Opinião

Retenção do passaporte e suspensão da CNH do devedor estão com dias contados

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8 de abril de 2022, 15h02

Está pendente de julgamento a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.941, proposta pelo Partido dos Trabalhadores (PT), visando a nulidade do inciso IV do artigo 139 do CPC para declarar inconstitucionais, dentre outas medidas coercitivas, a apreensão do passaporte e a suspensão da CNH do devedor. Tratam-se de medidas atípicas, assim chamadas pois não estão previstas expressamente no Código de Processo Civil, que, amparadas pela "cláusula geral de efetivação" do artigo 139, IV, têm por finalidade dar maior efetividade ao processo de execução por meio do alcance efetivo da satisfação do direito do credor.

Desde a vigência do CPC/2015, os magistrados passaram a aplicar como principais medidas atípicas para a satisfação de obrigação pecuniária a apreensão do passaporte, o bloqueio de cartão de crédito e a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) do devedor.

Todavia, é evidente que o credor não poderá se valer de toda e qualquer medida indiscriminadamente, sendo certo que, de acordo com os princípios próprios da execução e com as disposições legais, é forçoso que se opte pelo caminho menos prejudicial ao devedor (artigo 805 do CPC), evitando-se, assim, encargos exagerados, desnecessários ou até mesmo bloqueios de patrimônio indevidos.

Também não parece razoável que se proíba o exercício de certas funções em sociedades empresárias ou na Administração Pública pelo devedor que tenha deixado de cumprir obrigação pecuniária, ou mesmo que se autorize a penhora de bens do devedor que tenha descumprido obrigação só por ele exequível (obrigação personalíssima), cuja única medida estabelecida pelo código é a aplicação de multa, sem que tenha sido demonstrada a vontade de ocultar patrimônio ou de deliberadamente desrespeitar ordem do Poder Judiciário. Ou seja, parece justo que o magistrado se valha, ao menos em um primeiro momento, da aplicação de medida atípica compatível com a obrigação específica.

Diante dessas e outras considerações, foram fixados parâmetros mínimos pela doutrina e pelo Superior Tribunal de Justiça para a aplicação de tais medidas atípicas (denominadas "coercitivas", pois pressionam o devedor a satisfazer a obrigação), que, assim, somente poderão ser aplicadas (1) em caso de ocultação patrimonial pelo devedor, (2) por meio de decisão fundamentada, (3) se garantido o contraditório prévio, e (4) se a medida afigurar-se adequada ao caso concreto, assegurado o postulado da proporcionalidade. O entendimento fixado no REsp 1.788.950/MT, por exemplo, um dos primeiros julgamentos nesse sentido, já serviu de fundamentação para diversas decisões.

Outro critério adotado, e que já foi relativizado pela jurisprudência especialmente para a apreensão do passaporte, é a subsidiariedade das medidas atípicas, isso é, a possibilidade de sua aplicação somente quando esgotados os meio típicos (expressamente previstos no código).

Destaca-se que os principais meios de prova atualmente utilizados para demonstrar a existência de ocultação patrimonial são as próprias redes sociais do devedor, além da tradicional "ata notarial", essa última amplamente utilizada nos dias de hoje para comprovar a verificação de fatos na internet. Dotada de fé pública, a ata notarial (artigo 384 do CPC) passou a atestar fatos ocorridos no âmbito eletrônico e vem sendo utilizada como meio idôneo de prova apto a comprovar a ocultação de patrimônio, por exemplo, pelo devedor cujos bens não são encontrados em pesquisas judiciais, mas que posta fotos viajando a lazer na Europa.

Outro ponto importante a ser considerado, além da necessária observância dos critérios de desobediência e ocultação de patrimônio, é a desproporcionalidade da aplicação de medida(s) atípica(s) contra um devedor superendividado ou privado de seu patrimônio, porque isso só agravaria sua situação e seria evidentemente inútil para a efetividade do processo.

Por isso, parece razoável que não se permita a suspensão da CNH daquele que utiliza seu veículo para trabalhar como motorista de Uber ou táxi, por exemplo, e da mesma forma a retenção do passaporte do devedor que trabalhe como piloto de avião.

Sob a mesma ótica e na esteira do que vêm decidindo os tribunais, não se mostra adequado admitir a retenção do passaporte do devedor que comprove viajar a trabalho ou mesmo que deva se locomover para ajudar um parente enfermo (ou qualquer outra pessoa estimada) que resida ou se encontre temporariamente em outro país.

No que tange especificamente a possibilidade de apreensão do passaporte e de suspensão da CNH do devedor, há séria controvérsia sobre a constitucionalidade da cláusula geral do artigo 139, inciso IV por se entender que as decisões proferidas nesse sentido violariam a sua liberdade de locomoção. Atualmente, essa questão foi pacificada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça para a suspensão da CNH, no sentido de se permitir a aplicação da medida desde que respeitados os critérios acima apontados, enquanto no tocante à apreensão do passaporte ainda não há unanimidade.

Já no TJ-SP, apesar de todos os critérios apontados estarem sendo observados, as decisões parecem muito mais rigorosas para admitir a aplicação das medidas atípicas, especialmente diante do atual cenário de pandemia (vide Agravo de Instrumento nº 2092438-16.2020.8.26.0000)

De forma geral, o que vem se colocando em pauta atualmente é a possibilidade ou não de aplicação/manutenção das medidas atípicas de apreensão do passaporte e bloqueio da CNH por atingirem a pessoa do devedor (e não seu patrimônio — esse sim objeto da execução). E, por mais que haja um cuidado dos tribunais no tocante à (controvertida) violação ao seu direito de locomoção, aparenta existir uma preocupação ainda maior com a postura do executado, sua condição patrimonial e laborativa e com a adequação da medida ao caso concreto, tudo como forma equilibrar o direito do credor e a dignidade do devedor.

Contudo, como visto, todo esse panorama poderá mudar. O julgamento do STF será importante para trazer segurança jurídica e para reforçar a necessidade de se conceder efetividade para as execuções, sob pena de privilegiar o devedor que deliberadamente oculta patrimônio com a clara intenção de não pagar o que deve.

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