Ponto de vista

O Ministério Público na linha do tempo constitucional

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13 de abril de 2022, 9h00

*Artigo publicado no Anuário do Ministério Público Brasil 2022. A publicação está disponível gratuitamente na versão online e à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa.

“(…) o presente das coisas passadas é a memória, o presente das coisas presentes é a visão, o presente das coisas futuras é a expectativa.”1

Em célebre indagação filosófica sobre o tempo (Livro XI das Confissões), Santo Agostinho revela a relatividade de nossas percepções e asserções sobre o passado, o presente e o futuro. A história milenar do homem na Terra é a história das instituições2, que são “meios de se entender em discursos comuns e instrumentos de estabilização das relações”3.

Sob a perspectiva histórica das instituições, falar em memória, em atualidade e em expectativa exige a observação de quem vive no agora, investigando o que foi e esforçando-se por antever tendências e, eventualmente, incentivar ou alertar sobre aspectos cujo tempo, embora em parte se situe no imponderável amanhã, é sempre a continuação da história já iniciada.

ConJur, em mais um fruto de sua notável iniciativa, oferece, nesta nova edição do Anuário do Ministério Público, a ocasião para oportuna reflexão sobre o significado das transformações institucionais que têm como marco a Constituição de 1988.

O Ministério Público brasileiro contemporâneo não se sujeita, ao contrário do de outrora, na administração de suas rotinas internas (atividade-meio) e nas postulações em que se estribam as medidas que destina à comunidade (atividade-fim), a deliberações procedentes de outras instituições e órgãos estatais.

Quem se dê a considerá-lo na linha do tempo perceberá que o vigente ordenamento constitucional é pleno de significado pelo contraste nítido, que propicia, entre o passado dessa grande instituição e o seu presente. 

A rigor, a representação judicial da União incumbia ao Ministério Público Federal, dando continuidade ao que era a prática histórica da instituição, conforme dispunha a Lei 1.341, de 30 de janeiro de 1951, a antiga Lei Orgânica do Ministério Público da União. A Constituição da República de 1988, todavia, em seu artigo 129, IX, veio a obstar, peremptoriamente, que o Ministério Público operasse a “representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”, em um passo fundamental para desatrelá-lo dos vínculos de sua anterior sujeição orgânica.

A Constituição de 1988, que igualmente conferiu autonomia administrativa à instituição (art. 127, parágrafo 2º), inovou com a solene afirmação da independência funcional de seus membros. A Lei Complementar 40, de 14 de dezembro de 1981, então Lei Orgânica dos Ministérios Públicos dos Estados, já dispunha que os membros do Ministério Público gozavam “de independência no exercício de suas funções” (art. 16), mas a Constituição de 1988, cuidando de estabelecer os “princípios institucionais do Ministério Público”, assentou, pela vez primeira em nível constitucional, e com abrangência a todos os seus ramos, o princípio da “independência funcional” (art. 127, parágrafo único).

Esses elementos, extraídos para dar ideia da enorme transformação institucional pela qual passou o Ministério Público na nova ordem constitucional, não têm, evidentemente, como serem desconectados da finalidade última pretendida pelo poder constituinte originário, e que introduz a seção dedicada ao Parquet no texto da vigente Constituição: posicionar o Ministério Público na destacada e expressiva função constitucional de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput).

Tal inovação esteve na base do protagonismo exercido pelo Ministério Público brasileiro na defesa da democracia, do meio ambiente, dos direitos e garantias sociais, da ordem econômica, além de permitir avanços significativos na persecução penal. Quando comparado a instituições homólogas de outras nações, o MP brasileiro desenhado pela Constituição de 1988 está na vanguarda da representação dos interesses da sociedade.

É preciso atentar, porém, para o risco da heterogênese dos fins, acautelando-se contra a eventualidade de que equívocos na ação da instituição lhe comprometam as possibilidades de atingimento de sua ratio essendi constitucional, pondo-a, em vez disso, na contramão das expectativas normativas que dizem como operar do Ministério Público.

Sobredito risco é fisiológico à atividade de qualquer instituição e a urgência de se refletir a respeito é proporcional à seriedade do desafio que representa. O fenômeno, no caso do Ministério Público, parece ser agravado por uma percepção superficial de suas atribuições institucionais, incondizente com a sua grandeza constitucional e de danosa consequência, ao reduzi-lo à estreita dimensão de perspectivas subjetivas individuais e nem sempre harmônicas.

Pense-se, por exemplo, dado o impacto negativo que surtiria na vida coletiva, no mal que seria uma inclinação ideológico-partidária, de qualquer natureza, na ação do Ministério Público. Tal inclinação, forçosamente, conduzi-lo-ia a assentar como premissa de estruturação de sua atividade uma ideia ilusória de si mesmo, nutrida por cada integrante de seus quadros funcionais, incompatível com a missão institucional outorgada pela Constituição de 1988.

Um dos resultados, dificilmente evitável, do estado de coisas que se geraria com a progressiva confusão entre missão constitucional e visões de mundo pessoais de cada membro, por exemplo, seria a deflagração de medidas esboçadas com o intuito, não consciente, de impor sobre a inteira sociedade concepções particulares da vida coletiva, satisfazendo-se interesses não preconizados pela Constituição.

Isso pode ocorrer, por exemplo, com o apoio de uma postura hermenêutica que apele à suposta objetividade de princípios constitucionais, como se eles apontassem numa única direção, enquanto, ao contrário, têm fatispécie aberta e o seu próprio grau de indeterminação4, sendo afeiçoados a composições plúrimas, a harmonizações variadas por obra, prioritariamente, da lei, resultante do exercício legítimo dos direitos de representação política.

O Ministério Público contramajoritário não é o que alimenta qualquer forma de ativismo, mas o que se posiciona em conformidade com os direitos fundamentais. Entretanto, como se tem dito, se, de um lado, o “espaço dos direitos restringe, inexoravelmente, o espaço da decisão democrática”5, de outro, claramente, não o anula.

Cada membro do Ministério Público põe-se, assim, sob o imperioso dever de não exceder, nos atos de seu ofício, os limites que defluem dos fundamentos constitucionais da vida coletiva, comportados nas duas tábuas de que se compõe toda Constituição democrática contemporânea, vale dizer, (a) definições de direitos, e de sua garantia jurisdicional, e (b) atribuições orgânicas de competências políticas decisórias que competem ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo.

A Constituição vigente é dotada de tessitura normativa que testemunha e favorece o mais elevado grau de pluralismo social e político. O Ministério Público, pontifica o saudoso mestre Paulo Bonavides, “nem é governo, nem oposição”6. Não lhe toca, pois, tomar partido ao lado desse ou daquele interesse parcial em disputa dentro da vida coletiva, ou de qualquer orientação ideológica que esteja competindo, legitimamente, na vida pública, por uma posição de predominância cultural e política.

A Constituição é “norma inclusiva”, que, precisamente, “constrói o espaço da inclusão política e social”7, e tem função de norma de compromisso político fundamental, estabelecendo, segundo Zagrebelsky, o “mínimo denominador comum” da vida política, “sustentado pela geral adesão ativa de todos os que participam do compromisso, e que constitui a sólida base para construir uma convivência comum, capaz de andar além das relações de força do momento”8.

Estranho seria que, em descompasso com a Constituição, a atividade do Ministério Público tivesse o inusitado êxito de reduzir os confins de tal inclusão, de alterar o conteúdo do “mínimo denominador comum”, de impor exigências ad hoc que resultassem na criação de cidadanias de velocidade diversa, e, por fim, de sufocar a plenitude plural da vida constitucional.

Incumbe aos membros da instituição todo o cuidado de não separar o que a Constituição uniu. Não se pode situar em polos opostos a ordem jurídica e o regime democrático. Exatamente neste ponto, o presente da instituição define o seu futuro.

Numa metáfora paulina, chama-se atenção à necessidade de se escolher bem o material que se usa na construção. A estrutura futura do edifício institucional do Ministério Público depende dos materiais que, hoje, forem empregados nessa obra, e que não podem ser extraídos senão da Constituição. A exortação apostólica também cabe aqui: “Cada um veja como edifica”9.

Agradeço à ConJur por mais esta edição do Anuário, abrindo o espaço para a permanente reflexão histórica sobre o Ministério Público, sempre para o bem da sociedade a que servimos.

Notas
1 Sant’Agostino. Confessioni. Milano: Mondadori, 2016, p. 322.
2 Assim como o dizia o jurista italiano Giuseppe Guarino, citado em Irelli, Vincenzo Cerulli. Prima lezione di diritto amministrativo. Bari-Roma: Laterza, 2021, p. VII.
3 Zagrebelski, Gustavo. Diritto allo specchio. Torino: Einaudi, 2018, p. 56.
4 Guastini, Riccardo. Prima Lezione sull’Interpretazione. Modena: Mucchi, 2019, p. 54.
5 Pino, Giorgio. Il costituzionalismo dei diritti. Bologna: Il Mulino, 2017, p. 202.
6 Bonavides, Paulo. Os dois Ministérios Públicos do Brasil: o da Constituição e o do Governo. In: Moura Junior, Flávio Paixão et al. (Coord.). Ministério Público e a ordem social just a. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 350.
7 Zagrebelski, Gustavo. Diritto allo specchio. Torino: Einaudi, 2018, p. 187.
8 Zagrebelski, op. cit., p. 194.
9 Primeira epístola do Apóstolo São Paulo aos Coríntios, capítulo 3.

Anuário do Ministério Público Brasil 2022
ISSN: 2675-7346
Edição: 2021 | 2022
Número de páginas: 204
Editora ConJur
Versão impressa: R$ 40, exclusivamente na Livraria ConJur (clique aqui)
Versão digital: acesse gratuitamente pelo site http://anuario.conjur.com.br e pelo app Anuário da Justiça

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