Opinião

Para UFPB, vaga por cota é do reitor; dá-la ao pobre é discriminatório

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4 de abril de 2022, 10h07

Volto ao assunto do reitor da UFPB que, por cotas, ingressou na terceira graduação. Pelo andar da prosa, uma vaga em universidade pública não deve ter custo. É grátis. E a viúva — federal — deve estar com as burras cheias, sobram vagas, os pobres estão todos na universidade e o reitor, "isonomicamente", abocanha uma terceira graduação (escrevi sobre isso aqui).

Spacca
O Ministério Público Federal (ver aqui reportagem da ConJur) fez uma recomendação para que a Federal da Paraíba revisse o ato. Há um jovem pobre da Bahia (ler aqui) que se preparava para entrar nessa vaga. Um na Bahia e milhões espalhados pelo Brasil…!

Mas a procuradoria federal da UFPB não aproveitou a chance que o MPF lhe deu. Preferiu defender a vaga do reitor. Disse que (ver aqui), se a recomendação do MPF fosse atendida, criariam odioso tratamento discriminatório.

Deixa ver se eu entendi: o reitor pega uma vaga por cota para fazer sua terceira graduação, um jovem pobre da Bahia fica de fora (e qualquer outra pessoa ainda sem graduação) e a procuradoria — também paga com dinheiro público — diz que, se o reitor perdesse a sua terceira graduação, haveria odiosa discriminação? Sim, mutatis, mutandis, é disso que trata a manifestação da procuradoria. É uma isonomia às avessas. Isonomia não é dar ao rico a sua riqueza e ao pobre a sua pobreza — só para registro.

O que parece que não ter sido entendido é aquilo que Anatole France ironizava.

"A majestosa igualdade das leis, que proíbe tanto o rico como o pobre de dormir sob as pontes, de mendigar nas ruas e de roubar pão."

Fica a nítida impressão de que a defesa da UFPB — que inclusive cita texto meu — se baseia em uma coisa que Ferrajoli chama de paleojuspositivismo — o velho textualismo primitivo — em que vigência e validade estão coladas, são a mesma coisa. Ora, é disso que se extrai a caricatura do "proibido cães na plataforma", pelo qual o textualista diria que "então é permitido levar ursos"… porque o que não é proibido é permitido. Não me parece que um órgão público — falo da procuradoria da UFPB, que possui excelentes quadros jurídicos — que se diz autônomo (como a AGU que diz "sou advocacia de Estado e não de governo!") deva fazer esse tipo de interpretação, comportando-se como "advocacia de partido".

Da Colômbia vem um bom exemplo. Em sua Constituição (artigo 126), está posto que juízes e funcionários públicos em geral não podem contratar-nomear familiares das pessoas envolvidas em sua nomeação. O que alguns magistrados fizeram? Contrataram as próprias pessoas envolvidas. Magistrados da Corte Suprema de Justiça designaram ex-juízes que haviam participado dos seus processos de nomeação para cargos no alto escalão do judiciário. Argumento: era (só) proibido contratar parentes dos juízes, mas não os próprios. Genial, não? Textualismo primitivo e ingênuo (quer dizer, ingênuo, mas não tanto!). O Conselho de Estado precisou declarar o óbvio: a nulidade dessa prática.[1] O caso colombiano se parece muito com o caso das cotas do reitor. Não há proibição expressa, diz a procuradoria. Os juízes colombianos também diziam isso…!

Pergunto de novo: o que é odiosa discriminação? O reitor, se perdesse sua vaga, seria discriminado? É isso?

Meus argumentos já foram postos dias atrás. Não vou repeti-los. Já ninguém lê textos de mais de quinze linhas. Apelo, aqui, aos sentimentos republicanos dos agentes envolvidos. Inclusive do reitor.  

De todo modo, correndo o risco de "textão", não resisto à seguinte comparação. Se está escrito que cada faminto terá direito a um prato de comida em um determinado bairro, por qual razão alguém poderá furar a fila e reivindicar dois pratos? Ou três? Ah, dirão os "paleojus": é possível porque não está proibido buscar o segundo prato. É isso? Então, quem impedir o sujeito que já comeu um prato de buscar mais um ou dois pratos estará fazendo "odiosa discriminação" do gajo, enquanto a filam por comida dobra o quarteirão?

Lembro do caso Marbury v. Madison (1803), conhecidíssimo de todos. Não estava proibido na Constituição que a Suprema Corte apreciasse recursos. Pois é. Na Colômbia também não estava proibido que juízes… E a lei brasileira não proíbe que um cotista reivindique a segunda ou terceira vaga… É que o direito é um fenômeno bem mais complexo que fazer um jogo "lego". 

Mas, mesmo assim, vamos lá: mesmo que fosse possível uma segunda ou terceira graduação por cotas (vejam, dinheiro público!) para a mesma pessoa, por si só essa lei já careceria de uma análise à luz da jurisdição constitucional, pela simples razão de que existem milhares ou milhões de pessoas sem nenhuma graduação. Essa lei seria inconstitucional.

De mais a mais, de qualquer maneira não poderia ser o reitor da própria Universidade o beneficiado desse privilégio (inconstitucional, por óbvio) — pela simples questão que haveria conflito de interesses. Se pode cursar mais de uma graduação pelo mesmo tipo de cota utilizada na primeira, então, por óbvio, a preferência — porque é dinheiro público — deverá ser dada, em edital universal, para quem jamais cursou uma universidade. Aqui, sim, para não se fazer uma odiosa discriminação.

Direito é um sistema de regras e princípios. E, fundamentalmente, o direito deve ser aplicado por princípio. Que é arché. Que fundamenta. Que está no início de tudo. D’onde ausência de princípio é anarché.


[1]  Ver nesse sentido o livro A Discricionariedade nos Sistemas Jurídicos Contemporâneos — Juspodivm, coletânea que ajudei a organizar.

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