Opinião

A democracia semidireta prevista na Constituição

Autor

  • Eutálio Porto

    é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo mestre em Teoria Geral do Estado professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado e autor do livro "O Estado Liberal".

17 de setembro de 2021, 7h13

A participação popular não se realiza apenas no período da eleição, mediante o voto, com a escolha dos representantes para os Poderes Legislativo e Executivo. Isso porque a democracia brasileira não é puramente representativa, sendo uma democracia semidireta.

São pouco divulgados ou utilizados os sistemas de participação direta do povo, como se não existissem, com destaque apenas na sua obrigação de votar, deixando que as decisões sejam tomadas por meio de seus representantes, que, por muitas vezes, ignoram o eleitor. Não é assim que o legislador constituinte originário idealizou a democracia brasileira; ao contrário, sendo semidireta, ela constitui um misto de ambas as formas de participação, em outros termos, a democracia não é apenas representativa, mas participativa mediante a oitiva constante da população.

Basta para isso um exame, não só da doutrina do Direito Constitucional, mas sobretudo do próprio texto da Constituição insculpido no artigo 1º que qualifica a República Federativa do Brasil como um Estado democrático de Direito tendo como fundamento a soberania popular que, por sua vez, conforme o parágrafo único do aludido artigo, deixa claro que "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição[1].

Veja que esse poder soberano é exercido por meio de representantes eleitos, assim como diretamente, o que indica que a democracia brasileira não é meramente representativa, pois o artigo 14 estabelece que "a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I  plebiscito; II  referendo; III  iniciativa popular". Em outros termos, pelo voto os representantes são eleitos, mas o povo será diretamente ouvido pelos meios ora indicados em qualquer situação a ser definida pelo próprio Legislativo, o que raramente ocorre, salvo nos casos em que o legislador tornou obrigatório, como o desmembramento ou a anexação de estados e municípios, consoante dispõe o artigo 18, §§3º e 4º, da Constituição Federal.

Esses instrumentos são inerentes à democracia direta e poderiam ser utilizados corriqueiramente na tomada de decisões, sobretudo porque existem hoje meios eletrônicos e rápidos para detectar a vontade popular. Mas como raramente a vontade popular é aferida por meio deles, não resta outra alternativa senão invocar as liberdades do artigo 5º para gritar nas ruas seu desejo, sendo esse mais um instrumento da democracia semidireta.

Além das ruas e praças físicas, a manifestação popular pode ser externada por meio da internet, ou seja, pela praça pública eletrônica, que tornou audível a declaração de vontade como uma nova modalidade de participação do povo nos destinos da nação e parte integrante da democracia semidireta.

Em outros termos, a vox populi manifestada, seja pela praça eletrônica, seja nas praças físicas, são formas de democracia semidireta adotadas pelo legislador constituinte que não se ateve apenas na representatividade, inserindo, além do plebiscito ou referendo, também as manifestações populares, consoante se verifica no artigo 5º, XVI, ao dizer que "todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente".

A propósito, várias posições têm sido tomadas pela via da manifestação pública, considerando que o parlamento se esquiva da oitiva do povo mediante plebiscito ou referendo.

Com isso, as manifestações representativas da sociedade devem ser levadas em conta na tomada de decisões, pois elas são, por exemplo, fundamentais no processo de impeachment, que conta com um elemento jurídico e outro fundado na vontade popular, para afastar uma autoridade que não esteja cumprindo bem suas funções ou atuando na contramão da representação que lhe fora atribuída.

A Lei 1.079, de 10 de abril de 1950, prevê o crime de responsabilidade para diversas autoridades, mas não contempla essa possibilidade para os integrantes do Poder Legislativo. Assim, como complemento do exercício da democracia direta, poderia ser prevista a hipótese de participação popular para afastamento de parlamentar, ou seja, a inclusão na lei a possibilidade de cassação da representação parlamentar outorgada pelo povo antes do término do mandato, pois, se para diversas funções existe o impeachment, não fez a lei qualquer previsão para a retirada da representação ou cassação do mandato parlamentar pelo povo.

Mesmo que a população se manifeste de forma inequívoca pelo afastamento de certas autoridades, em razão do cometimento do crime de responsabilidade, sempre haverá a necessidade do devido processo legal que, por sua vez, dependerá do órgão processante. Todavia, os membros do Legislativo não estão sujeitos à citada lei, embora fosse viável a sua inclusão, na medida em que não raro o parlamentar se elege com um discurso e toma posições antagônicas quando eleito, traindo seu eleitor que deverá esperar o término do mandato para modificar sua escolha, o que implica em dizer que o povo não pode demitir o seu representante.

Também é importante aprimorar o sistema de aferição das decisões envolvendo a constituição por intermédio da instituição do recall judicial, cujo instrumento permite a anulação de decisões judiciais, por iniciativa da população, quando envolver questões que podem eventualmente contrariar a vontade da maioria da população, revelar-se teratológica ou manifestamente contraria à Constituição em temas de grande repercussão social, aperfeiçoando, com isso, o sistema democrático.

Com efeito, se a iniciativa popular possibilita dar início a um projeto de lei pela população, sendo ele um instrumento da democracia semidireta, prevista no artigo 14 da CF, da mesma forma a possibilidade de anular decisões constitucionais também deveria estar prevista textualmente na Constituição.

Vale destacar que no processo de hermenêutica constitucional já se tem defendido a influência da sociedade, pois um intérprete do texto da Constituição não pode impor sua vontade nem suas ideias, mas, sim, inspirar-se no texto da lei e nos valores da sociedade para proferir seu veredicto e, se isso não acontece, cabe ao povo, como soberano, anular a decisão nos casos de grande repercussão. Isso porque o povo não é um elemento neutro, mas uma força viva no processo democrático que vai direcionar a aplicação das normas constitucionais.

A interpretação não pode ser fechada e nem expelida pelas luzes exclusivas dos integrantes da Corte Constitucional, ao contrário, existe uma simbiose entre esta e a sociedade que é aberta e com vários intérpretes, conforme bem observado por Peter Häberle.

Isso porque a ideia de que a intepretação constitucional se restringe aos órgãos estatais não mais vigora nas democracias abertas, pois o Direito Constitucional está atrelado à realidade social e, por isso, "democracia não se desenvolve apenas no contexto da responsabilidade formal do povo para os órgãos estatais" que se dá mediante a legitimação do processo eleitoral.

Em outros termos, como diz Häberle: "Povo não é um elemento referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de decisão. povo é também de forma legitimadora no processo constitucional (…)" [2]. Com isso, quando o povo delega poder aos seus representantes, isso não implica que estes têm o monopólio completo das decisões.

Por fim, é hora de aperfeiçoar o sistema e tomar consciência de que o povo quer influir nos destinos da nação, não delegando a totalidade da soberania aos representantes dos poderes constituídos, resgatando, dessa feita, os valores vitoriosos do liberalismo em face da monarquia absolutista fundados no Estado de Direito e na democracia e, com isso, colocar em prática a opção do legislador constituinte originário que incluiu na Constituição a democracia semidireta como regime político do Brasil.


[1] O grifo não é do texto, mas deste autor.

[2] Häberle, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição Para a Interpretação Pluralista e "Procedimental" da Constituição", p. 37. Sergio Antonio Fabris Editor. Tradução: Gilmar Mendes. Porto Alegre, 1997, reimpressão 2002.  

Autores

  • é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, mestre em Teoria Geral do Estado, professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado e autor do livro "O Estado Liberal".

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