Opinião

As decisões colegiadas como regra de julgamento recursal

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22 de setembro de 2021, 10h38

O sistema recursal cível brasileiro coloca aos Tribunais Regionais Federais a competência para a deliberação dos recursos previstos no Livro III, Título II, do Código de Processo Civil em atenção à jurisdição constitucional do artigo 108, inciso II, da Carta Fundamental, bem como atribui aos tribunais estaduais a mesma competência recursal, conforme disposição das constituições estaduais. No estado do Ceará, o Tribunal de Justiça é competente para apreciar os recursos não incidentes à jurisdição dos Juizados Especiais, conforme comando do artigo 108, inciso III, da Carta Política estadual e a Lei de Organização Judiciária (artigo 25, inciso II), bem como aqueles afetos à instância especial. Trata-se, portanto, de competência residual.

Em atenção à taxatividade recursal, o Código de Processo Civil enumera em seu artigo 994 os recursos cíveis cabíveis no ordenamento comum, quais sejam a apelação, o agravo de instrumento, o agravo interno, os embargos de declaração, o recurso ordinário, o recurso especial, o recurso extraordinário, o agravo em recurso especial ou extraordinário e os embargos de divergência. Aos tribunais estaduais, no exercício de sua jurisdição recursal ordinária, são dedicados os recursos de apelação e ordinário contra as decisões definitivas, a depender da ação originária, e o agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias, ambas as vias de combate às decisões de primeiro grau. Na ambiência interna das cortes, são cabíveis os embargos de declaração e o agravo interno, ambos contra decisão do próprio tribunal e para avaliação interna corporis. Os demais recursos indicados no CPC são de competência dos tribunais superiores, exceto o juízo a admissibilidade do recurso especial e do recurso extraordinário, que toca à vice-presidência, no caso do TJ-CE.

Sobre o sistema recursal, temos a ressaltar a ilustríssima cátedra de Miramar da Ponte, para quem o direito de recorrer "representa a faculdade atribuída pelo Direito Processual ao interessado, que se julga prejudicado por uma decisão, de suscitar um reexame da relação jurídica, pela mesma autoridade judiciária ou por outra de grau superior, para o fim de obter nova decisão que venha esclarecer, explicar, suprir, anular, ou reformar, a que tiver sido impugnada" [1]. Cuida-se de garantia à justa prestação jurisdicional e inerente ao exercício do devido processo legal, sob o viés da ampla defesa, assegurada pela Carta Magna, com todos os "meios e recursos a ela inerentes" (artigo 5º, inc. LV).

Portanto, são primados do sistema recursal a possibilidade de reversão ou modificação da decisão que foi desfavorável ao interessado, pelo próprio julgador ou por órgão superior, colmatada pelo que se denomina "duplo grau". Para o mestre Araken de Assis, "o princípio do duplo grau enseja nova apreciação do ato decisório por um órgão situado em nível superior da hierarquia judiciária, no chamado duplo grau vertical, ou por outro órgão da mesma hierarquia, mas de composição diversa, no chamado duplo grau horizontal" [2]. Sobre o ponto, de bom alvitre reconhecer que nem mesmo o duplo grau de jurisdição possui natureza de "garantia constitucional", mas mera previsão, ao que se permite a existência de limites ao direito de recorrer pela legislação infraconstitucional, ao menos da área civil e administrativa. Há, entrementes, outros princípios regentes ao recursos, conforme indicação do mestre baiano, além do duplo grau acima referido. São eles: 1) taxatividade; 2) singularidade; 3) fungibilidade; 4) dialeticidade; 5) voluntariedade; 6) irrecorribilidade em separado das interlocutórias; 7) complementaridade; 8) consumação; e 9) proibição da reformatio in pejus [3].

Ainda como amparo doutrinário, convém salientar a compreensão a ser dada aos princípios jurídicos, de acordo com o sempre consultado Lenio Streck: "O conceito de princípio pode aparecer na linguagem jurídica como, pelo menos, três significados diferentes: a) como princípio geral do Direito; b) como princípio jurídico-epistemológico; c) como princípio pragmático-problemático, que eu opto por nomear como princípios constitucionais" [4].

Para os fins do presente estudo, mostra-se necessário reduzirmos os conceitos e institutos do tema, convergindo ao máximo por sua incontroversão, ao que podemos sumarizar com o seguinte enunciado do referido jurisconsulto dos pampas: "O princípio só se ‘realiza’ a partir de uma regra. Não há princípio sem (alg)uma regra. Por trás de uma regra necessariamente haverá (alg)um princípio" [5].

Dessa forma, prosseguimos afirmando que no sistema do civil law, em que o império da norma se concretiza como modalidade primária do Direito, o socorro aos princípios do Direito deve se conformar à interpretação da norma pelo viés constitucional. Os primados de validade e completude interpretativa se mostram presentes no ordenamento pelo viés da composição constitucional em caso de necessidade de preenchimento da lacuna normativa ou do seu eventual conflito aparente. Para Virgílio Afonso da Silva, conforme exposição de Nelson Nery Júnior, "princípios seriam as normas mais fundamentais do sistema, enquanto as regras costumam ser definidas como uma concretização desses princípios e teriam, por isso, caráter mais instrumental e menos fundamental" [6]. Assim é que, em crítica à formação de princípios despidos de origem constitucional fundante, cunhou-se a expressão "pamprincipiologismo", que revela a criação de princípios de matiz neoconstitucional, com a construção de um modelo de Direito não mais pensado sob a perspectiva positivista. É dizer, seria o pamprincipiologismo um desvio na formação de diretrizes evasivas e pseudorresolutórias de questões cujas regras não se permitiram solucionar de forma adequada (ou interpretativamente adequada).

Nessa esteira, a aparição do "princípio da colegialidade" mostra-se como exemplo para a caracterização desta perigosa e atual fase do Direito sobre a norma posta e aprovada pelo Parlamento. Com efeito, cuida-se de regra, e não princípio, a formação de decisões proferidas pelos tribunais em grau recursal. Vê-se do artigo 941, §2º, que "no julgamento de apelação ou de agravo de instrumento, a decisão será tomada, no órgão colegiado, pelo voto de três juízes". A leitura do dispositivo, feita de forma isolada, levará o operador do Direito à conclusão de que em todos os julgamentos de apelação e agravo de instrumento, apontados acima como de especial relevo aos tribunais estaduais e regionais federais, haverá a necessidade de formação de colegiado de três magistrados para sua resolução. Daí se embalarem os defensores do princípio da colegialidade. Contudo, ao que sabemos, não é esta a leitura adequada do dispositivo.

Inicialmente, a colocação do dispositivo de forma positivada e sem margem de interpretação retiraria, por si só, sua indicação como principiológica, o que se poderia contrapor com a suscitação da necessidade de positivação de normas em contraposição ao voluntarismo judicial, sendo o CPC atual prova de várias inovações sob tal aspecto, por exemplo ao positivar e afastar a intempestividade por antecipação ou prematuridade, criação urdida pela chamada jurisprudência defensiva que obstava o conhecimento de recursos manejados antes da publicização da decisão recorrida.

Tornando ao cerne da colegialidade, e de acordo com o regramento processual, o relator do recurso, a quem toca a ordenança e direção do julgamento, poderá, ab ovo e singularmente, não conhecer de recurso no caso de inadmissibilidade, prejudicialidade ou ausência de dialeticidade (artigo 932, inciso III). Esse juízo prelibatório obstará que os demais integrantes do órgão fracionário, que representa o próprio tribunal, conheçam do recurso interposto pela parte, frustrando a expectativa de exame sobre o mérito do pedido de reforma.

Poderá o relator, da mesma forma monocrática, negar provimento a recurso que apresente causa de pedir contrária à súmula dos tribunais superiores ou à decisão vinculante, ou dar-lhe provimento, após da formação do contraditório, quando a decisão recorrida for proferida em contrariedade às hipóteses indicadas (súmula de tribunal superior ou decisão vinculante) (artigo 932, inciso IV e V). Nessa modalidade, o mérito do recurso é deslindado pelo próprio magistrado relator, sem a participação dos integrantes do órgão julgador, realizado o controle de submissão do feito à colegialidade.

Portanto, a decisão do relator na modalidade monocrática é a efetiva demonstração de que a colegialidade não resiste ao simples questionamento de sua natureza como regra, e não como princípio: afinal, seriam nulas as decisões tomadas pelo relator nos casos expressos no Código de Ritos? Tal situação tornaria descalabro a ordem dos processos nos tribunais ao se admitir que um princípio (colegialidade) seja solenemente relegado a exceções normativas expressas e de legitimidade incontestável. Ora, se a colegialidade fosse efetivo princípio constitucional, a decisão tomada pelo julgador monocrático seria nula de pleno direito por ofensa direta à ausência de formação plúrima. Em verdade, a atual sistemática processual tem forçado a limitação de recursos à deliberação colegiada, colocando um sistema de precedentes, ainda que mal elaborado, a indicar várias possibilidades para a realização de julgamentos singulares pelos relatores. O próprio Superior Tribunal de Justiça possui súmula para a decisão monocrática fora das hipóteses do Código de Processo Civil, bastando ao relator a indicação de "entendimento dominante acerca do tema" (súmula 568) para que decida de forma monocrática o mérito do recurso posto à corte.

Noutro ponto, é o próprio ordenamento jurídico que assegura a existência de um recurso para a parte interessada em reversão à decisão do relator adotado na modalidade monocrática: o agravo interno. Nos termos do artigo 1.021 do CPC, a decisão do relator poderá ser submetida ao crivo do colegiado competente ao deslinde do mérito recursal julgado de forma singular. Em atenção à excepcional fungibilidade recursal, poderão os embargos de declaração serem recebidos como agravo interno quando suas razões se distanciarem do cunho aclaratório a configurar efetiva inconformação ao resultado do julgamento embargado (artigo 1.024, §3º), cabendo ao relator a adequação do rito. É dizer, cuidasse de princípio regente ao recurso, a existência de norma saneadora não seria possível dado o reconhecimento de nulidade plena em caso de afronta.

Ao que fora dito em relação aos recursos cíveis, repita-se em relação às ações originárias nos tribunais, confluentes os poderes do relator em ambos os casos.

Conclui-se, portanto, que a técnica de julgamento monocrático pelo relator do recurso nos tribunais não poderá configurar violação ao devido processo legal ou ao juízo natural, distanciando-se, em muito, do status de princípio processual ou constitucional. E o contrário igualmente não se mostra atentatório a qualquer disposição normativa, podendo sempre o relator submeter aos pares o julgamento de recurso, ainda que possível seu deslinde de forma monocrática. Porém, tal postura do relator, longe de se mostrar "prestígio" ao colegiado, somente atentará contra a celeridade das sessões de julgamento, sendo legítimos os dispositivos processuais e técnicas de julgamento abreviadas para resolução dos recursos, dentro das hipóteses de incidência do artigo 932 do Código de Processo Civil, de sorte que, somente se ausente qualquer das determinantes autorizativas enumeradas, estará comprometido o julgado monocrático, sanável, contudo, pela via do recurso interno, inclusive para os fins recursais à instância especial.

 


[1] PONTE, José Miramar da. Do direito de recorrer (ed. fac-sim). Fortaleza: Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, 2018. v. 3. (Obras Jurídicas Cearenses – Resgate Histórico), p. 08.

[2] ASSIS, Araken de. Manual dos recursos [livro eletrônico]. 8a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 52.

[3] ob. cit., p. 46.

[4] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêtica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017, p. 239.

[5] ob. cit, p. 244.

[6] NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: (processo civil, penal e administrativo). 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 39.

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