Opinião

Álvaro César dos Reis não é o autor do crime do Castelinho da Rua Apa

Autor

  • Marcus Rogério Oliveira dos Santos

    é auditor fiscal tributário do município de São Paulo professor universitário e de cursos preparatórios para concursos públicos na área fiscal e mestre em Direito Tributário pela FGV Direito-SP e em Engenharia de Estruturas pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

2 de abril de 2022, 12h19

No dia 12 de maio de 2022, o crime do "Castelinho da Rua Apa" estará fazendo 85 anos, no qual três familiares foram encontrados mortos, vítimas de disparos de arma de fogo: a mãe, dona Maria Cândida Guimarães Reis, e seus dois filhos, Armando e Álvaro César dos Reis, ambos advogados formados pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em 1920. O castelinho, edificação existente até hoje, era o local onde residia a anciã e onde funcionava o escritório de advocacia dos irmãos. Álvaro era o gestor dos bens da família.

Reprodução
Castelinho, que fica no cruzamento da rua Apa com a avenida São João, na altura do elevado João Goulart (Minhocão), região central de São Paulo, foi reformadoReprodução

A conclusão da autoridade que, na época, presidiu a investigação apontou como autor da tragédia um dos filhos, Álvaro, alegando que ele estava obcecado em razão de um suposto investimento expressivo e arriscado que estaria causando a ruína patrimonial da família. Ocorre que nem a acusação do crime e sequer a sua justificativa podem ser fundamentadas pelo contexto probatório. Na leitura dos jornais [1], ficou evidente que tal acusação derivou do depoimento de pessoas que estiveram no castelinho na noite do crime, enquanto o Laboratório de Polícia Technica realizava os seus trabalhos de registrar e analisar os elementos da cena do crime. Tal acusação sequer encontra respaldo nos elementos objetivos que foram registrados por essa autoridade.

Houve ainda uma contradição entre o Laboratório e o Gabinete Médico Legal: o primeiro acusou Álvaro como autor dos disparos. O segundo, Armando. Tal divergência perdura até os dias de hoje, pois a certidão de óbito de Armando indica sua morte por suicídio. Mas uma pergunta deve ser respondida: qual a relação entre a autoria do crime e o suicídio declarado no registro? A resposta demonstra que a premissa adotada tanto pelo laboratório, quanto pelo gabinete, baseou-se nos depoimentos dos empregados da casa, os quais alegaram não ter visto a entrada de pessoa estranha, além dos dois irmãos que, na fatídica noite, chegaram após o término do jantar de dona Candinha. Assim, os dois órgãos partiram da premissa de que não havia outra pessoa presente no castelinho na noite em que o crime ocorreu. Logo, o familiar que supostamente disparou nos outros dois deveria necessariamente, dentro desta premissa, ter se suicidado, pois seu corpo foi encontrado com lesões decorrentes de disparo de arma de fogo. E o suicídio estava relacionado com as zonas de chamuscamento e de esfumaçamento nos corpos e nas roupas dos dois irmãos, fato que constituiu a contradição entre os dois órgãos. Assim, aquele que tivesse sinais de disparo a curtíssima distância seria o autor da tragédia. Uma conclusão incorreta que partiu de uma premissa equivocada. Outras hipóteses deveriam ter sido contempladas e analisadas, como a presença de uma quarta pessoa cuja entrada não foi vista pelos empregados da casa, conforme foi cogitado na notícia do jornal Correio Paulistano [2], na qual consta a suspeita no texto que reportou o crime.

Ocorre que o laudo elaborado pelo laboratório foi concluído somente em março de 1938 e a justificativa do extenso prazo para a sua conclusão foi a falta da munição parabellum da pistola Mauser C 96, de calibre 9 mm, da marca S 2 18, para a realização dos disparos de ensaio para apurar as distâncias dos tiros em Álvaro e em Armando, conforme o que foi relatado no próprio documento. Por que, em entrevista concedida a um jornal [3] no dia seguinte ao crime, a autoridade que presidiu a investigação acusou Álvaro antes que esses testes fossem realizados? Ocorre que a documentação correspondente a esses tiros de ensaio sequer foi juntada ao laudo, o que constitui uma lacuna relevante.

Quanto aos elementos que foram utilizados para acusar Álvaro, há as seguintes considerações: seu suposto estado de neurastenia, em razão de uma iminente ruína patrimonial decorrente de seu "investimento arriscado" sequer foi atestado por médico algum; esse empreendimento, denominado Palácio do Gelo, conforme pesquisa realizada por KIEHL [4], permite a conclusão de que ele não tinha potencial de causar qualquer abalo patrimonial na família Guimarães Reis: a uma, porque tratava-se de uma sociedade de responsabilidade limitada, modelo societário que, como o próprio nome diz, limita o risco dos sócios; a duas, porque a parte relativa à quota de Álvaro correspondia à somatória dos valores que os dois irmãos tinham em espécie em suas carteiras na noite do crime [5] (cinco contos de réis). O diretor desse empreendimento havia feito um comunicado que saiu em um jornal no dia seguinte ao crime [6] afirmando que a participação de Álvaro seria incapaz de produzir ruína alguma no patrimônio da família Guimarães Reis, mas as autoridades não consideraram essa declaração no andamento das investigações.

Não havendo qualquer ameaça ao patrimônio da família, como justificar o suposto estado neurastênico de Álvaro? Há ainda a informação de que Álvaro, na noite do crime, estava com sua namorada, dona Baby, e não tinha intenção alguma em se dirigir ao Castelinho, tendo feito isso após receber um telefonema convocando-o para comparecer em seu escritório para resolver algo urgente. Além disso, a pistola Mauser C 96, a arma do crime, estava parcialmente carregada (havia seis balas, enquanto a sua capacidade era dez). Não é essa a conduta esperada daquele que quer exterminar seus familiares.

Após a análise do laudo elaborado pelo Laboratório, não há registro de qualquer vestígio de pólvora na mão de Álvaro. Apenas um jornal da época [7] mencionou que a mão direita de Armando cheirava fortemente a pólvora. Também não há registro das digitais de nenhum dos irmãos na arma. Aqui, fazemos uma consideração: se houvesse digitais de Álvaro na arma, não implicaria necessariamente a autoria do crime, pois a arma era de sua titularidade. Sem esses elementos, como formular uma acusação contra Álvaro, imputando-lhe a autoria do crime do Castelinho?

Percebe-se ainda a manipulação dos elementos da cena do crime: no escritório, local onde foram encontrados os corpos dos dois irmãos, ocorreram quatro disparos, mas foram encontradas somente duas cápsulas ejetadas em razão dos disparos proferidos pela pistola Mauser C 96.

Todos os três familiares receberam disparos na região precordial, o que revela flagrante intento homicida. Não há qualquer lesão nas mãos, nos braços, nem nos antebraços que esboçasse qualquer movimento de defesa, o que indica uma ação rápida e inesperada de alguém provavelmente conhecido da família. O paralelismo dos corpos dos irmãos, mostrado em uma fotografia do laudo, é outro indício de ausência de confronto entre eles.

Diante dessa ausência de elementos que permitiriam imputar a autoria a Álvaro, como poderia ser afirmado que ele foi o autor da tragédia? Não pode ser feita tal acusação. Não há, no laudo do Laboratório, nem no exame cadavérico realizado pelo Gabinete, qualquer elemento que aponte Álvaro como autor do crime do Castelinho. Não há sinais de pólvora em sua mão, não há suas digitais na arma, tampouco o fato foi testmunhado por alguém.

O laudo apresentou lacunas relevantes que, algumas delas, se respondidas, refutariam a reconstituição do crime, ainda que esta seja dotada de elevado grau de generalidade, ou seja: a reconstituição do crime se sustenta somente em razão das lacunas contidas no laudo. Esse fato impede que seja formulada qualquer acusação contra Álvaro.

O crime ocorreu em 12 de maio de 1937. Há quem diga que justiça tardia não é justiça, mas a retirada de Álvaro do banco dos reús agora, quase 85 anos após o crime, é menos injusta do que a perpetuação dessa acusação. Para inocentar Álvaro não é preciso indicar outra pessoa em seu lugar, pois aquele que cometeu o crime não está mais entre nós. Basta que seja demonstrado que não há provas necessárias e suficicentes que apontem sua autoria. E de fato, não há. Então, a acusação que imputou-lhe a autoria do crime do castelinho deve ser retirada por inexistência (e não insuficiência) de provas. Sua memória deve ser restaurada na história da cidade, colocando-o na condição de vítima dessa chacina ocorrida há quase 85 anos, que vitimou além dele, sua mãe e seu irmão, como medida da mais cristalina justiça e em respeito à sua memória.


[1] Jornal Correio Paulistano, de 13 de maio de 1937 e Diário de São Paulo, de 13 de miao de 1937.

[2] Jornal Correio Paulistano, de 13 de maio de 1937.

[3] Jornal Folha da Manhã, de 14 de maio de 1937.

[4] KIEHL. Leda de Castro. O Crime do Castelinho. Mitos e Verdades. Equilíbrio Editora. Piracicaba. 2015.

[5] Jornal A Gazeta, de 13 de maio de 1937.

[6] Jornal Diário da Noite, de 13 de maio de 1937.

[7] Jornal Correio de São Paulo, de 13 de maio de 1937.

Autores

  • é auditor fiscal tributário do município de São Paulo, professor universitário e de cursos preparatórios para concursos públicos na área fiscal e mestre em Direito Tributário pela FGV Direito-SP e em Engenharia de Estruturas pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

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