Opinião

Quando o inimigo do Estado é inocente

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12 de abril de 2022, 10h09

Suspender as garantias e direitos fundamentais sob a alegação "de convicção" dos investigadores ou acusadores parece impossível, mas na prática isso acontece rotineiramente no Brasil, a partir de atos judiciais que tangenciam a ilegalidade quando não são para "proteção ou informação à sociedade". Nesses casos, os cidadãos viraram "inimigos por convicção" do Estado, característica "definida e imposta" por alguns agentes públicos.

O costume — que arrastou para a quase nulidade um dos setores mais pujantes da economia brasileira: o da infraestrutura — parece ter seguido os ensinamentos de Günther Jakobs, que desenvolveu, em meados 1980, a teoria do Direito Penal do Inimigo, uma ideia de política criminal em que há segregação do indivíduo que o Estado considere inimigo, excluindo, até mesmo, garantias e direitos fundamentais.

A temática de responsabilidade objetiva do Estado (quando independe de culpa) pelos danos causados aos particulares encontrava ampla discussão quando originada de uma decisão judicial. O assunto já foi instigante e existe hoje certo pensamento uniforme. Essa não é a ótica deste artigo. Aqui se pretende divagar sobre métodos de Direito Penal do Inimigo em terras tupiniquins e seus reflexos financeiros para a sociedade brasileira.

Na lição de Vicente Greco Filho, "ao inimigo, aplicar-se-iam, entre outras, algumas das seguintes medidas: não é punido com pena, mas com medida de segurança; é punido conforme sua periculosidade e não culpabilidade; no estágio prévio ao ato preparatório; a punição não considera o passado, mas o futuro e suas garantias sociais. Também nesta visão, o direito penal é prospectivo ou de probabilidade; não é sujeito de direitos, mas de coação como impedimento à prática de delitos, para o inimigo, haverá a redução de garantias como o sigilo telefônico, o ônus da prova, o direito de ficar calado, o processo penal em liberdade e outras garantias processuais".

A nossa Justiça está repleta de exemplos como o do então procurador Deltan Dallagnol, que usou uma sugestiva apresentação em PowerPoint para ilustrar a suposta ladroagem de Luiz Inácio Lula da Silva e arranhou a imagem do ex-presidente mundialmente; ou o também então juiz Sérgio Moro, que ameaçou prender os filhos de um diretor da Petrobras. Nesse caso, após o episódio, a delação aconteceu. Outro exemplo é o juiz Marcelo Bretas, que determinou que a polícia executasse mandados de busca e apreensão em escritórios de advocacia, tornando alvo os advogados de Lula e do presidente Jair Bolsonaro. Moro, ele de novo, ordenou o fim do sigilo da delação premiada de Antonio Palocci às vésperas das eleições. Vale destacar que há quem afirme que essa decisão influenciou no resultado das urnas. Enfim, existem outros atos judiciais que, brincando com a arbitrariedade, surtiram efeitos devastadores e irreversíveis e, na prática, supriram a "falta de provas", onde haveria a dita "convicção de crime".

A operação "lava jato" encerrou em fevereiro de 2021, mas os processos oriundos dela ainda tramitam nos tribunais, que terão que se pronunciar sobre os erros judiciais, as condutas processuais adotadas e, posteriormente, apurar os danos que foram causados, talvez ilicitamente e propositadamente, a todo o setor de construção pesada do país. Essa conta ainda chegará.

Mas, bem antes da notoriedade de Marcelo Odebrecht, "Príncipe das Empreiteiras", um empresário foi totalmente destruído pelos métodos do Direito Penal do Inimigo. Zuleido Veras foi destroçado como pessoa e como profissional por atos judiciais e por condutas não judiciais, mas propositais, oriundas de agentes públicos, a exemplo da espetacularização midiática da prisão dos investigados na Operação Navalha, ou mesmo de vazamento de dados sigilosos, ou ainda através de diversas entrevistas de acusadores e de juízes, como a então ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Os abusos cometidos na operação navalha foram analisados e declarados ilegais por outros juízes, desembargadores e pelos ministros do STJ e do STF. E, ao contrário do que aconteceu na "lava jato", na qual provas foram anuladas ou processualmente contestadas, Zuleido Veras foi inocentado em uma decisão que avaliou que "mesmo que as provas fossem validadas" nada teria que incriminasse o empresário.

Numa espécie de laboratório do que estava por vir na "lava jato", contra Zuleido, o Estado: grampeou ilegalmente; editou gravações telefônicas; suprimiu diálogos importantes e inocentadores; escondeu que investigava parlamentares para não enviar o processo para o STF; bloqueou contas e bens sem nem saber ainda de quanto seria a acusação de desvio; compartilhou indícios como se fossem provas, enviando a outros órgãos de controle, clientes da empresa e até desafetos, dados da investigação que deveriam ser sigilosos; escondeu e destruiu documentos; e permitiu que a polícia usasse veículos dos investigados e hoje inocentados. Um descalabro!

É difícil mensurar a perversidade do "cancelamento" que o empresário vivenciou, para usar o termo da moda. Os danos causados à empresa foram devastadores. A Gautama tinha mais de 12 anos de atuação no mercado, gerava cerca de três mil empregos diretos e indiretos. De um momento para o outro, teve todas as contas bancárias bloqueadas, com seu principal acionista preso e, durante dias, se tornou o assunto de maior divulgação nos meios de comunicação.

Os efeitos foram imediatos. Aconteceu uma grande debandada em seus quadros técnicos e clientes públicos se sentiram acovardados em efetuar qualquer pagamento à empresa, com receio de serem envolvidos em supostas falcatruas. Fornecedores suspendem o atendimento e crédito e, os bancos, sequer renegociavam dívidas. Enfim, a empresa e seus acionistas foram efetivamente excluídos da vida comercial. Isso tudo aconteceu com a construtora Gautama.

A Polícia Federal apreendeu todos os documentos da empresa para peritagem. A Receita Federal e a Controladoria Geral da União (CGU) foram notificadas pelo STJ para investigar e auditar a empresa que não pôde refutar os autos de infração e as investigações por não possuir os documentos necessários. O resultado disso foram bilhões em débitos tributários "arbitrados"!

O processo penal, de onde tudo emanou, foi desmembrado e seus "filhotes" duraram 12 anos, até que a Justiça reconheceu que, ainda que as ilegalidades judiciais não existissem, não haveria como condenar os acusados. Não se tratava de meros erros procedimentais, mas de total falta de sustentação factual das acusações.

Zuleido e todos os outros, enfim, foram declarados efetivamente inocentes.

Do ilustre professor Luís Flávio Gomes, colhe-se: "Quem sustenta o chamado 'Direito Penal do Inimigo' pode ser caracterizado como um grande inimigo do Direito Penal garantista, porque tal teoria representa um tipo de direito penal excepcional, contrário aos princípios liberais acolhidos pelo Estado Constitucional e Democrático de Direito".

O linchamento midiático, suportado por vasta documentação enviada à imprensa por órgãos oficiais, os atos judiciais e os atos fora dos autos, geraram efeitos irreversíveis na vida pessoal, profissional dos acusados e de suas empresas e negócios e, por isso, são factíveis as indenizações sem necessidade de discussão teórica.

Imputa-se à sociedade um ônus do despreparo, da ambição financeira, midiática, pessoal ou política de agentes públicos que deveriam usar o seu mister para livrá-la de verdadeiros criminosos e fazem isso com a competência técnica de quem, estando no topo remuneratório do serviço público, não deveria errar.

As indenizações dos absolvidos na operação navalha irão inaugurar uma era de prejuízos ao Tesouro decorrentes de erros judiciais que, na essência do direito e da lógica são indesculpáveis, quando não, classificados de erros propositais. Não se pode negar os fatos e a inocência de Zuleido e da Gautama. Isso já foi superado. Agora, o trabalho é apurar os danos e, posteriormente, saber quem, além do erário, vai quitar a conta.

É calcular os danos e pagar!

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