Opinião

Não existe devolução de medida provisória

Autor

  • Amauri Saad

    é doutor e mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. Master of Laws pela University of Toronto. Advogado e parecerista.

26 de setembro de 2021, 7h12

Existem duas realidades complementares no Direito Constitucional: a do texto escrito das Constituições e a das convenções. O texto escrito de uma constituição impõe um limite semântico para as discussões: estabelece aquilo que Kelsen chamava de "moldura" interpretativa, sobre a qual incide aquilo que Tércio Sampaio Ferraz Júnior identificou como o "princípio da inegabilidade dos pontos de partida". Explico-me: as disputas forenses e doutrinárias podem se dar no espaço interpretativo concedido pelo texto constitucional, sendo vedado a todos negar a existência (isto é, os limites positivos e negativos) de tal espaço. As convenções, a seu turno, existem no espaço da lacuna constitucional. São as regras não escritas que se destinam a disciplinar o cumprimento da constituição por um órgão ou poder do Estado. O exemplo clássico de convenção é o da formação dos governos na Inglaterra: em nenhum lugar está escrito que o partido com maioria no Parlamento tem o direito de formar um governo; trata-se, entretanto, de uma regra do funcionamento

do sistema tão reconhecível quanto os termos da Magna Carta. E, para que não digam que o exemplo não vale porque a Inglaterra não possui constituição escrita (excluindo-se documentos escritos esparsos), acontece o mesmo no Canadá (que, por falta de uma, tem duas constituições): nem a Constituição de 1867, nem a de 1982 (que se somou ao primeiro documento) preveem como se dá a formação dos governos, mas é pacificamente reconhecido por todos, diante de tal lacuna, que o partido com a maioria no parlamento indica o primeiro-ministro e forma o governo até as próximas eleições. Uma convenção só se afirma, repito, quando há um espaço não disciplinado pela constituição e não pode, claro, violar a própria constituição.

Essas considerações teóricas servem para que possamos entender uma prática heterodoxa que começa a se estabelecer entre nós: a da "devolução" de medidas provisórias. O primeiro caso ocorreu em 12/6/2020: Davi Alcolumbre, na qualidade de presidente do Congresso Nacional, comunicou que "devolvia" a Medida Provisória nº 929/2020, que tratava sobre o processo de nomeação de reitores de universidades federais [1]. Colocando-se de parte a viabilidade jurídica de tal ato, a sua função política era declarada: demonstrar ao presidente da república um alto grau de descontentamento do então presidente do Congresso Nacional com a medida provisória "devolvida" — em suma, como se diz na mídia, "impor uma derrota" ao chefe do Executivo.

O segundo exemplo de que se tem notícia é mais recente: no último dia 14, o senador Rodrigo Pacheco, também na qualidade de presidente do Congresso Nacional, anunciou que "devolvia" a Medida Provisória nº 1068/2021, que alterava o Marco Civil da Internet [2]. No mesmo dia, a ministra do STF Rosa Weber, deferindo a medida cautelar na ADI 6991-DF para suspender a mesma medida provisória, aparentemente validou, obiter dictum, a prática, nos seguintes termos:

"22. Assinalo, finalmente, por necessário, que a presente decisão não impede que o eminente Presidente do Congresso Nacional formule, eventualmente, juízo negativo de admissibilidade quanto à Medida Provisória 1.068/2021, extinguindo desde logo o procedimento legislativo resultante de sua edição".

Quer se chame o ato de "devolução", quer se adote o termo pretensamente mais técnico de "juízo de admissibilidade" de medida provisória, o fato é que a figura não apenas não existe na Constituição de 1988 como contraria o procedimento legislativo nela definido para a tramitação de medidas provisórias (artigo 62). E é exatamente isso que impede, entre nós, a adoção da prática, mesmo que a título de "convenção". Os argumentos que sustentam tal conclusão são os seguintes.

Primeiro, "devolver" uma medida provisória fere o direito do chefe do Executivo a ter a medida provisória por ele editada apreciada pelo Congresso Nacional. Faz parte do equilíbrio entre os poderes a divisão do trabalho na produção normativa. No caso das medidas provisórias, um ato sui generis com força de lei, o chefe do Executivo tem o direito, que é inerente à própria capacidade de editar tais medidas, de que estas venham a cumprir todo o trajeto previsto para a sua tramitação. Como já decidiu o STF, um efeito necessário da medida provisória é provocar, por iniciativa do chefe do Executivo, a análise do Congresso:

"A edição de medida provisória gera dois efeitos imediatos. O primeiro efeito é de ordem normativa, eis que a medida provisória, que possui vigência e eficácia imediatas, inova, em caráter inaugural, a ordem jurídica. O segundo efeito é de natureza ritual, eis que a publicação da medida provisória atua como verdadeira provocatio ad agendum, estimulando o Congresso Nacional a instaurar o adequado procedimento de conversão em lei" [3].

Segundo, da mesma forma que configura um direito do presidente da República ao devido processo legislativo na tramitação das medidas provisórias por ele editadas, faz parte das prerrogativas do Congresso Nacional e de cada parlamentar, individualmente considerado, o direito de examinar (isto é, votar) as medidas provisórias editadas pelo presidente da República. O STF, inclusive, já reconheceu que o presidente da república não pode "retirar" medida provisória por ele editada, sendo impossível subtrair da apreciação do Congresso Nacional a sua análise [4]. Exatamente pela mesma razão, o presidente do Congresso Nacional, ou o de cada uma das casas, não pode usurpar esse direito, substituindo a vontade do conjunto dos representantes do povo pela sua.

Terceiro, a prática de "devolver" medidas provisórias aumenta exponencialmente a insegurança jurídica: a eficácia de uma medida provisória eventualmente "devolvida" (e, portanto, a sua capacidade de incidir no mundo fático e gerar relações jurídicas, muitas vezes de grande impacto e importância social) cessa na data de devolução? Na data da publicação do "ato" de devolução? Na data de aviso de recebimento do presidente da República? No dia da divulgação da manchete pelos portais de notícia? No dia útil seguinte a partir de cada uma dessas datas, considerando per analogiam as regras do processo eletrônico (e, em caso positivo, de qual)?

Não fossem já suficientes os argumentos acima, há um outro, do qual o presidente do Congresso Nacional, bem como aqueles que com ele concordam, não conseguem fugir: o processo legislativo fixado pela Constituição Federal para a tramitação de medidas provisórias não comporta a figura da "devolução". O artigo 62, que trata do assunto, prevê as hipóteses de cabimento (situações de "relevância e urgência", assim consideradas pelo presidente da República), os efeitos do ato ("força de lei"), a relação das matérias vedadas (§1º), e a necessidade de o Congresso disciplinar os efeitos da medida provisória não convertida em lei mediante decreto legislativo (§3º). Quanto ao processo legislativo propriamente dito, o artigo 62 prevê que o processo legislativo será o seguinte: cabe a uma comissão mista de deputados e senadores examinar e emitir parecer sobre a medida provisória, antes da sua deliberação, que deverá ser realizada em sessão separada de cada uma das casas do Congresso, pelo respectivo plenário, começando pela Câmara (§§8º e 9º). O §5º estabelece que "deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais". Longe de significar que esse "juízo prévio" será realizado pelo presidente do Congresso, o que tal dispositivo consigna é apenas e tão somente a necessidade de que o parecer da comissão mista e a respectiva votação por cada casa sejam realizados em duas partes: primeiro, analisando o atendimento dos requisitos constitucionais; e, segundo, o mérito.

A Resolução nº 1/2002 do Congresso Nacional, que disciplina em maiores detalhes (podemos dizer: cronograficamente) a tramitação das medidas provisórias, confirma, como não poderia deixar de ser, esse entendimento. A partir do momento da edição da medida provisória, o presidente do Congresso Nacional tem 48 horas para designar a comissão mista que irá emitir parecer sobre o ato (artigo 2º). Essa comissão, após a sua designação, tem 24 horas para se instalar e eleger o presidente, o vice-presidente e os relatores da matéria (artigo 3º). Nos seis primeiros dias que se seguirem à publicação da medida provisória, os parlamentares poderão oferecer emendas ao seu texto (artigo 4º). A comissão terá o prazo improrrogável de 14 dias, contados da publicação da medida provisória, para emitir "parecer único, manifestando-se sobre a matéria, em itens separados, quanto aos aspectos constitucional, inclusive sobre os pressupostos de relevância e urgência, de mérito, de adequação financeira e orçamentária e sobre o cumprimento da exigência do §1º do artigo 2º" (artigo 5º, caput).  

De se notar que, mesmo que se pronuncie sobre o não atendimento dos requisitos constitucionais da medida provisória, a comissão tem de emitir parecer também sobre o mérito (artigo 5º, §2º). Aprovado o parecer, ele será encaminhado ao plenário da Câmara dos Deputados, para o início da votação pelo plenário, o que deverá ocorrer até o 28º dia de vigência da medida provisória, encaminhando-se em seguida ao Senado, que terá até o 42º dia de vigência da medida provisória para concluir os trabalhos e realizar a votação (artigos 6º e 7º). De relevo para o ponto em que estamos tocando neste artigo é o artigo 8º da Resolução nº 01/2002, do Congresso Nacional, que estabelece que o tópico da constitucionalidade da medida provisória será votado em primeiro lugar e, em caso de deliberação pela inconstitucionalidade, a medida provisória será arquivada. Isso significa que o "juízo de admissibilidade" da medida provisória tem de ser necessariamente realizado pelo plenário das duas Casas.

Como a análise tanto do artigo 62 da Constituição quanto da Resolução nº 01/2002 do Congresso Nacional demonstra, não cabe ao presidente do Congresso Nacional, ou ao presidente de qualquer das casas, "devolver" medida provisória. O procedimento exigido para a apreciação de medidas provisórias é essencialmente democrático: pertence aos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Não há lacuna constitucional nenhuma — caso em que se poderia falar de uma convenção em formação na nossa prática constitucional —, mas um mandamento constitucional expresso e inequívoco no sentido de que uma medida provisória só pode ser rejeitada, mesmo por questões de constitucionalidade, pelo voto dos representantes do povo, obedecido o devido processo legislativo. O presidente do Congresso Nacional não tem competência para, abolindo tal procedimento, "devolver" sponte própria medida provisória, e "devolução" de medida provisória não existe — pelo menos não constitucionalmente.

 


[3] STF, Plenário, ADI 293-MC, rel. min. Celso de Mello, j. 06.06.1990, DJ 22.10.1993.

[4] Ver a ADI 2.984-MC, rel. min. Ellen Gracie, j. 04.03.2003, DJ 14.05.2004, em que se sustenta: "Porque possui força de lei e eficácia imediata a partir de sua publicação, a medida provisória não pode ser "retirada" pelo presidente da República à apreciação do Congresso Nacional. (…) Como qualquer outro ato legislativo, a medida provisória é passível de ab-rogação mediante diploma de igual ou superior hierarquia. (…) A revogação da medida provisória por outra apenas suspende a eficácia da norma ab-rogada, que voltará a vigorar pelo tempo que lhe reste para apreciação, caso caduque ou seja rejeitada a medida provisória ab-rogante. Consequentemente, o ato revocatório não subtrai ao Congresso Nacional o exame da matéria contida na medida provisória revogada.".

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