Opinião

Transcrição de depoimentos em audiências por videoconferência e vida vivida

Autor

  • Leonardo Aliaga Betti

    é juiz titular da 3ª Vara do Trabalho de Mogi das Cruzes (TRT/SP) mestre em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP) professor de Direito do Trabalho Processo do Trabalho e Processo Civil na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) e na Escola Paulista de Direito (EPD).

19 de setembro de 2021, 15h13

Nos grupos de WhatsApp, nas conversas reservadas, nas rodas de discussão, nos artigos jurídicos, juízes e advogados travam interessantes debates sobre o assunto do momento: é pertinente transcrever depoimentos colhidos por meio de audiências realizadas por videoconferência e gravadas? Ou isso é procedimento retrógrado, alheio ao progresso tecnológico que, graças à pandemia, somos chamados a acompanhar?

É bonito ver cada qual defender seu ponto de vista. São interessantes os argumentos. Jurídicos, lógicos ou práticos, são raciocínios respeitáveis, merecem consideração.

Do ponto de vista jurídico, há respostas boas nos dois sentidos: para uns, ao prever que "os depoimentos das testemunhas serão resumidos, por ocasião da audiência", o artigo 828 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é o porto seguro para se concluir pela necessidade da transcrição. Para outros, devem imperar as regras do Código de Processo Civil (CPC) segundo as quais o ato "poderá ser documentado por meio de gravação" (artigo 460), inexistindo, pois, imperatividade a justificar a providência escrita.

Como nada no mundo jurídico é absoluto — tudo "depende", como aprendemos desde nossos primeiros dias nos bancos da faculdade de Direito —, os dois posicionamentos são (normalmente com respeito) atacados por quem os contrapõe.

Para os defensores da CLT, a utilização da regra do CPC é tecnicamente falha: ao dispor que "o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho" somente "nos casos omissos", o artigo 769 da CLT é a contenção (jurídica) que justifica não embarcar nas águas modernas do CPC.

Por incrível que pareça, é justamente a "modernidade" da lei processual civil, nascida já sob o auspício da tecnologia, que justificaria, para os opositores daquela ideia, o trespasse das regras do CPC à realidade trabalhista: com base em um conceito bem desenvolvido pela professora de todos, Maria Helena Diniz, obtempera-se que há na regra da CLT um quê de velhice, uma lacuna que, se não é de norma, é de norma atualizada, de regra nova, que seja ao menos consonante com a invasão tecnológica em tudo o que conhecemos. A pergunta que esses respeitáveis interlocutores fazem é: como aplicar uma regra nascida em 1943 (a da CLT), quando sequer se imaginava "videoconferência", em detrimento de outra, nascida 70 anos depois (a do CPC), atenta ao seu tempo?

"Ora", replicam os celetistas: não consta nos manuais jurídicos que o tempo, por si só, tenha autossuficiência para fazer eliminar norma jurídica. Dizem estes: lei em vigor tem efeito imediato e geral (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, LINDB, artigo 6º), e é isso o que importa do ponto de vista jurídico; aliás, o próprio TST segue esse raciocínio em discussões similares, pois, se compactuasse com a lógica da lacuna ontológica (a delineada pela querida Maria Helena Diniz), conceberia de braços abertos, exemplificativamente, a inanição da necessidade de citação e inexistência de multa para o sujeito que não paga a dívida espontaneamente no processo do trabalho: substitui-la-ia pela roupa moderna que hoje veste o artigo 523, §1º, do CPC. Mas não. Como sabemos, disse o Tribunal Superior do Trabalho (TST) — e o fez em incidente de repetitivos, com efeito vinculante, processo IRR-1786-24.2015.5.04.0000 — que o artigo 880 da CLT é norma vigente, e, nesse caso, o transplante das regras do CPC fere o devido processo legal.

O argumento convence alguns civilistas, principalmente aqueles mais conservadores. Conservadorismo este não no sentido de negar o uso da tecnologia, mas no de aplicar o Direito conforme a técnica menos ativista possível, ativismo que estaria presente na postura progressista daquele que utiliza a regra do CPC mesmo diante de regra expressa da CLT.

Outros, porém, não se fazem de rogados, e de certa forma partem para a ignorância: treplicam seus opositores dizendo que CLT boa é CLT revogada; que esse diploma é vetusto, ultrapassado, deve ser, mesmo, ignorado, pois a sociedade anseia pelo novo.

"Veja bem", retornam aqueloutros, já perdendo a paciência em tempos de polarização. Em 2017, dizem, pela Lei nº 13.467/2017 (a "reforma" trabalhista) o legislador transformou a CLT, implementou a maior mudança no direito do trabalho, alterando dezenas de regras de processo do trabalho… E quanto ao artigo 828 da CLT? Nada mudou. Não seria essa, portanto, a vontade do legislador, ou seja, um silêncio proposital por assim dizer, para que se continue "reduzindo a termo" a audiência realizada por videoconferência?

Esse coro é engrossado pelos civilistas conservadores, aqueles não muito afeitos ao ativismo que sugere a postura de se usar o CPC onde existe regra da CLT. Dizem estes: de fato, considerando que, na exposição de motivos da Lei nº 13.467/2017 (então PL 6787/2016), o próprio relator da reforma destacou que "a modernização das leis trabalhistas" ali identificada pautaria também suposto "desestímulo ao ativismo judicial", é certo considerar ativista, e, portanto, injustificada, a postura do juiz que ignora o modernismo também implementado na CLT (mesmo que, no caso concreto, por omissão). E, com esse argumento, retomam esses debatedores o ponto inicial: seria hoje retrógado aplicar a CLT, ou, depois da "reforma" de 2017, "ultrapassado" seria ignorar a "reformada" CLT?

Veja o leitor como é interessante a discussão. E como ela não se resume ao "novo" ou ao "ultrapassado". Há contornos jurídicos importantíssimos, debates até ideológicos. Mas, defendamos uma ou outra ideia, nunca é demais deixarmos bem claras as consequências práticas de tomarmos um ou outro lado da discussão.

Para o juiz de primeiro grau, o argumento pró-CPC é cativante. Audiência que demoraria duas ou três horas resolve-se em menos de uma, pois não é preciso "ditar o termo" para quem o secretaria. Com isso, pautas que demorariam cinco ou seis horas resolvem-se em metade desse tempo. Mais tempo para outras coisas, como uma pescaria ou para brincar com seus filhos no parque. Ou até para mais trabalho, pois, com processos brotando pelos poros da Justiça do Trabalho, será possível, quem sabe, "puxar" a pauta, acelerar os casos. E, como todos os depoimentos estão "frescos" na cabeça do juiz, é simples julgar os respectivos processos, nem sendo preciso, por sinal, rever a gravação da audiência.

O problema é o que vem depois. E não falo aqui apenas do processo em si, mas do que essa postura (plenamente justificada sob o ponto de vista do juiz de primeiro grau, vale frisar) impacta na comunidade jurídica como um todo.

O processo continua depois da sentença. E a questão é que, a partir de então, nenhuma outra pessoa, além das que estavam presentes à audiência, consegue ter acesso rápido aos depoimentos não transcritos. Será preciso ouvi-los, um a um, e é exatamente aí que as coisas começam a se complicar.

Todo o tempo ganho pelo juiz de primeiro grau é tempo perdido para o de segundo grau. Todas as horas de gravação, com seus intervalos, com suas intercorrências, com os mal-entendidos nas perguntas e nas respostas, tudo isso precisará ser assistido pelos juízes de segundo grau. E, se estivermos a falar daquele juiz de primeiro grau que aproveitou seu "tempo livre" de redução a termo dos depoimentos para trabalhar mais (inserindo mais processos em sua pauta), aquelas horas de gravação se multiplicarão, e todos vão trabalhar mais. Até mesmo os advogados.

Sim, pois se quem fez a audiência foi um "audiencista" (um neologismo para designar o advogado que apenas participa da audiência, e que não se vincula ao processo antes ou depois dela), algo muito comum nos grandes centros, caberá ao advogado responsável pelo recurso (ou pelas contrarrazões) assistir à audiência gravada. E se o juiz for aquele que se desdobra para "puxar a pauta", mais e mais horas assistindo a audiências serão necessárias para o desempenho do trabalho. Ou seja: os advogados, tal como os juízes em segundo grau, necessariamente trabalharão mais.

Bem se deduz, na realidade desses advogados e desembargadores, que "tecnologia" e "desconexão" são termos incompatíveis. Afinal, para o objeto de nossas preocupações, a consequência prática de não se reduzir a termo depoimentos de horas e horas de audiência é, para advogados e juízes de segundo grau, permanecerem mais tempo conectados ao trabalho. Um prejuízo evidente a coisas simples da vida como pescar ou brincar com as crianças no parquinho…

Fico aqui me imaginando no dia em que eu for juiz de segundo grau (se isso chegar a ocorrer). Eu, com quatro filhos, que até lá possivelmente terão me dado netos. Será que, em tempos modernos de audiências sem termo, terei eu tempo para levar meus netos para passear, ou precisarei eliminar essa parte de minha vida para assistir às audiências apenas gravadas pelo juiz de primeiro grau?

Algum leitor perspicaz deve estar pensando: delegue isso para seus assessores. Ao que eu respondo sob duas frentes: primeiro, que sou um chato, daqueles de galocha, que não deixa a assistente fazer minhas sentenças, pois tenho apego por elas; e segundo, que assessores são gente. Gente como a gente, que também precisa levar o filho (ou neto, ou sobrinho, ou afilhado…) para passear, que também precisa gastar seu tempo com a vida, vida vivida no mundo real, não vida não vivida no virtual…

Vale o mesmo, óbvio, para os advogados. E, claro, para os assistentes de juízes de primeiro grau, que não assistem às audiências e elaboram sentenças para os respectivos juízes que auxiliam.

O que parece claro para mim é que o trabalho que alguém deixa de ter (o juiz de primeiro grau), muitos alguéns vão acabar fazendo. Em dobro, ou triplo: afinal, o tempo que os advogados terão de dedicar a assistir a audiências para fazer seus recursos e contrarrazões não elimina o tempo que o juiz de segundo grau terá de destinar para fazer rigorosamente o mesmo. Seu assessor, idem.

Pior: esse imediatismo de se economizar tempo hoje a nada servirá amanhã; o tempo que o juiz de primeiro grau ganha hoje para pescar ou cuidar dos seus filhos (se é que ele vai se desconectar a esse ponto do trabalho) é o tempo que ele perderá amanhã para esses mesmos frugais exercícios de vida vivida com seus netos, sobrinhos ou afilhados. Afinal, quando o juiz de primeiro grau tornar-se desembargador, outro juiz de primeiro grau terá feito audiências sem reduzir a termo; caberá, então, ao ontem juiz de primeiro grau que ganhou tempo deixando de reduzir a termo suas audiências, a "recuperação" desse tempo hoje, assistindo a audiências feitas por outro juiz.

Aliás, fica aqui minha pergunta ao meu colega de primeiro grau que já não está reduzindo a termo suas audiências: já parou para perguntar se seu assistente vem trabalhando menos ultimamente? Ou assistir às audiências, para ele, tem tomado o tempo de pescaria ou de convívio com seus filhos, netos e afins?

Há ainda quem rebata todo esse baralhado de coisas ditas até aqui, afirmando: mas você viu na Justiça federal? Você viu as audiências da "lava jato"? Tudo só gravado, sem transcrição, e tudo funcionando. Não há aqui um argumento bom para você esquecer essa coisa retrógrada de transcrever depoimentos?

Eu responderia a esse imaginário interlocutor com um… "Depende": já investigou quantas audiências precisaria fazer o juiz da "lava jato" para manter sua "pauta" em dia? Sabia que, no caso em questão, a vara da "lava jato" só cuidava da "lava jato"? Já verificou qual é a quantidade de matéria fática, normalmente dependente de prova oral, que a Justiça federal (amplamente tecnológica) precisa apurar? São compatíveis as realidades da Justiça do Trabalho e da Justiça federal? Enfim, eu diria: nem tudo o que é bom pro outro é necessariamente bom pra mim. Salvo melhor juízo.

É por essas e outras que, seja por interesse próprio (principalmente sob a perspectiva da vida a ser vivida no futuro), seja pensando nos outros (minha assistente, advogados, juízes de segundo grau e respectivos assessores), ainda não me convenci de que não é o caso de reduzir a termo os depoimentos. Não enquanto não desenvolvida uma boa técnica de degravação que permita que minha economia de tempo não seja um fardo para os outros personagens da comunidade jurídica com quem convivo (ou pretendo conviver). Ainda acho importante uma boa pescaria ou um bom passeio no parque com filhos, netos e afins. Seja hoje, ainda jovem (!), seja amanhã, com alguma experiência de vida realmente vivida.

É isso.

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    é juiz titular da 3ª Vara do Trabalho de Mogi das Cruzes (TRT/SP), mestre em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), professor de Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Processo Civil na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) e na Escola Paulista de Direito (EPD).

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