A Nova Constituição

O pacto federativo ante o enfrentamento à Covid-19 e a jurisprudência do STF

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11 de abril de 2022, 17h32

A organização federativa de um Estado pressupõe a afirmação de um núcleo central de poder, donde emanam as normas gerais e a coordenação das políticas nacionais, ao mesmo tempo em que assegura a autonomia dos entes federados, reconhecendo-se a pluralidade das realidades nas unidades subnacionais. A doutrina afirma a existência de elementos nucleares qualificadores do Estado federal, em que se destacam a presença de ordens parciais, a autonomia política e administrativa das unidades da federação e a proibição de dissolução da federação [1].

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No Brasil, o federalismo como estrutura formal de organização do Estado nasce com a instauração do regime republicano pela Constituição de 1891. A referida carta política redigida com a influência decisiva de Ruy Barbosa, e inspirada no modelo estadunidense, rompeu com o modelo de Estado unitário vigente na monarquia e importou aos "Estados Unidos do Brasil" o Estado Federado.

A partir da vigência da Constituição de 1988, o federalismo brasileiro fica destacado com as seguintes características: 1) a existência de uma Casa Legislativa representante dos estados, o Senado; 2) a indissolubilidade do vínculo federativo inscrito como cláusula pétrea; 3) a convivência entre um Poder Judiciário no âmbito dos estados e da União; 4) a possibilidade de intervenção federal nos estados diante das hipóteses expressamente previstas na Constituição; 5) a dignificação dos municípios como entes federados com organização político-administrativa própria disciplinada por lei orgânica e a repartição de tributos e competências.

Tal arquitetura federativa foi revestida pelo paradigma do "federalismo cooperativo", assentado na ação concertada entre os três entes federativos: União, estados e municípios. O viés cooperativo da federação é explicitado pelos artigos 23 e 24 da Carta Constitucional. No artigo 23 é detalhado o rol de competências executivas comuns entre os diversos entes políticos, inclusive as referentes à saúde, educação e meio-ambiente, visando o equilíbrio do desenvolvimento e o bem-estar em âmbito nacional. Enquanto o artigo 24 engloba as competências legislativas concorrentes, estando a União incumbida de legislar sobre regras gerais e os estados sobre as regras específicas adaptadas à realidade regional.

Assim, além de diretriz, a cooperação entre os entes funciona como vetor de interpretação jurídica que opera consequências práticas no mundo do direito quando os tribunais, em especial o STF, são chamados a se manifestar sobre eventuais conflitos envolvendo os entes federativos. Dessa forma, o Supremo age como espécie de árbitro da federação, visando manter a harmonia entre os entes, ao interpretar a Constituição de modo a delimitar o alcance das competências de cada um no exercício do múnus do artigo 102, I, "f" da Carta de 1988 [2].

Na jurisprudência do STF [3] sobre o tema, verifica-se que, quando são levados aos ministros dissídios envolvendo as competências concorrentes entre os entres, a fundamentação decisória alberga o princípio da preponderância de interesse. O referido princípio determina que cabe à União zelar pelo interesse geral, enquanto Estados resguardam interesses regionais, e aos municípios cabem matérias de interesse local.

Ainda, necessário apontar que o Supremo não se debruça sobre qualquer conflito entre entes da federação. De acordo com jurisprudência pacificada [4], sua competência será atraída apenas em caso de "conflito federativo", ou seja, aquele que, além de envolver os entes federados como partes litigantes (elemento subjetivo), também se revestir da potencialidade de desequilibrar o próprio pacto federativo (elemento objetivo).

Com o advento da pandemia provocada pela Covid-19, diversos desafios de todas as ordens se colocaram, dentre eles a definição das competências, no bojo do desenho institucional federativo, para a tomada de medidas de contenção da doença. A questão bateu às portas do STF — por meio das Arguições de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) números 672 e 770 —, que foi chamado a atuar como árbitro da federação, a fim de compor os conflitos e delinear as competências atribuídas aos entes federados.

A ADPF nº 672 foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), em face de atos omissivos e comissivos do Poder Executivo federal, praticados no contexto da crise de saúde pública decorrente da pandemia do coronavírus. No pedido inicial, a entidade expõe a grave situação de emergência sanitária provocada pela pandemia do novo coronavírus e ressalta a necessidade de que as políticas públicas voltadas ao enfrentamento da situação de calamidade pública sejam orientadas por evidências científicas e pelos protocolos e diretrizes aprovadas pelas principais autoridades sanitárias do mundo, com destaque para a Organização Mundial da Saúde.

A inicial destacou a atuação insuficiente e precária por parte do governo federal, que, conforme argumentou em seu pedido, "nem sempre tem feito uso adequado das prerrogativas que detém para enfrentar a emergência de saúde pública". Para mais, elencou a prática, por parte do presidente da República, de ações contrárias aos protocolos de saúde aprovados pela comunidade científica e aplicados pelos chefes de Estado ao redor do mundo.

Ressaltando que a proteção e defesa da saúde é de competência concorrente da União, estados, DF e municípios, nos termos dos artigos 22, II e 24, XII, o CFOAB sustentou a violação dos preceitos fundamentais do direito à saúde e do direito à vida, afronta à independência e harmonia entre os Poderes no âmbito das medidas de enfrentamento da crise do coronavírus e ao princípio federativo, tendo em vista atuação do governo federal em confronto com as políticas adotadas por outros entes federativos com fundamento em suas respectivas competências constitucionais.

Ao julgar o caso, o Supremo Tribunal decidiu por assegurar o exercício da competência concorrente dos estados, Distrito Federal e municípios, "cada qual no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus respectivos territórios, para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia" [5]. A corte reconheceu a gravidade da emergência causada pela pandemia da Covid-19 e concluiu que não há fundamento constitucional que ampare qualquer iniciativa do Executivo federal em desautorizar medidas sanitárias adotadas pelos Estados e municípios.

Posteriormente, em face da desarticulação e omissão do Poder Público Federal em fornecer à população um plano definitivo nacional de imunização e o registro e acesso à vacina contra o coronavírus, o CFOAB ajuizou também a ADPF nº 770. Quando essa ação foi apresentada, o governo ainda não possuía um plano definitivo de vacinação, apenas havia sido divulgado um plano preliminar, contudo sem informações suficientes, como data de inícios e dados logísticos que permitissem a organização dos entes federativos a fim de permitir sua efetivação.

Argumentou-se que a demora na organização para a imunização em massa, bem como a exigência de análise da Anvisa de imunizantes já aprovados por entidades sanitárias renomadas a nível internacional, coloca em grave risco de lesão o direito à saúde, a própria saúde pública, a integridade física dos cidadãos e o direito humano e fundamental à vida. A OAB sustentou que a própria Lei nº 13.979/2020 — Lei da Quarentena — foi alterada para prever a possibilidade de autorização excepcional e temporária para importação e distribuição de medicamentos e insumos de saúde, mesmo sem o registro da Anvisa, mas considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia e desde que registrados e autorizados ao menos por uma das autoridades sanitárias dos Estados Unidos, Europa, Japão ou China.

Ao apreciar a questão, a Corte Constitucional brasileira, mais uma vez, pautou-se no federalismo e na necessidade de que a União e as unidades federadas se apoiem mutuamente no enfrentamento da grave crise sanitária e econômica decorrente da pandemia desencadeada pelo novo coronavírus. O Supremo concluiu que as atribuições do Ministério da Saúde de coordenar o Plano Nacional de Imunização (PNI) e de definir as vacinas integrantes do calendário de imunização do país, não exclui a competência dos Estados, Distrito Federal e Municípios de adaptá-los às peculiaridades locais, no típico exercício da competência comum de que dispõem para "cuidar da saúde e assistência pública" (artigo 23, II, da CF).

O tribunal assentou que o ideal seria a inclusão de todas as vacinas seguras e eficazes no PNI, de maneira a imunizar, uniforme e tempestivamente, toda a população. Ademais, tendo em vista a própria jurisprudência relativa ao enfrentamento da pandemia, ressaltou a possibilidade de atuação conjunta das autoridades estaduais e locais para suprir lacunas ou omissões do governo federal. Em outras palavras, os governos estaduais, distrital e municipais poderiam disponibilizar imunizantes diversos daqueles ofertados pela União, desde que aprovados pela Anvisa, caso aqueles se mostrem insuficientes ou sejam ofertados a destempo.

A decisão foi além, pontuou que a Lei da Quarentena assinalou que as "autoridades" — sem fazer qualquer distinção entre os diversos níveis político-administrativos da federação — poderão lançar mão do uso de medicamentos e insumos na área de saúde mesmo sem registro na Anvisa, desde que registradas por autoridades estrangeiras listadas na norma. Restou estabelecido que na hipótese de a Agência Nacional de Vigilância Sanitária não expedir a autorização em 72 horas, os entes poderão importar e distribuir vacinas registradas por pelo menos uma das entidades sanitárias dos Estados Unidos, Europa, Japão ou China, e liberadas para distribuição comercial nos respectivos países, ou ainda quaisquer outras que vierem a ser aprovadas em caráter emergencial.

Como se vê, as decisões proferidas nas ADPFs números 672 e 770 — ao reconhecer a autonomia e as atribuições dos Estados, Distrito Federal e municípios, no âmbito de suas competências e territórios, na adoção de medidas de combate à pandemia do coronavírus —, apresentam uma ampliação do entendimento do Supremo Tribunal Federal no que tange à autonomia dos estados, tendo em vista o vasto rol de competências legislativas concorrentes e de competências administrativas comuns.

Em ambos os casos mencionados, o STF ressaltou que compete à União, como ente central, o papel de coordenação e planejamento nacional das políticas de saúde e de vigilância epidemiológica e sanitária, mas que tal papel não afasta as competências comuns e concorrentes dos demais entes da federação nessas áreas, que possuem o poder-dever de adotar todas as medidas legalmente autorizadas para o enfrentamento da grave crise sanitária vivenciada.

A divisão da federação em diversos níveis, antes de desencadear competição entre as esferas de governo, pretende, ao revés, promover o mútuo apoio dos entes federativos no que tange às competências compartilhadas. É inegável que num país de proporções continentais como é o Brasil, o grau de contágio da Covid-19, a quantidade de óbitos provocados pela doença, a ocupação de leitos hospitalares entre tantos outros fatores são distintos em cada região e, mais especificamente, cada município. Por essa razão é que não se pode prescindir das competências regionais e locais para se obter a correta avaliação — técnica e científica — da conjuntura e da tomada das decisões adequadas a cada situação e a cada momento.

 


[1] SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 932.

[2] Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originariamente:

f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta.

[3] Alguns julgados recentes que utilizam o princípio da preponderância o interesse como técnica decisória: ADPF 567, rel. min. Alexandre de Moraes, julgado em 1/3/2021; ADI 2.435, rel. min. Cármen Lúcia, julgado em 21/12/2020; ADI 5.724, rel. min. Roberto Barroso, julgado em 30/11/2020; ADI 5.521, rel. min. Gilmar Mendes, julgado em 30/8/2019.

[4] Nesse sentido podem ser listados como exemplos os seguintes julgados: Rcl 4.210, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgado em 26/03/2019;ACO 1.767, rel min. Luís Roberto Barroso, julgado em 19/11/2018; AC 4.128, rel. min. Luiz Fux, julgado em 1/12/2017; ACO 1394, rel min. Marco Aurélio, julgado em 19/5/2016.

[5] Acórdão proferido na ADPF 672, publicado em 29/10/2020.

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