O sistema brasileiro de insolvência é para todos?
18 de setembro de 2021, 9h13
A pandemia global de Covid-19 implicou consequências adversas para diversos setores da atividade econômica. Nesse contexto, diversas associações civis — como clubes de futebol ou instituições educacionais que não se organizam como sociedades empresariais — passaram a ingressar com processos de recuperação judicial para reestruturação de suas dívidas.
Conforme o artigo 1º da Lei nº 11.101/2005, recentemente modificada pela Lei nº 14.112/2020 (Lei de Recuperação), em princípio, podem se sujeitar ao regime da recuperação judicial o "empresário e da sociedade empresária", o que acende debates sobre a possibilidade de associações civis se valerem do regime recuperacional, por não terem natureza empresarial típica, pois não destinadas ao lucro.
A resposta dada pelo Judiciário foi positiva para Associação Sociedade Brasileira de Instrução (Asbi), mantenedora da Universidade Cândido Mendes, assim como para a Aelbra, mantenedora de diversas instituições de ensino, incluindo a Ulbra. Apesar de associações civis, a Asbi e a Aelbra tiveram os processamentos das recuperações judiciais deferidos pelos Judiciários carioca e gaúcho com fundamentos similares, baseados na existência de atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços, o que contribui para a geração de empregos e circulação de riquezas, com importante função social.
Em Santa Catarina, a solução foi a mesma para o Figueirense Futebol Clube, ao se reconhecer atividade econômica organizada nos âmbitos estadual e nacional desde 1921, o que autorizaria a proteção da associação civil conforme ditames da Lei de Recuperação.
Após esses dois casos emblemáticos, que poderiam indicar a possível consolidação do entendimento dos tribunais pátrios sobre a possibilidade da recuperação judicial das associações civis, recentemente o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul proferiu decisão em sentido diametralmente oposto.
Ao julgar recurso no âmbito da recuperação judicial requerida pelo Grupo Metodista, o tribunal gaúcho reconheceu que apenas as sociedades empresárias podem pedir recuperação judicial e, assim, indeferiu o pedido de processamento da recuperação judicial dessa instituição educacional, por se tratar de uma associação civil, a despeito da existência de atividade econômica.
No último dia 9, reconhecendo que ainda não há consenso sobre a questão e que a decisão terá efeitos relevantes sobre a esfera patrimonial das recuperandas e de demais agentes envolvidos, a 3ª vice-presidência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, suspendeu os efeitos da decisão em comento, com base em decisões proferidas por outros tribunais brasileiros, pelo menos até o juízo de admissibilidade do recurso especial interposto pelo Grupo Metodista na tentativa de que o Superior Tribunal de Justiça "vista a camisa" das associações civis nessa acirrada partida.
As recentes decisões do "caso Metodista" demonstram que o tribunal gaúcho ainda não tem um posicionamento interno consolidado acerca do tema, bem como reacende o debate e reitera a necessidade de pacificação da jurisprudência nacional. Até que se consolide o entendimento em qualquer dos sentidos, credores, devedores e partes relacionadas não terão plena ciência sobre o tratamento jurídico em caso de potencial insolvência das associações civis.
A consequência desse cenário é o possível aumento nos custos de transação, que pode se refletir na prática de taxas de financiamento mais elevadas pelas instituições financeiras e na dificuldade de tomada de crédito pelas associações civis.
O direito de insolvência brasileiro parece estar diante do dilema narrado por Shakespeare no "Mercador de Veneza": aplicar a regra de Direito positivo ou dar a solução que lhe parece mais "justa"? A questão demanda aprofundados debates e a análise de todos os riscos e cenários respectivos. No entanto, recentes alterações legislativas e a própria legislação comercial brasileira parecem conferir aos agentes de mercado instrumentos para contorno da situação.
Conforme o Marco Legal do Clube-Empresa (Lei 5.516/19), os clubes de futebol podem se tornar Sociedades Anônimas de Futebol (SAF) e, assim, pedir recuperação judicial. O marco legal, portanto, parece trazer a solução aos clubes futebol que pretenderem se valer do instituto da recuperação judicial para reestruturação das dívidas.
As associações civis mantenedoras de instituições educacionais, ao seu turno, por exercerem atividade econômica por natureza, mediante estudo e planejamento adequado, podem se organizar na forma de sociedades limitadas ou anônimas empresárias, o que autorizará que se valham do regime da recuperação judicial para preservação das atividades e consolidação do sistema educacional brasileiro, conforme estabelecido na Lei de Recuperação.
A conclusão a que se pode chegar é a de que os tribunais brasileiros, pelo menos por enquanto, parecem entender que o sistema de insolvência brasileiro não é para todos — conforme o próprio legislador definiu na Lei de Recuperação. De qualquer modo, parece ser fundamental que se aprofundem os debates sobre a organização de entidades que tradicionalmente se organizavam na forma de associações civis para tirar das mãos do Judiciário o poder exclusivo de decidir se o agente merece, ou não, a proteção da Lei de Recuperação, pelo menos até que o entendimento sobre a matéria se pacifique — conferindo segurança jurídica essencial não apenas para devedores, como para credores e trabalhadores.
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