A ficção real

Drop down: Direito societário e desenvolvimento econômico

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30 de setembro de 2021, 12h55

No best seller "Sapiens", o historiador israelense Yuval Harari resume 200 mil anos de humanidade em 400 páginas, o que exigiu um esforço meticuloso para seleção de eventos relevantes do período, incluindo, por exemplo, a "invenção" da agricultura e o surgimento do Estado.

Um dos eventos escolhidos foi a criação do conceito jurídico da "sociedade de responsabilidade limitada", invenção do século XIX, responsável por apartar as responsabilidades patrimoniais entre as empresas e seus sócios. A sociedade limitada, diz o historiador, libertou das amarras o investimento empresarial e catapultou o desenvolvimento do mundo moderno.

Segundo o historiador, a sociedade limitada é uma "ficção jurídica" e, como tal, compartilha o mesmo desafio das demais ficções sociais: é preciso fazer as pessoas acreditarem nelas. A empreitada exige certas fórmulas e rituais típicas do direito, mas também demanda certo esforço de convencimento. Até hoje o direito societário se dedica a essa tarefa quando se põe a inventar estruturas patrimonais cada vez mais complexas.

Uma das últimas fórmulas desse contexto foi uma operação apelidada "drop down" — um modelo criado nos EUA e crescentemente utilizado no Brasil. Há quem prefira chamar de "cisão branca". Mas, ao contrário da cisão, no drop down a empresa criadora não sofre redução do capital. Há uma troca entre ativos: uma subsidiária recebe bens de uma empresa principal, e esta recebe ações ou cotas da empresa subsidiária.

O modelo traz algumas vantagens em relação à cisão convencional, uma vez que preserva intacta a estrutura patrimonial da empresa criadora, contorna a burocracia societária de uma cisão típica e permite a constituição de uma nova pessoa jurídica dedicada à gestão de determinado patrimônio. É uma solução inspiradora. Caso o grupo econômico queira promover uma determinada atividade, viabiliza a atração de novos investidores que não se interessem pelas demais operações da empresa original.

O drop down, portanto, não é uma "cisão", mas uma transformação ou readequação do patrimônio — que se mantém quantitativamente intacto. Muda apenas qualitativamente, na medida em que alguns de seus ativos, sejam físicos, financeiros ou intangíveis, são transmutados em títulos de propriedade sobre outra empresa.

O grupo econômico original, chamado "conferente", não se descapitaliza: apenas converte parte de seu capital em direitos sobre uma subsidiária, chamada a partir de então "receptora". Alguns especialistas classificam o drop down como uma modalidade de transformação vertical, semelhante à capitalização, em oposição às operações de tipo horizontal, como ocorre na cisão, quando é criada uma nova entidade em paralelo, sem subordinação patrimonial direta à empresa criadora (LOBO, 2011).

O problema das ficções jurídicas, lembre Yuval Harari, é fazer as pessoas acreditarem nelas. Nem todos os agentes econômicos estão convencidos de que o drop down difere de uma operação de cisão, ou seja, acreditam (ou assim querem crer) que ocorre no caso uma redução de capital, não uma transformação patrimonial.

Execuções fiscais, trabalhistas e outras ações de cobrança levam credores a acreditar que uma parcela do patrimônio do devedor foi "desviada" para outra pessoa jurídica, e portanto, sua titularidade sobre eles é mantida. O fato é que esse patrimônio nunca saiu da carteira da empresa original, passando simplesmente a ser representado por um título de propriedade em uma outra empresa.

A depender do ponto de vista do sujeito, a "crença" sobre o tema pode mudar. Em um parecer da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) de 2015, no qual se avaliava a possibilidade de aproveitamento de créditos tributários para exportação em regime de drawback (com uso de insumos importados), o entendimento foi de que não havia, no drop down, sucessão patrimonial: "O drop down não figura como ‘caso de sucessão legal, nos termos da legislação pertinente’, como preconiza o art. 99 da Portaria Secex nº 23/11, sendo uma operação ainda não regulamentada no ordenamento pátrio, não vemos, data maxima venia, como admitir a alteração de titular de ato concessório de drawback por equiparação com a cisão" (PGFN, 2015).

Entre especialistas, a leitura é comumente restritiva quanto ao alcance da sucessão patrimonial no drop down. Atual conselheiro da Comissão de Valores Imobiliários (CVM), o professor Otto Eduardo Fonseca Lobo concluiu que "a sucessão que as leis tributária e trabalhista estabelecem, assim como na operação de drop down, ocorre a título singular, isto é, não diz respeito à totalidade do patrimônio, mas aos elementos dele destacados. Desse modo, 'não sucede em nenhum dos demais direitos ou obrigações que compõem o patrimônio'" (LOBO, 2011).

Um trabalho relevante sobre o tema foi a dissertação de mestrado de Débora Skibinski Assunção (2015), em que analisa 17 operações de drop down realizadas no país, concluindo que na maior parte delas o objetivo era ajustar o foco operacional do empreendimento. A autora conclui que, via de regra, a motivação para a operação é o aprimoramento do funcionamento empresarial: "Em sua essência, no drop down predomina a característica do foco no core business, ou seja, a concentração de esforços na atividade principal ou atividades principais, para assim obter melhores resultados nas atividades desenvolvidas".

Ou seja, o drop down, mais do que malabarismo patrimonial, é um método eficaz para promover o desenvolvimento de atividades econômicas e facilitar o investimento produtivo. Nisso, reproduz os princípios fundadores do direito societário quando, no século XIX, começou a apartar direitos patrimoniais entre sócios e empresas.

A importância dos conceitos do direito societário para o mundo moderno foi sintetizada pelo historiador Yuval Harari no caso de "Jean", empreendedor hipotético no ramo de construção de carroças da França do século XIII: "Se uma carroça quebrasse uma semana depois de vendida, o comprador insatisfeito teria processado Jean pessoalmente. Se Jean tivesse pegado emprestado mil moedas de ouro para abrir a oficina e o negócio fracassasse, ele teria que pagar o empréstimo se desfazendo de suas posses privadas — sua casa, sua vaca, suas terras. Talvez até tivesse de vender os filhos como servos. Caso não conseguisse quitar a dívida, seria preso pelas autoridades ou escravizado pelos credores". Se vivesse nessa época, diz Harari, o empresário de hoje pensaria duas vezes antes de abrir um negócio.

Nossa situação atual passa longe da escravidão por dívida, mas o direito societário contemporâneo preserva o mesmo objetivo fixado um século atrás: definir direitos e delimitar responsabilidades. Os conceitos do direito societário podem ser "ficções jurídicas", mas seus efeitos são bem concretos: facilitam o ato de empreender e ajudam a promover o desenvolvimento econômico e social.

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