Opinião

Machismo nas alturas: as empresas aéreas e a proteção jurídica das comissárias

Autores

  • Lize Borges

    é advogada professora de Direito Civil de graduação e pós graduação especialista em Direito Civil pela Faculdade Baiana de Direito mestra em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador doutoranda em direito pela Universidade Federal da Bahia presidente da Comissão de Direito Internacional do IBDFAM/BA e presidente do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (IBADFEM).

  • Samantha Lins

    é advogada pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho membra da Comissão de Proteção aos Direitos da Mulher (OAB/BA) e diretora financeira do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (IBADFEM).

17 de setembro de 2021, 6h03

Neste mês foi noticiado que uma companhia aérea brasileira foi condenada em primeira instância, em ação coletiva ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho, a, entre outras coisas, pagar R$ 220 por mês às suas empregadas como forma de indenizar os gastos realizados com maquiagem, manicure, depilação e outros procedimentos exigidos pela empresa para adequação ao seu código de apresentação pessoal [1].

A decisão, acertada do ponto de vista financeiro, busca reparar o dano patrimonial sofrido pelas empregadas com tais despesas — embora se possa questionar se o valor realmente atende às exigências impostas pela empresa , mas ignora o direito à imagem garantido constitucionalmente (artigo 5º, X, da CF/88), o qual assegura a todas as pessoas o controle do uso de sua imagem, inclusive em relação à aparência física.

Não obstante, presume-se também a violação direta ao direito fundamental de não discriminação em razão do sexo, insculpido no artigo 3º, IV, da CF/88, bem como no artigo 1º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW  Decreto 4.377/2002), haja vista que são exigidos das mulheres cuidados associados ao padrão estético feminino, sendo que o mesmo não é exigido aos homens que exercem idênticas funções.

Essa não é a primeira condenação nesse sentido envolvendo empresas aéreas brasileiras [2]. Uma delas foi condenada em demanda individual a pagar o valor de R$ 300 para cada mês trabalhado por exigir um padrão de aparência "extremamente rígido, com especificação detalhada da maquiagem, batons e esmaltes a serem utilizados (incluindo especificação de cores permitidas), bem assim do estado dos cabelos (sempre limpos, hidratados, escovados, bem cortados e com aparência saudável)" [3].

Em outro caso, foi negado provimento a recurso da empresa ré, que buscava a reforma de sentença na qual foi condenada a pagar o mesmo valor a título de indenização por imposição de gastos com maquiagem, arrumação do cabelo, unhas e meias-calças. Destaque-se que a decisão, nesse caso aquela proferida pelo tribunal regional que julgou o recurso, considerou que "a exigência do uso de maquiagem, pela notoriedade, está inserida no contexto da prestação de serviços de transporte aéreo" [4], naturalizando o padrão imposto sobretudo nesse ramo de atividade.

Nesse contexto, a pergunta que grita para ser respondida é: por que, ainda hoje, é exigido das mulheres que se apresente com uma determinada aparência? Não há necessidade de que uma aeromoça para o bom desempenho de suas tarefas, use maquiagem ou saias curtas. Afinal de contas, a qualidade do serviço de bordo não há como ser medida pelo uso de batom e pernas à mostra.

Pode-se afirmar que a questão central dos julgados vai muito além do uso da maquiagem no ambiente de trabalho, haja vista que parte das empresas de aviação ainda exige que as mulheres performem feminilidade no serviço enquanto comissárias de bordo, reforçando, inclusive, o padrão estético e os estereótipos de gênero.

Ternos curtos, saltos, unhas feitas, maquiagem pesada, meia-calça, lenços no pescoço, entre outros atributos facilmente reconhecíveis ao entrar na cabine de qualquer aeronave comercial contribuem, ainda, com a erotização dos corpos femininos nessa profissão.

A Association of Flight Attendants (AFA-CWA) ouviu entre fevereiro e março de 2018 mais de 3,5 mil comissários(as) de bordo de 29 companhias aéreas dos EUA, sendo que a proporção de gênero dos participantes é equivalente à média geral americana da área e corresponde a 80% de mulheres e 20% de homens [5].

Segundo a pesquisa realizada, mais de dois terços das pessoas entrevistadas sofreram assédio sexual durante suas carreiras; mais de um em cada três afirmaram ter sofrido assédio sexual verbal de passageiros; e quase um em cada cinco sofreram assédio sexual físico de passageiros, somente em 2018, fazendo surgir o movimento "Me too in the air[6]  contra o abuso sexual e que ganhou força nas redes sociais em 2017, tendo diversas personalidades como adeptas  naquele ano [7].

Também em 2018, a empresa aérea asiática Cathay Pacific, depois de mais de 70 anos exigindo que suas comissárias usassem saias, após um acordo com o sindicato, permitiu que passassem a fazer uso de calças. O uniforme das comissárias incluía uma saia vermelha com duas fendas nas costas, meias pretas e saltos. De acordo com Pauline Mak, a vice-presidente da Hong Kong Dragon Airlines Flight Attendants Association, "o assédio sexual não está apenas no local de trabalho, mas até mesmo no transporte público, relatando que pessoas tentam tirar fotos por baixo da saia" [8].

Em 2016, depois de dois anos de disputa, as tripulantes da Britsh Airways ganharam o direito ao uso de calças, se assim desejarem, alterando parte do código de vestimenta da referida empresa [9].

Em 2021, após a realização de entrevistas com as comissárias, a companhia aérea ucraniana SkyUp Airlines aboliu o uso de saia e salto alto, adotando um terno laranja, tênis branco, lenço azul preso no próprio terno, flexibilizando também os penteados, possibilitando a utilização dos cabelos soltos, presos ou trançados [10].

Diante desse cenário, pertinente questionar se as aeromoças devem ser ressarcidas apenas pelas despesas para manter o padrão estético exigidos pelas empresas aéreas ou se merecem ser indenizadas pelos danos extrapatrimoniais  inclusive existenciais  por terem que cumprir tais exigências.

Merece citação a proteção prevista da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) no que tange aos danos extrapatrimoniais sofridos por pessoa física, mais precisamente nos artigos 223-B, 223-C e 223-F [11], que asseguram a reparação dos danos morais e existenciais de forma autônoma, decorrente de ação ou omissão do empregador que ofenda a honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde e a integridade física, sendo possível cumular com a indenização pelos danos materiais ocasionados pelo mesmo fato.

Da mesma forma, o Código Civil de 2002 busca proteger os direitos da personalidade, com destaque especial aos artigos 11 e 12, os quais possibilitam a reparação pelas perdas e danos causados em eventual lesão, igualmente amparados pelos artigos 186, 187, 927 e 944, que versam sobre ato ilícito, abuso de direito e a obrigação de indenizar, ensejando a reparação integral do dano sofrido.

Mas a questão vai além! Apesar de a Qatar Airways ter emitido simples nota negando as práticas sexistas, a International Transport Workers' Federation denunciou em 2015 que os contratos de trabalho das comissárias envolvem questões como ter de obter permissão da empresa para se casar e notificá-la caso engravidem [12].

No Brasil, as mulheres contam com proteção específica, sendo vedada a rescisão de contrato de trabalho em razão de matrimônio ou gravidez, conforme artigo 391 da CLT [13]. Contudo, as aeronautas gestantes são consideradas incapazes para exercício da atividade aérea e gozam de benefício previdenciário, conforme Convenção Coletiva de Trabalho da Aviação Regular 2017/2018 e Regulamento Brasileiro da Aviação Civil) nº 67.

Pode-se dizer que o sexismo também se ampara no fato de que as comissárias desempenham um papel atrelado ao trabalho de cuidado, historicamente executado por mulheres [14], o que se confirma com os dados divulgados pela Anac em pesquisa realizada em 2018. Na oportunidade, verificou-se que existem no Brasil 6.485 (66%) mulheres exercendo a profissão de comissárias de bordo e apenas 3.335 (33%) homens. Por sua vez, foram registrados 46.556 homens com licença ativa para pilotar aeronaves e apenas 1.465 mulheres que exercem a atividade, ou seja, entre os pilotos de aeronaves as mulheres representam apenas 3% [15].

De acordo com o site de anúncio de empregos Vagas.com, o salário médio das comissárias é de R$ 3.997 [16], enquanto o de piloto de aeronave corresponde ao dobro, qual seja, R$ 7,7 mil [17].

Resta claro que a aviação ainda é uma área em que o machismo é arraigado, de sorte que casos como esses são apenas mais uma expressão desse mal. O aprisionamento das mulheres em padrões estéticos não apenas retira sua liberdade e autonomia, como gera exclusão daquelas que porventura não se adequem, reforçando o preconceito de gênero, aumentando o abismo que existe no tratamento deferido.

Fica, com notícias assim, o desejo, entre outros, de que mais mulheres ocupem espaços de poder, não apenas na direção de empresas, mas no próprio Poder Judiciário (apenas 38,8% do corpo de magistrados do Brasil é composto por mulheres [18]). Talvez, as condenações em casos tais fossem no sentido de impedir a prática de imposição do uso de maquiagens e afins e indenizar pelos danos extrapatrimoniais causados, não se limitando a determinar o pagamento de indenizações pelos prejuízos materiais sofridos para a adequação ao padrão sexista adotado pelas empresas, sobretudo as empresas aéreas.

Que, na sede de ganhar os ares, as grandes corporações não deixem de fincar os pés em valores como a dignidade da pessoa humana e os próprios direitos da personalidade  verdadeiros direitos fundamentais, pois não se pode esquecer que mulheres livres, justamente remuneradas e respeitadas em sua inteireza ascendem e, com elas, eleva-se também toda a sociedade.


[1] ISTOÉ. Justiça brasileira determina que Gol custeie maquiagem e depilação de funcionárias. Disponível em <https://istoe.com.br/justica-brasileira-determina-que-gol-custeie-maquiagem-e-depilacao-de-funcionarias/>. Acesso em 14 de setembro de 2021.

[2] Alexandre Saconi, UOL. Companhias aéreas são condenadas a pagar esmalte e maquiagem de comissárias Disponível em <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/10/11/companhias-aereas-comissarias-esmalte-maquiagem-processo.htm>. Acesso em 14 de setembro de 2021.

[3] Recortes do acórdão exarado pela 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Recurso ordinário de nº 0011621-10.2017.5.03.0092, relatoria do Desembargador Paulo Chaves Correa Filho, julgado em 04/05/2021.

[4] Recorte do acórdão exarado pela 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 20ª Região, Recurso ordinário de nº 0000983-20.2017.5.20.0002, relatoria do Desembargador Thenisson Santana Dória, publicado em 26/08/2021.

[5] AFA – CWA. Survey Reveals Widespread Harassment of Flight Attendants. Disponível em <https://www.afacwa.org/survey_reveals_widespread_harassment_of_flight_attendant>. Acesso em 14 de setembro de 2021.

[6] AFA-CWA. #MeToo in the Air. Disponível em <https://www.afacwa.org/metoo>. Acesso em 14 de setembro de 2021.

[7] VEJA. Você sabe o que é o movimento #MeToo? Disponível em <https://veja.abril.com.br/videos/veja-explica/voce-sabe-o-que-e-o-movimento-metoo-veja-explica/>. Acesso em 14 de setembro de 2021.

[8] Lily Kuo, The Guardian. Cathay Pacific completes two-leg journey, letting women wear trousers. Disponível em <https://www.theguardian.com/world/2018/mar/30/cathay-pacific-completes-two-leg-journey-letting-women-wear-trousers>. Acesso em 14 de setembro de 2021.

[9] Gwyn Topham, The Guardian. Female British Airways cabin crew win the right to wear trousers. Disponível em <https://www.theguardian.com/business/2016/feb/05/female-british-airways-cabin-crew-win-the-right-to-wear-trousers?CMP=Share_iOSApp_Other>. Acesso em 14 de setembro de 2021.

[10] ISTOÉ Dinheiro. Com terno e tênis, companhia aérea revoluciona uniforme de comissárias<https://www.istoedinheiro.com.br/com-terno-e-tenis-companhia-aerea-revoluciona-uniforme-de-comissarias/>. Acesso em 14 de setembro de 2021.

[11] "Artigo 223-B – Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação.
Artigo 223-C – A honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física. 
Artigo 223-F – A reparação por danos extrapatrimoniais pode ser pedida cumulativamente com a indenização por danos materiais decorrentes do mesmo ato lesivo".

[12] CNNMoney (New York) Qatar Airways CEO: charges of sexism are 'bulls—' Disponível em <https://money.cnn.com/2015/02/17/news/companies/qatar-airways-sexist/index.html>. Acesso em 14 de setembro de 2021.

[13] "Artigo 391 – Não constitui justo motivo para a rescisão do contrato de trabalho da mulher o fato de haver contraído matrimônio ou de encontrar-se em estado de gravidez.
Parágrafo único – Não serão permitidos em regulamentos de qualquer natureza contratos coletivos ou individuais de trabalho, restrições ao direito da mulher ao seu emprego, por motivo de casamento ou de gravidez".

[14] DAVIS, Angela, 1944. Mulheres, Raça e Classe / Angela Davis: tradução de Heci Regina Candiani – 1ª ed. – São Paulo, Boitempo, 2016. p 230

[15] EPOCA NEGÓCIOS. Número de mulheres que pilotam aeronaves cresceu 106% em 2 anos <https://epocanegocios.globo.com/Carreira/noticia/2018/03/numero-de-mulheres-que-pilotam-aeronaves-no-brasil-cresceu-106-em-2-anos.html>. Acesso em 14 de setembro de 2021.

[16] VAGAS.COM – Salário médio de comissários de bordo. Disponível em <https://www.vagas.com.br/cargo/comissario-de-bordo>. Acesso em 14 de setembro de 2021.

[17] VAGAS.COM – Salário médio de pilotos de aeronaves. Disponível em <https://www.vagas.com.br/cargo/piloto-de-aeronaves>. Acesso em 14 de setembro de 2021.

[18] CNJ. Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/05/cae277dd017bb4d4457755febf5eed9f.pdf>. Acesso em 14 de setembro de 2021.

Autores

  • é advogada, professora de Direito Civil de graduação e pós graduação, especialista em Direito Civil pela Faculdade Baiana de Direito, mestra em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador, doutoranda em direito pela Universidade Federal da Bahia, presidente da Comissão de Direito Internacional do IBDFAM/BA, integrante do projeto EcoWomen, vice-líder do subgrupo de pesquisa Direito Civil e Feminismos (DCFEM/UFBA), conselheira executiva da Revista Conversas Civilísticas (UFBA).

  • é advogada, pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho, membra da Comissão de Proteção aos Direitos da Mulher (OAB/BA) e diretora financeira do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (IBADFEM).

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