Opinião

Ketanji Brown Jackson e o efeito dissuasório das penas

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7 de abril de 2022, 19h02

"Quando alguém, um pobre diabo tão bom como os outros, comete um erro do tamanho de um dedo, arrumam-lhe com um castigo do tamanho de um braço, sem prestar atenção à pessoa que punem! E quem tem o direito de punir, sem tomar em consideração a pessoa? […] Proteger a sociedade é tão quimérico como querer corrigir o culpado […]. Como proteger um louco que arranha a própria cara com as unhas? Esse louco é a sociedade; arroga-se o direito de proteger o que, na sua demência, ela própria destrói continuamente" [1].

O excerto acima transcrito é parte de um diálogo entre dois personagens do romance alemão "O Processo Maurizius", do autor Jakob Wasserman, publicado em 1928. No debate em questão, um preso e o seu guarda discutem sobre a proporcionalidade das condenações e as funções da pena.

Quase um século após a publicação do dito romance, em 22 de março de 2022, esse tema foi reavivado, durante a sabatina daquela que pode vir a ser a primeira mulher negra a ocupar um assento na Suprema Corte dos Estados Unidos, a juíza Ketanji Brown Jackson.

Perante o Senado estadunidense, a magistrada foi questionada sobre a relação entre a severidade das sentenças e sua capacidade dissuasória (deterrence theory of punishment): a certeza de captura e de uma dura punição seriam capazes de reduzir os índices de criminalidade?

O senador Tom Cotton argumentou que nos anos de 2019 foram cometidos quase 16 mil assassinatos nos Estados Unidos, e em 2020 foram quase 20 mil, o que representa um aumento de 25% no intervalo de um ano, enquanto a população carcerária sofreu uma redução de 14% no mesmo período. Segundo o senador, apesar de parte dessa redução decorrer da política adotada durante a pandemia, ela também seria devida à redução no número de persecuções e ao abrandamento das sentenças [2].

A juíza redarguiu tais argumentos, ponderando que, embora as respostas envolvendo esse tema não sejam simples, para alguns teóricos, um dos objetivos da pena seria sim o de dissuadir novas práticas criminosas.

Existe mais de um modelo de responder ao cometimento de uma infração. O modelo dissuasório clássico é aquele focado na ideia de retribuição, na imposição da pena como forma de retribuir o mal causado e de evitar o cometimento de novos delitos. Já o modelo ressocializador, por exemplo, tem por fito a reintegração do delinquente à sociedade [3].

O National Institute of Justice (NIJ) — agência integrante do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, voltada à pesquisa e à compreensão dos crimes e das demais questões jurídicas através da ciência — estabelece que os envolvidos na política de sentenciamento devem observar as duas finalidades primordiais das sentenças condenatórias, quais sejam: 1) punir o agente, 2) torná-lo incapaz de cometer novos delitos durante o período de encarceramento [4].

No entanto, apesar de a diretriz do National Institute of Justice ser voltada à punição dos infratores, atrelar os índices de criminalidade apenas à severidade das sentenças seria um enfoque simplista. Não à toa, o jurista e magistrado brasileiro, Guilherme de Souza Nucci, explica que a Criminologia — ciência voltada ao estudo do crime como fenômeno social, e do criminoso como agente do ato ilícito — envolve não só a sociologia criminal (estudando as causas sociais da criminalidade), como também a psicologia criminal (voltada ao psiquismo do delinquente) e a antropologia criminal (estudo da constituição física e psíquica do agente infrator) [5].

O próprio National Institute of Justice, com a colaboração do professor Daniel S. Nagin, após extensas pesquisas, chegaram à conclusão de que tanto o encarceramento como a severidade das punições são medidas que, por si sós, são ineficazes no combate à criminalidade [6].

Para a doutrina penal contemporânea, especialmente para os adeptos da teoria da prevenção geral positiva, a pena consistiria, primeiramente num instrumento de integração social, seguindo o modelo ressocializador, enquanto o viés dissuasório estaria em um plano secundário [7].

Nesse mesmo sentido, a Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu artigo 5, destaca que a finalidade essencial das penas privativas de liberdade deve ser a reforma e a readaptação social dos condenados [8].

De acordo com Zaffaroni, para aqueles que entendem a coerção penal como forma de prover a segurança jurídica, a pena objetiva prevenir futuras condutas delitivas. Para alguns doutrinadores, isso seria atingido por meio da prevenção geral — que se dirige a toda a sociedade, mediante uma retribuição exemplar —; para outros, seria alcançado através da prevenção especial — que age especificamente sobre o infrator — [9].

No Brasil, apesar de o Código Penal ser silente, a doutrina entende que a pena é polifuncional, contendo tríplice finalidade: retributiva, preventiva e reeducativa [10].

A finalidade preventiva subdivide-se em preventiva geral e preventiva especial, as quais, por sua vez, se subdividem em positiva e negativa. A função preventiva geral positiva — que para alguns é a função primordial da pena — consiste em reafirmar a validade da norma perante toda a sociedade [11], ou o que Francesco Carrara chamou de "restabelecimento da ordem externa" [12]. Já a prevenção geral negativa seria aquela trazida pelo senador Cotton, pautada no modelo dissuasório: inibir a sociedade de praticar crimes.

Se analisada sob a perspectiva do funcionalismo penal, a prevenção geral positiva pode adquirir contornos diversos, de acordo com a vertente funcionalista em que se baseia a análise. Para os adeptos do funcionalismo teleológico, a prevenção geral positiva consistiria numa reafirmação da eficácia do ordenamento jurídico perante a sociedade. Ou seja, leis eficazes assegurariam que os bens jurídicos estariam devidamente protegidos. Por outro lado, para aqueles ligados ao funcionalismo radical, a prevenção geral positiva seria uma forma de assegurar a vigência do sistema em si, já que, segundo eles, se não houvesse resposta às violações das regras, a eficácia das normas restaria comprometida [13].

No entanto, como ressalva Paulo Queiroz, quando da elaboração da sentença, não se deve ter a pretensão de fazer dessa decisão um exemplo para outros possíveis infratores em nome da prevenção geral de futuros delitos [14]. Do contrário, haveria o risco de violação ao princípio da proporcionalidade das penas. Ou, como escreveu Jakob Wasserman: "quem tem o direito de punir, sem tomar em consideração a pessoa? […] Proteger a sociedade é tão quimérico como querer corrigir o culpado" [15].

Nessa toada, questiona Zaffaroni: pode o Direito Penal ser um instrumento de vingança, alimentando o irracionalismo vingativo a fim de obter o controle social? A resposta, destaca o jurista argentino, vai depender do Direito Penal adotado pelo ordenamento. Em um Estado de Direito, por exemplo, o Direito Penal é munido de uma aspiração ética e libertadora. Em contrapartida, um Estado autoritário não terá inconveniente algum em admitir tais meios [16].

Isso porque, ainda segundo o doutrinador portenho, Estados autoritários tendem a utilizar o Direito Penal como um instrumento de dominação [17]. Perspectiva dominadora esta, vale ressaltar, que muito se assemelha à ideologia de Raskólnikov, protagonista de outro romance, o célebre "Crime e Castigo". Afinal, para esse personagem, uma vida seria um preço barato a ser pago em troca da salvação de milhares de outras vidas do apodrecimento e da desagregação [18].

Além disso, também é importante destacar que, se analisada a prevenção geral em conjunto com a seletividade do sistema penal, verifica-se que há o risco de que a política de prevenção seja utilizada como um instrumento de contenção voltado apenas às camadas sociais mais marginalizadas [19].

Por fim, passando à análise da prevenção especial — a qual também se subdivide em positiva e negativa —, é importante destacar que esta é direcionada especificamente ao delinquente, e não à sociedade como um todo. A esfera negativa da prevenção especial possui finalidade retributiva, objetivando punir o infrator pelo mal causado, a fim de que ele não se torne um reincidente. Já a prevenção especial positiva é impelida da finalidade reeducativa, e tem por fito a ressocialização do criminoso, com o intuito de reintegrá-lo à sociedade [20].

Sobre o tema, Zaffaroni ainda destaca que, sendo a criminalização fruto de um processo seletivo, como o é, a prevenção especial deve ser dotada de plasticidade, adequando-se a cada situação. Cada crime é uma forma de manifestar um conflito, e cada conflito tem suas particularidades. Com isso, a prevenção especial não pode ser rígida, deve consistir numa pluralidade de objetivos concretos, com o intuito de diminuir a vulnerabilidade do infrator, seja mediante a educação, o trabalho, ou a organização da vida familiar, por exemplo [21].

Em "O Processo Maurizius", Wasserman questiona: "Como proteger um louco que arranha a própria cara com as unhas? Esse louco é a sociedade" [22]. Da análise da doutrina penal moderna, chega-se à resposta: para que haja a proteção da sociedade em Estados democráticos de direito, a pena não pode ser um fim em si próprio. E a juíza Ketanji Brown Jackson, ao expor seus argumentos com a parcimônia cara ao tema, mostrou ter chegado a esta mesma conclusão.


[1] WASSERMAN, 1975.

[2] Supreme Court Confirmation Hearing For Judge Ketanji Brown Jackson: Day 2, 2022.

[3] CUNHA, 2020.

[4] NATIONAL INSTITUTE OF JUSTICE, 2016.

[5] NUCCI, 2020.

[6] NATIONAL INSTITUTE OF JUSTICE, op. cit.

[7] GARCÍA-PABLOS; GOMES, 2007.

[8] ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969.

[9] ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006.

[10] CUNHA, op. cit.

[11] Ibidem.

[12] CARRARA, 1996.

[13] CUNHA, op. cit.

[14] QUEIROZ, 2008.

[15] WASSERMAN, op. cit.

[16] ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006.

[17] Ibidem.

[18] DOSTOIÉVSKI, 2019.

[19] ZAFFARONI; PIERANGELI, op.cit.

[20] CUNHA, op. cit.

[21] ZAFFARONI; PIERANGELI, op. cit.

[22] WASSERMAN, op. cit.

 

Referências bibliográficas

CARRARA, Francesco. Programa de derecho criminal. Bogotá: Imprenta Temis, 1996. Traducción de José J. Ortega Torres y Jorge Guerrero.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte geral. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor; Crime e castigo. 8. Ed. São Paulo: Editora 34, 2019. Tradução de Paulo Bezerra.

GARCÍA-PABLOS, Antonio; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. Disponível em: https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/106839/dois-modelos-teoricos-de-prevencao-do-delito-o-modelo-classico-e-o-neoclassicoexposicao-e-reflexoes-criticas-parte-iv. Acesso em 31/3/2022.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos, 1969. San José, Costa Rica. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 31/3/2022.

QUEIROZ, Paulo. Direito Penal — Parte Geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

Supreme Court Confirmation Hearing For Judge Ketanji Brown Jackson: Day 2. ABC News Live, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com /watch?v=AiPGVuNsid4. Acesso em: 22/3/ 2022.

UNITED STATES OF AMERICA. National Institute Of Justice. Department of Justice. Five things about deterrence. 2016. Disponível em: https://nij.ojp.gov/topics/articles/five-things-about-deterrence. Acesso em: 31/3/2022.

WASSERMAN, Jakob. O processo Maurizius. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1975. Tradução de Octavio de Faria e Adonias Filho.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: volume 1 – parte geral. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

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