Opinião

Direito Privado, sanções e guerra: apontamentos a partir das operações M&A

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1 de abril de 2022, 6h31

A instauração de um conflito armado como o que temos acompanhado recentemente na Ucrânia causa sérios  e muitas vezes irreversíveis  impactos nas relações políticas, econômicas e sociais, nos levando às mais diversas reflexões. Na seara jurídica, além do desafio do enforcement do direito internacional público e do enfrentamento da crise humanitária, que demandam a forte atuação de diplomatas e órgãos multilaterais, como a ONU (Organização das Nações Unidas) e Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), as sanções econômicas impostas contra os países inseridos no conflito geram preocupações para setores empresariais com relações comerciais diretas e indiretas com tais países, e atinge também as operações de fusões e aquisições (M&A). Além disso, há de se considerar que muitas vezes, não apenas questões e sanções puramente legais são colocadas em xeque, mas os desdobramentos reputacionais também preocupam, e, com isso, seus impactos jurídicos decorrentes dos danos que podem vir a ser experimentados por via reflexa.

As operações de M&A, que envolvem frequentemente players internacionais das mais distintas nacionalidades e jurisdições, usualmente exigem cautela e atenção adicional quando de sua análise e estruturação pelo time jurídico responsável, uma vez que podem acarretar prejuízos inesperados em decorrência de alterações de legislação aplicável ou da política econômica adotada pelo governo dos países dos players envolvidos, tudo isso com um olhar atento à preservação da imagem desses players. Assim, já é comum que as operações levem em consideração diversas instabilidades e utilizem mecanismos contratuais para mitigá-las ou antevê-las, utilizando inclusive mecanismos de equalização de operações reforçados pelos aprendizados originados da pandemia de Covid-19.

Dentre tais mecanismos, destacam-se 1) a inserção no contrato de cláusula sobre "material adverse change" ou "material adverse effect", pela qual as partes contratantes acordam sobre como o deal será tratado na ocorrência de determinados eventos que provoquem efeito material adverso na sociedade-alvo, suas atividades e/ou situação financeira, e que ocorram entre a assinatura do contrato de aquisição de participação societária e/ou investimento e o fechamento da operação, podendo inclusive tal previsão contratual incluir o desfazimento da operação sem a incidência de ônus para as partes; e 2) a inserção de cláusulas de force majeure e hardship, originárias dos contratos de comércio internacional, pelas quais se prevê gatilhos e parâmetros para a revisão contratual na ocorrência de circunstâncias externas e imprevisíveis que alterem substancialmente o equilíbrio das partes, usualmente ligadas a questões de desequilíbrio contratual e mudanças políticas, além de fatores climáticos, eventos esses que não decorrem da vontade das partes. Em ambos os casos, é costumeiro incluir uma lista elencando as hipóteses de incidência, que podem ser ou não taxativas, e que a cada ano são complementadas pelas experiências prévias dos juristas que estruturam as operações.

Por isso, tais mecanismos têm, cada vez mais, sua importância reforçada e podem ser utilizados para socorrer as partes envolvidas em contratações impactadas por fatores externos. Em 2020 enfrentou-se uma pandemia e, agora em 2022, estamos diante de uma guerra.

Assim, tais cláusulas podem  e devem  ser utilizadas para que as operações de M&A desviem ou não sejam tão diretamente impactadas por medidas políticas e econômicas impostas em decorrência de violações ao direito internacional, tal como visto na invasão da Ucrânia pela Rússia. Como constam nos noticiários dos últimos dias, foram determinadas múltiplas sanções por governos diversos (como o dos Estados Unidos e o do Japão), organizações multilaterais (como a União Europeia), organizações da sociedade civil que atingem o governo da Rússia e também por multinacionais e demais entidades privadas que optaram por restringir seus negócios em tais territórios. Tais sanções e decisões, por conseguinte, geram efeitos diretos e indiretos em várias áreas e nas relações de direito internacional privado, sobretudo na circulação de divisas e remessas internacionais de valores, com consequências globais.

Neste sentido, destaca-se que a interconectividade da economia global pode causar efeitos secundários em países que não têm diretamente interação com o conflito armado. Por exemplo, até o momento, o Brasil não impôs nenhuma sanção direta à Rússia ou russos e, em tese, operações entre partes brasileiras e russas não teriam nenhuma inferência governamental que pudesse impedir a concretização de um negócio. Mas e se empresas brasileiras, com capital americano ou japonês, estiverem envolvidas em operações ou transações com partes russas ou que se encontrem em operação em território ucraniano? Ou ainda, e se houver financiamento europeu como parte da operação? Quais seriam as implicações disso? Isso inviabilizaria a operação ou transação? Como isso pode ser resolvido? O deal necessariamente precisará ser defeito ou poderá ficar suspenso? Existe ou foi antevista pelos assessores jurídicos essa possibilidade contratualmente?

Em casos assim, a boa prática determinaria que, previamente à realização da operação, tivessem sido identificadas todas as partes envolvidas direta ou indiretamente no deal, sua nacionalidade, domicílio e/ou sede e estrutura de capital, de forma a checar todas as jurisdições envolvidas e estruturar, à luz do direito daqueles países envolvidos, a operação com vistas a mitigar tanto quanto possível os riscos jurídicos da operação. Agora, e se tudo isso tiver sido insuficiente?

Em operações nas quais os contratos e documentos vinculativos já foram firmados, sem que, no entanto, tenha ocorrido o seu fechamento, ou mesmo aquelas em que há condicionantes para o pagamento final dos valores devidos (earn-out, por exemplo), é fundamental verificar os documentos legais assinados quando da operação e averiguar a aplicação dos mecanismos acima descritos (quais sejam: cláusulas de force majeure, hardship, material adverse change, entre tantas outras), de forma a depreender qual será a melhor alternativa para o caso concreto.

E, na sua ausência, ou ainda em se considerando que eventuais "novas" e "originais" sanções podem ser criadas e/ou modificadas constantemente, há um dever de constante monitoramento por todos os envolvidos, para fins de alterações de rotas e início de novas negociações para, então, se atingir a conclusão de negócios. Bons negociadores, combinados a uma orientação jurídica adequada, podem dirimir riscos e, sobretudo em cenários incertos como o presente, são um necessário e bom investimento.

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