Opinião

Desafios de coerência em um Estado regulador policêntrico

Autor

  • Cleso da Fonseca Filho

    é pesquisador no IDP. Procurador federal exerceu os cargos de PGF procurador-geral da Anac consultor jurídico do Ministério da Defesa consultor da União e assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal.

7 de abril de 2022, 12h06

Será realizado em Lisboa, a partir de iniciativa do Fórum de Integração Brasil-Europa (Fibe), o evento "Desafios do Desenvolvimento: O Futuro da Regulação Estatal", entre 17 e 21 de abril próximos. O encontro tem como eixo temático a regulação como instrumento para estimular investimentos e desenvolvimento (mais detalhes aqui).[1] É certamente uma oportunidade para debater temas centrais para o desenvolvimento sustentável do Brasil nas próximas décadas, em um diálogo de alto nível entre brasileiros e europeus.

Pensar a regulação do futuro, ainda no contexto de superação da Pandemia, por certo envolve o aprendizado com a crise sanitária e uma reflexão sobre as capacidades institucionais disponíveis para lidar com problemas que exijam respostas regulatórias coordenadas. Esse processo de reflexão e aprendizado, que deveria ser contínuo, certamente é imperativo para o desenho estruturas de governo e de procedimentos de coordenação eficientes e inovadores. Cabe ainda acrescentar a premissa básica de que a intervenção regulatória contemporânea deve ser baseada em evidências técnicas colhidas em procedimentos juridicamente estruturados, tal como se observou no bom exemplo do processo de certificação de vacinas contra o Covid-19, conduzido tanto pela Anvisa quanto por outras agências certificadoras de referência.

Com esse olhar, o presente artigo tratará de algumas questões de governança regulatória que possuem especial impacto na efetividade das políticas de investimento em infraestrutura, com especial atenção para o caráter policêntrico do Estado Regulador contemporâneo, e ainda, para as características de progressiva integração das sociedades e dos mercados. Será também abordada a Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável, que oferece um exemplo de diretrizes para políticas públicas que demandam, para sua efetivação, uma atuação em rede de diferentes níveis de governo e de distintas agências especializadas.

Não há dúvida de que a ampliação de investimentos em infraestrutura, em áreas como transportes, energia e saneamento constitui um dos pilares para o desenvolvimento econômico e a redução da pobreza.[2] E a eficiência das políticas nesses setores é especialmente relevante em países em desenvolvimento, haja vista a relação entre a disponibilidade de infraestruturas de grande porte (rodovias, sistemas de geração e transmissão de energia, rede de saneamento) com uma elevação do bem-estar social,[3] além de impactos na concretização de direitos fundamentais.[4] Soma-se ao objetivo de desenvolvimento económico a questão da sustentabilidade, de modo que seja garantido que as ações envolvidas na concretização de políticas públicas tenham conformidade com as políticas e regulações ambientais.

Mas para que as políticas e os investimentos voltados ao setor de infraestrutura tenham sucesso e sustentabilidade no tempo, aponta-se a relevância de um arcabouço regulatório dotado de coerência e previsibilidade, e de um ambiente de governança pública caracterizado pela excelência em termos gerenciais. Nessa linha, o desenho institucional e regulatório contém elementos decisivos para o êxito ou o fracasso das políticas estatais.

Em sentido contrário, as deficiências institucionais, o fardo regulatório (regulatory burden), a dispersão de responsabilidades,[5] e as falhas de regulação em geral podem levar a quadros insegurança jurídica, falta de confiança entre as partes, aumento de riscos e custos, e a diversos outros efeitos que impactam no resultado das políticas de infraestrutura. De certo modo, o ambiente "multirregulado" em que se inserem os empreendimentos de infraestrutura contém os elementos que favorecem o surgimento de tais falhas. De fato, uma característica central dos grandes projetos de infraestrutura, é justamente a submissão a um quadro complexo de atos estatais, muitos deles com alcance transversal (como o tema ambiental e a tributação), em geral a partir da atuação concomitante de várias organizações com objetivos institucionais diversos, lastreadas nas tradicionais regras de competência administrativa, e ainda, com a utilização de distintos mecanismos de intervenção.

Temos, assim, aquilo que a doutrina descreve como um Estado Regulador multinível ou policêntrico, uma espécie de subproduto da especialização burocrática. Nesse ambiente caracterizado por uma evidente fragmentação do poder regulatório,[6] vê-se um cenário que não corresponde a uma visão formal de unidade e coerência da atuação reguladora do Estado.[7] No caso brasileiro, cabe ainda somar a esse quadro os desafios inerentes a um modelo federativo. Nessa “rede regulatória”,[8] os distintos centros de decisão podem ou não atuar de modo coordenado.

O fenômeno de múltiplas incidências normativas e exercício simultâneo do poder estatal a partir de centros especializados demanda instrumentos de coordenação eficientes, sob pena de se elevar o risco de atuações descoordenadas ou sobrepostas, fatores que impactam nos custos de transação e nos custos de governo. Nesse contexto, as discussões sobre a coerência da intervenção regulatória são fundamentais para a efetividade das políticas que impactam no desenvolvimento econômico, daí a razão pela qual o tema é destacado das agendas de reforma regulatória de organizações como a OCDE.[9]

Tais considerações ajudam a compreender o desafio envolvido na consecução da Agenda 2030 de Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável, da ONU.[10] A visão de que os investimentos em infraestrutura possuem centralidade na perspectiva do desenvolvimento sustentável foi adotada expressamente na Agenda 2030, com a indicação de dezessete Metas de Desenvolvimento Sustentável, em vigor desde 1º de janeiro de 2016. Dentro da Agenda consta o objetivo de "construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização sustentável e fomentar a inovação" (ODS 9).[11] Na visão das Nações Unidas, o crescimento da produtividade e da renda, além de melhorias nos resultados em campos como educação e saúde estão claramente associados a tais investimentos.[12] Por certo, a definição institucional explícita, tal como se vê na Agenda 2030, no sentido da centralidade dos investimentos em infraestrutura, é fundamental ao oferecer um suporte formal ao processo de decisão política e de priorização administrativa ao tema.

Dois pontos merecem atenção na análise da Agenda 2030 e especificamente no ODS 9. O primeiro é a afirmação do desenvolvimento das infraestruturas como elemento fundamental para o oferecimento de bens e serviços que possuem um impacto socioeconômico relevante, a indicar as externalidades positivas associadas a tais projetos. Outro ponto a destacar é a evidente transversalidade e conexão desse ODS com diversas outras políticas. Vê-se novamente aqui a inserção das políticas públicas em um ambiente institucional fragmentado e potencialmente conflitivo.

De fato, pode-se afirmar que o atingimento dos 17 objetivos da Agenda 2030 demanda um esforço coletivo de agentes e instituições públicas e privadas, ou seja, um quadro complexo de ações que devem ser complementares e se reforçarem reciprocamente. Não faria sentido, por exemplo, uma ação dentro do Objetivo 9 (infraestrutura) que anulasse ou que fosse simplesmente contrária ao Objetivo 13 ("tomar medidas urgentes para combater as alterações climáticas e seus impactos"), o que a rigor parece ser uma premissa válida para todos os objetivos. Ou ainda, que os investimentos em infraestrutura ignorassem seus efeitos em termos de desenvolvimento social e redução de desigualdades.

Enfim, coloca-se aqui a necessidade de um amplo alinhamento de políticas públicas usualmente sujeitas a um cenário institucional pautado por uma lógica de especialização e por regras de competência muitas vezes indiferentes a processos claros e ágeis de cooperação. Não é sem razão que a questão da coordenação e coerência como pressupostos para a concretização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável é explicitamente tratada pela OCDE, que propõe abordagem específica para enfrentar o problema, a partir de um modelo de "construção de blocos de coerência."[13] Indo além de um conceito geral e intuitivo de "coerência", a OCDE oferece uma base metodológica e critérios para lhe dar concretude e operacionalidade.

Assim, a análise integral das ações que compõem a Agenda 2030 evidencia o desafio de governança e de coordenação institucional ínsito ao processo de concretização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, considerados "universais, integrados e indivisíveis".[14] Com efeito, ao se analisar o rol de 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), a começar pela erradicação da pobreza (1), e outros como a igualdade de gênero (5), e o trabalho digno e crescimento econômico (8), por certo não cabe uma leitura que os posicione de forma isolada ou hierárquica. Ao contrário, não é difícil estabelecer as correlações existentes, e também as eventuais sobreposições, ou ainda, as promissoras possibilidades de reforço e de realização plena de uma determinada política a partir dos resultados de outra política correlata.

Diante dessas distintas agendas, o conceito de coerência regulatória é crucial no contexto do Estado Regulador policêntrico, e pressuposto básico para se construir um ambiente de segurança e eficiência. Após décadas de desenvolvimento institucional e de conformação de organizações cada vez mais especializadas, o facto é que a implementação de políticas e regulações setoriais harmônicas e coerentes constitui um desafio próprio.

O quadro atual da regulação, no Brasil, especificamente no âmbito do setor de infraestrutura, mostra uma clara evolução institucional ao longo das últimas duas décadas, que aponta para a consolidação das melhores práticas regulatórias. Vale citar a própria edição da Lei 13.848, de 2019 (Lei das Agências), que oferece padrões para a organização das agências reguladoras, e a expressa adoção de boas práticas, como a análise de impacto regulatório. Entretanto, isto ainda não é o suficiente para oferecer resposta ao referido ambiente multirregulado, em que a eficiência da intervenção regulatória depende de um conjunto muito mais amplo de organizações e de instrumentos de coordenação efetivos.

Em conclusão, evidencia-se a necessidade de aprimoramento do regime regulatório brasileiro, tendo por escopo a construção de um modelo pautado pela garantia da efetiva coerência regulatória, o que só será alcançado com uma arquitetura institucional adequada e com procedimentos e métodos claros de prevenção e superação de impasses. Para reflexão, destacamos alguns pontos que merecem uma especial atenção: 1) a necessidade de mecanismos  mapeamento célere – e de modo preventivo — dos elementos de sobreposição ou conflito entre as distintas organizações com atribuições regulatórias no setor infraestrutura, nos diferentes níveis de governo; 2) uma política permanente de gestão do estoque regulatório; 3) a construção de métodos de gestão comprometidos com o ideal de coerência, valendo aqui o exemplo dos "blocos de coerência" propostos pela OCDE; 4) a adoção de procedimentos céleres de superação das falhas de coerência identificadas a posteriori. Tudo isto sem prejuízo da necessária proteção da autonomia das agências reguladoras, da garantia de uma intervenção regulatória baseada em evidências e, por fim, do objetivo permanente de concretizar os direitos fundamentais ínsitos a uma agenda de desenvolvimento sustentável.


Referências bibliográficas
[1] Vide ainda: MENDES, Gilmar, AFONSO, José Roberto, CORREIA, Atalá, e FERNANDES, Victor (2022), Os Desafios do Desenvolvimento e o Futuro da Regulação Estatal,  ConJur – Brasil-Europa: Os desenvolvimento e o futuro da regulação estatal

[2] OCDE, Fostering Investment in Infrastructure (2015). No mesmo sentido o Banco Mundial: https://www.worldbank.org/en/topic/financialsector/brief/infrastructure-finance.

[3] SAMUELSON, Paul A., e NORDHAUS, William D., Economia, 12ª. Edição, trad. Manuel F. C. Mira Godinho, McGraw-Hill, Lisboa, 1988, p.1019.

[4] GASIOLA, Gustavo Gil, Regulação de infraestrutura por contrato, Revista Digital de Direito Administrativo da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, v. 2, n. 1, 2015, p. 240.

[5] CARR (Centre for Analysis of Risk and Regulation), LSE (London School of Economics and Political Science), Relatório sobre infraestrutura logística no Brasil, 2017, 33 e ss, disponível em: http://www.lse.ac.uk/accounting/carr/research/regulation-of-logistics-infrastructures-in-brazil?from_serp=1

[6] BLACK (2001), Decentring Regulation: Understanding the Role of Regulation and Self-Regulation in a 'Post-Regulatory' World. Current Legal Problems, 108.

[7] CARR (Centre for Analysis of Risk and Regulation), LSE (London School of Economics and Political Science), Relatório sobre infraestrutura logística no Brasil, 2017, Disponível em: http://www.lse.ac.uk/accounting/carr/research/regulation-of-logistics-infrastructures-in-brazil?from_serp=1, 33 e ss.

[8] BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin, Understanding Regulation, Oxford, Second Edition, 2012, 373.

[12] Nos termos adotados pela própria ONU: “Investments in infrastructure – transport, irrigation, energy and information and communication technology – are crucial to achieving sustainable development and empowering communities in many countries. It has long been recognized that growth in productivity and incomes, and improvements in health and education outcomes require investment in infrastructure.” (https://www.un.org/sustainabledevelopment/development-agenda/)

[13] OCDE, Policy Coherence for Sustainable Development (2019), 71 e ss.

[14] OCDE (2019), 74.

Autores

  • é pesquisador no IDP. Procurador federal, exerceu os cargos de PGF, procurador-geral da Anac, consultor jurídico do Ministério da Defesa, consultor da União e assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal.

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