Opinião

O projeto de lei no Senado que regula criptoativos

Autores

  • Leonardo Braga Moura

    é sócio da Área de Propriedade Intelectual e Direito Digital de Silveiro Advogados mestre em Direito da Propriedade Intelectual e das Novas Tecnologias pela Universidad Autonóma de Madrid especialista em Direito Empresarial pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Data Protection Officer (ECPC-B DPO) certificado pelo European Centre on Privacy and Cybersecurity da Maastricht University professor e tutor no programa de ensino à distância da Academia da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi) e do curso de pós-graduação em Direito Digital do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS)/Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

  • Rafael Canterji

    é sócio da Área Criminal de Silveiro Advogados professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e conselheiro federal da OAB.

  • Yan Viegas Silva

    é sócio da área de Direito Societário do escritório Silveiro Advogados.

4 de abril de 2022, 17h13

É fato que criptomoedas, blockchain, tokens, DeFi e NFTs, conjuntamente denominados criptoativos [1], estão entre os principais assuntos da atualidade. 

Afinal, a proposta de um mercado eletrônico descentralizado, sem a necessidade de intervenção de instituições financeiras, agentes custodiantes e, principalmente, independente de governos e políticas estatais — pontos convergentes entre tais conceitos , realmente merece sonora repercussão na sociedade. 

Desde a primeira transação ocorrida em 22 de maio de 2010  a compra de duas pizzas por 10.000 bitcoins nos Estados Unidos  este admirável mercado novo e sua expressiva valorização nos últimos anos, têm atraído cada vez mais investidores, desde inexperientes e destemidas pessoas físicas até poderosos conglomerados multinacionais e fundos de investimentos renomados.

Como é normal ocorrer com mercados novos, promissores, e ainda pouco regulados, houve  e ainda há  muita desconfiança por parte da sociedade em relação ao universo dos criptoativos, eis que era frequentemente associada à aplicação de golpes e fraudes (os chamados scams), bem como à prática de crimes sofisticados [2]. Não obstante este e outros desafios enfrentados pela classe dos criptoativos  incluindo sua extraordinária volatilidade, a oposição por parte de poderosas esferas tradicionais e todos os riscos inerentes a inovações e tecnologias disruptivas , hoje a economia global não seria a mesma sem a circulação destes ativos digitais. Nesse sentido, vale referir o caso de El Salvador, que se tornou o primeiro país a adotar o Bitcoin como moeda oficial em junho de 2021, evento que também reforça o preceito de que uma economia descentralizada não significa, necessariamente, uma economia sem regulação. 

Nessa lógica, diante da necessidade de o Estado oferecer balizas mínimas regulatórias a fim de conferir maior segurança jurídica às operações e mecanismos de responsabilidade por danos surgidos desse novo mercado, o Congresso Nacional brasileiro deu o primeiro passo em direção à regulação dos criptoativos ao apresentar as Propostas Legislativas nºs 3.825/2019, 3.949/2019 e 4.207/2020.  

E mais recentemente, mais um importante passo foi dado no dia 22/02/2022, quando a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado Federal aprovou o texto substitutivo do PL 3.825/2019 [3]. A nova redação aprovada consolida as 3 (três) propostas já apresentadas e busca regular o mercado de criptoativos no Brasil [4]. Dentre os principais aspectos do projeto de lei proposto, ressaltamos os seguintes: 

a) Estabelecimento de conceito de ativo virtual;
b) Definição de prestadoras de serviços de ativos virtuais; 
c) Apresentação de diretrizes para prestação de serviço de serviços virtuais; 
d) Responsabilidades e deveres ao Poder Executivo; 
e) Possibilidade de procedimento simplificado para registro das prestadoras e possibilidade de prestação de serviços de ativos virtuais de forma exclusiva ou conjunta por instituições já autorizadas pelo Banco Central; 
f) Manutenção das prestadoras de serviços de ativos virtuais em exercício no país desde que se adequem às condições estabelecidas pela entidade responsável; 
g) Adequações às Leis nºs 7.492/86 (crimes contra o Sistema Financeiro Nacional), 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e 9.613/98 (crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores); 
h) Criação de novo tipo penal de fraude em prestação de serviços de ativos virtuais;
i) Redução de alíquota de tributos relacionados à aquisição de máquinas e ferramentas computacionais para utilização nas atividades de processamento, mineração e preservação de ativos virtuais.

Em relação às definições apresentadas pelo projeto de lei, embora louvável a atitude do legislador em buscar definir tais conceitos, há certa precariedade nas definições apresentadas. Isso porque referido texto delegou ao Poder Executivo a competência para estabelecer os ativos financeiros regulados por esta Lei e para definir e autorizar outros serviços, direta ou indiretamente, relacionados à atividade de prestação de serviços de ativos virtuais. Em outras palavras, as exceções e ressalvas contidas no projeto de lei demonstram o receio do legislador em definir conceitos sem prejudicar ou afetar as legislações já existentes, deixando de criar uma hipótese legal geral e aplicável ao ordenamento jurídico e delegando tal dever ao Poder Executivo. 

Ademais, vale ressaltar que algumas das diretrizes estabelecidas, embora sensatas, já se encontram transcritas como princípios e garantias na Constituição Federal de 1988, como o caso da proteção do consumidor, da livre iniciativa, da livre concorrência (artigo 170, IV e V, da CF/88) e, mais recentemente, da proteção de dados pessoais (artigo 5º, LXXIX, da CF/88). Portanto, se mostra redundante a inserção de tais princípios como diretrizes, visto que já devem ser respeitados por força da Carta Magna. 

Não obstante, verifica-se o acerto da proposta em prever procedimentos simplificados de autorização para este novo mercado, bem como a responsabilidade do Estado, na figura de entidade ou órgão da Administração Pública Federal a ser definida pelo Poder Executivo, para exercer a fiscalização destas empresas, incluindo o poder de cancelamento da autorização de ofício ou a pedido. A possibilidade de instituições financeiras já autorizadas pelo Banco Central do Brasil poderem prestar serviço de ativos virtuais e a manutenção das prestadoras existentes é outro acerto do referido projeto, na medida em que reduziria a barreira de entrada aos novos negócios oriundos deste novo mercado. 

Por outro lado, a criação do tipo penal de fraude em prestação de serviços de ativos virtuais no caso concreto é discutível. Parece-nos, muito mais, forma de gerar indevido aumento de pena ao estelionato. O tipo penal, espécie de estelionato sofisticado em razão do meio, recebeu, no projeto, cominação de pena absolutamente desproporcional. A pena do estelionato, que varia de um a cinco anos, passou a ser, segundo projeto, de quatro a oito anos, enquanto a pena mínima prevista nos crimes de lavagem de dinheiro e gestão fraudulenta é de três anos.

Como consequência desta proposta, restaria inviabilizada a suspensão condicional do processo, tal qual no estelionato, e a realização do acordo de não persecução penal. Trata-se, portanto, de uma demonstração do rigor penal legislativo que coloca em risco o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente tutelado. 

Por último, a proposta legislativa também prevê a redução a zero das alíquota da contribuição ao PIS, da Cofins, do IPI e do Imposto de Importação, quando incidentes na aquisição de máquinas e ferramentas computacionais (hardware e software) para utilização nas atividades de processamento, mineração e preservação de ativos virtuais –  mediante a condição de utilização de energia proveniente de fontes renováveis está em linha com a relevante preocupação global sobre os impactos ambientais da mineração não sustentável de criptoativos.

Desse modo, embora alguns especialistas critiquem o texto por entenderem que não está adequado às recentes inovações do setor de criptomoedas, como os NFTs, stablecoins e DeFi, é importante destacar a relevância desta proposta legislativa como passo inicial em direção à regulação deste novo mercado. O que se espera, em verdade, é que a aparente flexibilidade normativa estabelecida pelo projeto de lei permita ao Poder Executivo a adaptação e adequação da lei às novas tecnologias que surgirão. Essa possibilidade de adaptação será fundamental para censurar e regular práticas futuras, cujos riscos sequer são cogitados pelo mercado e seus agentes.

Portanto, espera-se que a relevância e urgência que justificam o referido projeto não fiquem apenas no papel e que, o quanto antes, o mercado possa ver a regulamentação de forma concreta em seu cotidiano com o objetivo de assegurar proteção e regulação aos investidores e prestadores de serviços de criptoativos. 

[1] O conceito de criptoativo segundo a Receita Federal é "a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal" (Instrução Normativa RFB nº 1888 de 03/05/2019).

[2] No Brasil, podemos citar as diversas fases e alvos das Operações Madoff, Egypto e Kryptos deflagradas pela Polícia Federal.

[3] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei n° 3825, de 2019. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137512. Acesso em: 24 de fev. 2022.

[4] AGÊNCIA SENADO. CAE aprova regulamentação de criptomoedas. 22.02.2022. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/02/22/reconhecimento-e-regras-para-criptomoedas-avancam-na-cae. Acesso em: 23 de fev. 2022.

Autores

  • é sócio da área de Propriedade Intelectual e Direito Digital do escritório Silveiro Advogados, mestre em Direito da Propriedade Intelectual e das Novas Tecnologias pela Universidad Autonóma de Madrid, especialista em Direito Empresarial pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e professor.

  • é sócio da Área Criminal de Silveiro Advogados, professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e conselheiro federal da OAB.

  • é sócio da área de Resolução de Conflitos do escritório Silveiro Advogados e especializando em Direito dos Negócios pela UFRGS.

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