Opinião

Mulher trans, Lei Maria da Penha e feminicídio

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13 de abril de 2022, 20h00

No último dia 6, em rica decisão, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial para fixar medidas protetivas a uma mulher transexual, vítima de agressões pelo próprio pai. A decisão repercutiu no meio jurídico, sobretudo por seu caráter inédito no âmbito do STJ [1].

A postura da Turma, embora louvável, apenas consolidou entendimentos que já vinham sendo aplicados por magistrados de primeiro e segundo grau no Brasil [2]. A ideia de a mulher trans se enquadrar nas disposições da Lei nº 11.340/2006 não vai além do simples cumprimento do preceito legal do artigo 5º, o qual dispõe que "(…) configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero (…)".

Destaca-se, aqui, gênero ante as suas definições. Há especial diferença entre gênero feminino e sexo feminino as quais repercutem na incidência penal. Essa distinção foi, inclusive, apontada no acórdão mencionado.

Conforme voto do ministro Rogério Schietti, "Gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres. Uma análise de gênero pode se limitar a descrever essas dinâmicas. (…) Por outro lado, sexo refere-se às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, bem como ao seu funcionamento. (…) o conceito de sexo, como visto, não define a identidade de gênero" [3].

O que fez a Lei Maria da Penha foi transmitir a ideia clássica do existencialismo de Sartre, de que "a existência precede a essência". Para ele o ser humano não tem uma essência ou identidade definida ao nascer. Primeiro o ser humano existe, depois define a sua essência. A partir deste ponto, Simone de Beauvoir escreve o livro "O Segundo Sexo", o qual consta a famosa passagem, "não se nasce mulher, torna-se mulher".

Não há dúvida do caráter progressista da Lei nº 11.340/2006. Não obstante os efeitos práticos que acarretou no ambiente doméstico e nas relações de homem e mulher, ainda enxergou e expressou o conceito amplo que possui gênero. Agora, a partir desta nova postura do Superior Tribunal de Justiça a tendência seja de consolidação da matéria em definitivo e a mulher trans, vítima de violência, fará jus às disposições da referida lei.

Entretanto, como a lei penal e processual penal brasileira é claramente um emaranhado de dispositivos que são inseridos isoladamente no ordenamento jurídico, não surpreende que no âmbito de violência contra a mulher haveria de ter contradições.

Em 2014, quando foi proposta alteração legislativa, por meio do Projeto de Lei nº 8.305/2014, para se inserir o inciso VI, e o §2º-A, no §2º do artigo 121 do Código Penal, ou seja, tipificar o feminicídio, a redação estava em sintonia com o que já era expresso na Lei nº 11.340/2006, ou seja, consistia em qualificar o homicídio "contra a mulher por razões de gênero".

Todavia, ao ser finalmente aprovada, a Lei 13.104/2015, naturalmente por pressões políticas, sobretudo dos grupos conservadores, foi retirada a elementar gênero e em seu lugar passou a constar sexo feminino. Desta feita, para a configuração do feminicídio, deve ser levado em consideração, exclusivamente, a constituição biológica da vítima. Houve uma considerável restrição e, evidentemente, uma contradição.

Duas leis de peso absolutamente idênticos tratam a mulher trans vítima de violência doméstica ou em razão de sua condição de mulher de forma absolutamente distinta e conflitante. Tal situação é bastante grave. Todavia, não cabe interpretações. A lei penal é restritiva e deve ser respeitada tal como ela é, ainda que seja claramente mais um exemplo de desarranjo legislativo e que somente este poder pode solucionar.


[1] Conjur: STJ fixa medida protetiva a mulher trans com base na Lei Maria da Penha. Disponível em: [https://www.conjur.com.br/2022-abr-06/lei-maria-penha-aplicavel-proteger-mulher-trans-stj]. Acesso em 07/04/2022.

[2] Conjur: Lei Maria da Penha protege mulher trans vítima de homem trans, diz desembargador. Disponível em: [https://www.conjur.com.br/2017-out-05/lei-maria-penha-protege-mulher-trans-vitima-homem-trans]; Agressão contra mulher transexual deve tramitar em Vara de Violência Doméstica. Disponível em: [https://www.conjur.com.br/2021-jan-25/vara-violencia-domestica-julgar-agressao-transexual]. Vara da violência doméstica é competente para julgar agressão contra transexual. Disponível em: [https://www.conjur.com.br/2020-dez-15/vara-violencia-domestica-julgar-agressao-transexual]. Acesso em: 07/04/2022.

[3] STJ: REsp 1.977.124, ministro Rogério Schietti, 6ª T. D

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