Observatório constitucional

Opinião Consultiva nº 28 e debates da CIDH sobre democracia representativa

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18 de setembro de 2021, 8h01

A Corte Interamericana e sua função consultiva
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) é um dos mais destacados tribunais das Américas e suas decisões, que possuem caráter vinculante, versam sobre temas da mais alta importância. Apesar disso, sua jurisprudência ainda é pouco conhecida e refletida em nosso sistema jurídico, o que precisa ser revisto para que se possa fortalecer não só o Sistema Interamericano de Direitos Humanos em sua dimensão externa, mas o próprio debate nacional em matéria de direitos humanos.

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No Brasil, por exemplo, os precedentes da Corte IDH ainda encontram pouco respaldo no Poder Judiciário e o controle interno de convencionalidade — resumidamente, a compatibilização de nosso direito com o direito internacional dos direitos humanos — ainda é muito incipiente. 

Para se ter um breve panorama sobre a relevância do tema, vale observar que a atuação da Corte desdobra-se em dois eixos principais: a jurisdição contenciosa e a jurisdição consultiva. Por meio da primeira, o colegiado aprecia as petições contendo denúncias de violações de direitos humanos que lhe são submetidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e decide pela responsabilização ou não dos Estados denunciados. Já a segunda diz respeito à emissão das chamadas Opiniões Consultivas, que consistem em pareceres emitidos pela Corte IDH sobre a interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos (também conhecida como Pacto de San José) ou sobre outros tratados regionais de direitos humanos, a pedido dos Estados.

A função contenciosa da Corte costuma receber maior destaque, além de ser muito mais frequente — desde o início dos trabalhos do órgão, foram julgados mais de 400 casos contenciosos, frente à emissão de menos de 30 Opiniões Consultivas. Todavia, seus trabalhos na seara consultiva merecem especial atenção, na medida em que, nesta competência, o Tribunal emite relevantes posicionamentos em matéria de direitos humanos, a fim de orientar os sistemas jurídicos dos Estados Americanos.

A jurisdição consultiva não se restringe aos países que aderem à competência contenciosa da Corte, mas compreende todos aqueles que integram a Organização dos Estados Americanos. Outro fator distintivo reside no fato de que as consultas devem versar sobre temas abstratos de interpretação dos tratados. Isto é, litígios concretos e violações diretas de direitos humanos não podem ser apreciados pelo Tribunal em sede de Opinião Consultiva. Apesar disso, é natural que as questões submetidas pelos Estados tenham por motivação dilemas reais de direitos humanos e controvérsias instaladas entre os países da região.

Esta modalidade de atuação da Corte IDH ainda cumpre importante papel no que diz respeito ao controle de convencionalidade. Por meio dela, os Estados podem solucionar suas dúvidas a respeito da compatibilidade de disposições de direito interno com os tratados que regem o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Por exemplo, a Opinião Consultiva nº 24/2017, solicitada pela Costa Rica, foi fundamental para que a Corte Suprema do país anulasse normas que vedavam a união homoafetiva, por entender — entre outras razões — que os dispositivos eram contrários à Convenção Americana de Direitos Humanos.

As Opiniões Consultivas, nesse sentido, abrem um importante canal de comunicação dos Estados e da própria sociedade civil com a Corte IDH, no qual diversos atores podem ser ouvidos pelo tribunal e manifestar suas posições sobre questões centrais para o desenvolvimento progressivo dos direitos humanos no continente. Em outras palavras, para além de um simples mecanismo opinativo do órgão, podem servir também como ferramenta para suprir o déficit de diálogo entre o Sistema Interamericano e os países da região, aproximando a Corte das realidades de cada lugar.  

Recentemente, um tema de suma relevância e com especial repercussão sobre os sistemas internos dos Estados Americanos foi levado à avaliação da Corte: a possibilidade de reeleição presidencial indefinida, por meio da Opinião Consultiva nº 28, analisada em 7 de junho de 2021. Apesar da importância desse debate, pouca atenção lhe foi dispensada no cenário nacional.

A Opinião Consultiva nº 28/21
Proposta pela Colômbia com o tema "A figura da reeleição presidencial indefinida em sistemas presidenciais no contexto do Sistema Interamericano de Direitos Humanos", a solicitação de opinião da Corte tinha o objetivo de esclarecer (i) se existia um "direito humano à reeleição presidencial indefinida" protegido pela Convenção Americana de Direitos Humanos e (ii) se a alteração da legislação eleitoral para ensejar a permanência de um governante no poder violaria as obrigações internacionais de um Estado em matéria de Direitos Humanos.

Embora não fizessem referência direta a nenhum caso concreto, as questões submetidas pelo governo colombiano tinham em seu pano de fundo decisão do Tribunal Constitucional Plurinacional da Bolívia que, em 2017, eliminou os limites à reeleição presidencial com base em interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Não por outra razão, o pedido da Colômbia foi apresentado em 21 de outubro de 2019, semana em que Evo Morales venceu sua 3ª eleição consecutiva.

Preliminares e mérito
A solicitação de Opinião Consultiva trouxe debates inéditos à Corte IDH, sobretudo ao levar o Tribunal a se debruçar sobre o próprio conceito de Democracia e seus limites.

Os direitos políticos dos cidadãos integram o núcleo duro dos direitos humanos desde sua gênese histórica, e, não raras vezes, foram objeto de discussões perante o Sistema Interamericano. No Pacto de San José, são garantidos pelo artigo 23, que assegura o direito de votar e ser votado em eleições periódicas.

Por outro lado, é relevante notar que, ao discorrer sobre o tema da reeleição ilimitada, a Corte IDH deu um passo além e ingressou no terreno da organização eleitoral dos Estados e dos princípios da Democracia Representativa. Embora estes temas estejam, sem dúvida, ligados ao pleno exercício da cidadania conforme previsto nos tratados interamericanos de direitos humanos, a Corte IDH enfrentou algumas controvérsias sobre sua própria competência para discutir a matéria. 

Ao tratar da admissibilidade da solicitação de Opinião Consultiva, a Corte IDH deparou-se com relevantes apontamentos sobre sua potencial intromissão em assuntos atinentes à soberania e à autodeterminação dos Estados. Os argumentos foram, todavia, rejeitados sob o entendimento de que o pronunciamento do Tribunal ficaria restrito à interpretação do alcance das obrigações internacionais de direitos humanos dos países da região.

O entendimento da Corte baseou-se na leitura do artigo 3º da Carta Democrática Interamericana, que prevê o direito de "acesso ao poder e seu exercício com sujeição ao Estado de Direito" como um dos pilares da democracia representativa. Prevaleceu a interpretação de que a ideia de "sujeição ao Estado de Direito" pressupõe a imposição de condicionantes ao exercício do poder político, dentre eles, a restrição à participação reiterada em pleitos eleitorais.

Nesse sentido, as normas que afastam limites à reeleição seriam incompatíveis com os princípios que norteiam a ordem democrática nas Américas. Pela mesma razão, alterações legais do gênero não deveriam ser passíveis de decisão "nem pelas maiorias nem por seus representantes".

Por fim, a Corte rejeitou os argumentos de que existiria um "direito humano à reeleição" e que sua limitação seria incompatível com o corpus iuris interamericano: embora a proibição da reeleição seja inegavelmente uma restrição ao direito a ser eleito, entendeu-se que consiste em uma limitação razoável, visto que os direitos políticos não são absolutos.

Esta posição sem dúvida traz relevantes questionamentos sobre o papel das cortes — nacionais ou internacionais — na promoção dos avanços democráticos. Em outras palavras, caberia às autoridades jurisdicionais um papel de protagonismo contramajoritário nas transformações sociais e institucionais? Independentemente da decisão referendada pela Corte IDH in concreto, amparada em sólidos fundamentos jurídicos, entendo que o papel da jurisdição deve ser concebido em termos de sua utilidade.

Isto é, pensar sua utilidade significa compreender que, ainda que não sejam  protagonistas da condução do progresso democrático, as cortes podem desempenhar uma função transformadora quando se tem em vista, por exemplo, a defesa de direitos humanos.

Dissidências
A posição da Corte não foi unânime, contando com dois votos dissidentes, dos Juízes Eduardo Pazmiño (Equador) e Eugenio R. Zaffaroni (Argentina).

Ambos os magistrados divergiram da maioria em todos os aspectos: competência da Corte, admissibilidade da consulta e, especialmente, no mérito das questões.

Primeiramente, questionaram a própria competência da Corte para julgar particularidades das formas de governo adotadas pelos Estados. Alegaram, ademais, que as questões não eram suficientemente precisas, na medida em que a ideia de "reeleição presidencial indefinida" é demasiadamente ampla e não é objeto de consenso doutrinário.

As dissidências, porém, fundamentaram-se na adoção de noções mais abrangentes de democracia. O Juiz Pazmiño, por exemplo, defendeu que a Corte deveria referendar uma hermenêutica constitucional disposta a aprofundar o conceito de democracia e a aceitar outros mecanismos de participação direta da população. Alertou também para os riscos de ingerência do órgão em assuntos internos dos Estados.

Já o Juiz Zaffaroni sustentou que a ausência de qualquer menção expressa à proibição de reeleição ilimitada nos tratados internacionais indica uma omissão voluntária e proposital, visto que os países "não tiveram vontade de proibí-la". Vedado seria, em seu entender, a supressão de eleições periódicas.

Para ele, a discussão sobre possibilidade de limitação ou não da reeleição é secundária em relação à soberania popular, isto é, ao direito dos povos de votar em quem querem que os governe.

Para além do mérito dos argumentos levantados pelos juízes divergentes, seus apontamentos revelam disputas sobre as fronteiras da disciplina dos direitos humanos. Trata-se de problema complexo: a figura da reeleição irrestrita ao mesmo tempo que potencialmente afeta o pleno exercício dos direitos políticos, diz respeito à organização interna do Estado.

Conclusões
Como se pode observar, tanto a posição vencedora quanto os votos vencidos chamam atenção para relevantes pontos a respeito da relação entre democracia, sistemas eleitorais e direitos humanos, bem como aos limites da atuação da Corte para se debruçar sobre tais assuntos.

Independentemente do entendimento firmado pela Corte Interamericana no caso, a Opinião Consultiva nº 28 demonstra uma tendência de expansão de sua jurisdição para questões que vão além dos contornos tradicionais da disciplina internacional dos direitos humanos, o que corrobora a necessidade de que os debates travados no Tribunal sejam acompanhados mais de perto pelos Estados e por aqueles que conformam os sistemas jurídicos internos.

O acompanhamento dos trabalhos da Corte IDH pela sociedade civil, autoridades, acadêmicos e comunidade jurídica é essencial para fomentar um debate crítico sobre os papéis desempenhados pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos na defesa de instituições democráticas no continente, bem como sobre os relevantíssimos temas submetidos a sua análise.

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