Opinião

Cláusula on first demand nos seguros-garantia: pague primeiro, reclame depois

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21 de setembro de 2021, 10h44

Imagine um seguro em que, avisado o sinistro à seguradora, esta pague imediatamente a indenização ao segurado, sem questionamentos. Depois, com tranquilidade, a seguradora verificaria eventuais fatores que justificassem a devolução total ou parcial do valor pago. 

Bom demais para ser verdade? Pois é, mas pode existir. Trata-se da aplicação da chamada cláusula on first demand — ou cláusula "à primeira solicitação". 

Naturalmente, não é comum encontrar essa condição nas apólices de seguro; pelo contrário, é raríssima, especialmente no mercado brasileiro. O que não é raro, entretanto, é o segurado ter de esperar anos para ver concluída a chamada regulação do sinistro, procedimento administrativo no qual a seguradora analisa a causa do dano e apura se há o dever de indenizar e seu valor, conforme a garantia contratada. Uma via crucis bastante sacrificante, com provações de resiliência financeira e jurídica terríveis ao segurado, apesar do momento de inerente fragilidade que este normalmente passa após sofrer um sinistro. 

A cláusula on first demand tem a capacidade de solucionar esse grave entrave à execução dos contratos de seguro, dando-lhes mais eficiência e celeridade, especialmente nos chamados seguros-garantia

seguro-garantia protege o segurado dos riscos resultantes do descumprimento de obrigações que tenha contratado junto a outras pessoas ou empresas, os chamados tomadores da apólice. Assim, se tal contratado (ou tomador da apólice) descumprir o contrato principal, a seguradora indeniza o segurado e ainda pode cobrar de volta do tomador o valor que pagou ao segurado. 

Essa dinâmica é interessante porque, além de possibilitar que o segurado receba a indenização securitária, permitindo dar continuidade ao contrato principal descumprido pelo tomador, também cria mecanismos contratuais que autorizam a seguradora executar a chamada contragarantia dada a ela pelo tomador — em geral, um título executivo contra o tomador, que permite à seguradora se ressarcir dos valores que pagou ao segurado. 

Mas, como diz o ditado, as glórias que vêm tarde já vêm frias. É preciso rapidez no pagamento do seguro para que o segurado possa retomar a execução do contrato descumprido. Infelizmente, isso não acontece na prática. 

Pela norma da Susep, órgão que regula as atividades das seguradoras, o prazo para a conclusão da regulação dos sinistros é de 30 dias. Mas esse prazo pode ser suspenso caso a seguradora solicite documentos complementares, de forma "fundada e justificável". Quem trabalha com seguros sabe que essa possibilidade acaba permitindo às seguradoras estender o prazo de conclusão da regulação do sinistro a seu exclusivo critério. Não há previsão de limite para o número de vezes que se pode pedir documentos complementares ao segurado, muito menos sobre o conteúdo de tais pedidos. 

Assim, a primeira dificuldade no âmbito da regulação do sinistro se relaciona às próprias características do objeto da garantia, já que, na maioria das vezes, os contratos possuem um feixe de obrigações complexo e a apuração de seu descumprimento não é tarefa simples. 

Some-se a isso o fato de que o tomador da apólice, como dito, fica sujeito à posterior cobrança por parte da seguradora da indenização por ela paga em favor do segurado, razão pela qual, na grande maioria das vezes, o tomador busca descaracterizar qualquer descumprimento contratual de sua parte. 

Não é incomum que as regulações dos sinistros em seguros-garantia parem completamente diante de tortuosas alegações apresentadas pelo tomador, ficando suspensas diante da judicialização da controvérsia entre o segurado e o tomador. Obviamente, a demora na conclusão da regulação aumenta muito o estado de prejuízo do segurado, credor do contrato descumprido.  

Apesar dessa realidade, esse complexo conjunto de contratos (contrato principal, apólice de seguro garantia e contragarantia) é criado para que a seguradora mitigue também os seus próprios riscos. E, por isso, parece-nos perfeitamente cabível a colocação de mais um elemento que dê também ao segurado a tranquilidade de que a indenização do seguro lhe será paga de forma célere; justamente a cláusula on first demand

Essa cláusula autoriza o pagamento da garantia securitária mediante simples solicitação do segurado à seguradora, sem que esta discuta, no momento inicial, se houve ou não algum evento que afastaria o dever de prestar a garantia. 

Obviamente, pode-se prever que a solicitação de pagamento deva vir acompanhada de determinados documentos essenciais à prova do descumprimento da obrigação garantida, mas não haverá espaço para qualquer ampliação da discussão a respeito da causa do inadimplemento da obrigação garantida. Atualmente, a inclusão da cláusula on first demand em garantias bancárias é praticamente a regra, ao invés de exceção. 

A inclusão de tal cláusula nas apólices de seguro-garantia poderia ser realizada mediante a contratação de cláusula particular específica, cuja natureza jurídica se assemelharia a uma cláusula solve et repete [1] (pague e depois reclame), por meio da qual o pagamento da indenização é realizado e depois repetido (cobrado de volta), se for o caso. Isto é, se ao fim da regulação do sinistro a seguradora apurar que o segurado não fazia jus à indenização adiantada, caberá, então, a devolução do valor recebido (integralmente ou parcialmente, caso se constate que há cobertura, mas os prejuízos sejam inferiores ao montante pago à primeira solicitação). 

Essa sistemática é muito semelhante ao que o mercado de seguros denomina adiantamento de pagamentos, comumente adotada nas apólices de responsabilidade civil, em especial nas de D&O (específicas para diretores e administradores de pessoas jurídicas), as quais preveem que os custos incorridos na defesa dos segurados no âmbito das reclamações poderão ser adiantados (em caráter precário), devendo ser reembolsados à seguradora caso se identifique posteriormente que tais segurados não têm direito à indenização (em virtude da prática de atos dolosos, reconhecidos por decisão administrativa final ou sentença arbitral ou judicial transitada em julgado).  

Na realidade, a prática de adiantamentos é comum em várias modalidades de seguros de danos, em que, muitas vezes, a seguradora entrega determinado montante ao segurado ainda no curso da regulação do sinistro, com base em um juízo de verossimilhança. De igual modo, em tais situações, se a seguradora concluir pela inexistência de obrigação indenizatória, será possível solicitar a devolução do valor pago, existindo inclusive fundamento no Código Civil que autoriza tal iniciativa. Com efeito, o artigo 876 do Código Civil dispõe que "todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir; obrigação que incumbe àquele que recebe dívida condicional antes de cumprida a condição". Ou seja, não há grandes novidades. 

Em síntese — e com a única intenção de dar um pontapé inicial à discussão que parece profícua para todos os interessados no tema, em claro benefício ao mercado e ao produto —, parece que a inclusão da cláusula on first demand não colide com qualquer das características essenciais ao contrato de seguro garantia. Pelo contrário, uma vez implementada, tal iniciativa possibilitaria que o seguro-garantia desempenhasse papel muito mais eficaz, especialmente se considerar que o interesse em sua contratação se destina, precipuamente, à garantia de contratos de grande vulto econômico (muitos deles, inclusive, envolvendo o interesse público [2]), cujo adequado cumprimento possui ampla e inegável função social. 

É chegada a hora do mercado segurador discutir mecanismos que possam melhorar a eficácia de seus produtos. Juntamente com os seguros paramétricos, assunto para outro dia, a cláusula on first demand poderá trazer alta funcionalidade para os seguros-garantia, ajudando a recuperar a credibilidade do seguro, como um todo, perante os segurados.  

 


[1] A essência da cláusula solve et repete, que em tradução literal significaria "pague e depois reclame", representa verdadeira renúncia nos contratos bilaterais à alegação de exceção de contrato não cumprido (CC, arts. 476 e 477 do Código Civil). 

[2] O Novo Marco Legal de Licitações e Contratos Administrativos (lei nº 14.133/2021) trouxe, inclusive, novas previsões acerca do seguro garantia, prestigiando sua eficácia quanto ao fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo contratado perante à Administração Pública. 

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