acesso em  27 de fevereiro de 2022

[12] BRASIL. Ação direta de inconstitucionalidade nº 6.341. Relator ministro Marco Aurélio. Disponível em: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/voto-edson-fachin-acoes-competencia.pdf. Acesso em: 02 set. 2021.

[13] Ibis Idem

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